Roberto Galvão - 60 anos: reflexões, retrospectiva e reconhecimento
INTRODUÇÃO
Roberto Galvão 60 anos reflexões, retrospectiva e reconhecimento
Cláudio Thomas BornsteinI; Horacio Hideki YanasseII; Nair Maria Maia de
AbreuIII
ICOPPE/Sistemas ctbornst@cos.ufrj.br
IIINPE/ LAC horacio@lac.inpe.br
IIICOPPE/Produção nair@pep.ufrj.br
Existe um dilema temporal na vida profissional da cada um. Na medida que a
pessoa decide-se por um rumo que, com uma certa dose de leviandade, poderia ser
descrito por se dar bem, freqüentemente são sacrificados objetivos mais a longo
prazo. A época que vivemos é de horizonte de planejamento curto, curtíssimo.
Vale a máxima hedonista de que o que se leva da vida é a vida que se leva e o
resultado é um sacrifício de posicionamentos que, na linguagem do dia a dia,
são denominados de idealistas. Em recente filme sobre Glauber Rocha, um dos
entrevistados justamente comentou este fato: faltam hoje homens visionários,
com objetivos à frente do seu tempo. O excessivo pragmatismo dos tempos
correntes coloca em cheque o nosso futuro.
Uma metáfora talvez ilustre este fato de forma concisa: se alguém não plantar o
pé de jacarandá, jacarandá que dificilmente alguém ainda colhe em tempo de
vida, amanhã não teremos mais este tipo de árvore. Pode ser alegado que, de
fato, não há quem plante hoje em dia jacarandá. Primeiramente isto não é
verdade. São poucos, sim, mas existem. Em segundo lugar, se não se planta isto
não quer dizer que não se deva plantar!
Cabe lembrar que uma das coisas que caracteriza o ser humano é a consciência,
principalmente a consciência do seu fim. Ora, a consciência do fim gera, sem
dúvida, um momento de tensão e de dor que pode ser superado através de um
movimento de transcendência constituído pela obra e pelo legado que se deixa.
Deste legado fazem parte os filhos mas também as idéias que se semeou, os
feitos, as construções, sejam de concreto, de aço ou de papel.
A arte consiste numa solução de compromisso. Nem tanto ao céu, nem tanto a
terra. Deve haver um compromisso entre a carreira, isto é, aqueles objetivos
dos quais tiraremos proveito diretamente e aquilo que nos sobrevive, cujos
frutos não mais vamos colher. O primeiro sem o segundo leva, exceto para os
insensíveis, a um sentimento de dor ou de vazio. O segundo sem o primeiro
freqüentemente é inviável. Sem carreira ninguém sobrevive e sem vida também não
existe ação em prol de um futuro.
Evidentemente não necessariamente existe sempre uma oposição, uma contradição
entre os dois objetivos. Alguns, poucos, conseguem praticar com tanta
engenhosidade a arte do compromisso entre objetivos a longo e a curto prazo que
fazem convergir as duas propostas.
Fazendo uma retrospectiva da vida profissional de Roberto Galvão percebe-se
este equilíbrio entre carreira e objetivos mais a longo prazo. Aqui, nesta
introdução, pretende-se ressaltar os objetivos mais amplos, por acreditarmos
que a parte técnica, além de bem conhecida, tem a sua importância reconhecida
de uma maneira geral e consensual.
A contribuição técnica de Roberto Galvão, professor titular da COPPE/UFRJ,
pesquisador 1A do CNPq, com quase 40 artigos publicados em revistas de renome e
com quase 30 teses de M.Sc/D.Sc orientadas, é por demais conhecida. Cabe
ressaltar também a coerência. A opção preferencial pelo problema de localização
não capacitado como área de pesquisa permitiu a construção de um corpo
homogêneo e coerente de conhecimentos e contribuições, permitindo que os
trabalhos tivessem um encadeamento lógico e uma solução de continuidade. Este
fato explica também que este número especial da revista Pesquisa Operacional
seja dedicado ao problema de localização.
Uma breve descrição do conteúdo deste número da revista parece aqui apropriada.
A chamada de trabalhos foi feita de maneira ampla e aberta, tendo, no entanto,
sido convidados alguns autores por terem um vínculo mais estreito com o
trabalho de Roberto Galvão. Evidentemente todos os trabalhos foram examinados e
julgados pelo menos por dois revisores, dentro dos procedimentos normais da
revista.
O primeiro trabalho, de autoria do Prof. Galvão, faz uma revisão das principais
contribuições do autor para o problema de localização não capacitado ao longo
dos últimos 30 anos. São mencionados desenvolvimentos teóricos, algoritmos
computacionais e aplicações práticas.
O segundo artigo, de Takeda, Widmer e Morabito, descreve uma aplicação do
modelo hipercubo de filas para analisar o efeito de descentralização de
ambulâncias no sistema médico de emergência de Campinas, S.P.
O terceiro artigo, de Loiola, Maia de Abreu e Boaventura Netto, faz uma revisão
do problema quadrático de alocação, incluindo também aplicações.
O quarto e o quinto artigos, cujos autores são, respectivamente, Pizzolato et
al. e Barcelos et al., fazem uma avaliação e análise da localização de escolas
públicas do ensino fundamental em diversas cidades brasileiras.
O sexto trabalho, de Bornstein e Campêlo, apresenta uma heurística nova para
resolver o problema de localização capacitado.
O sétimo artigo, de Sinotti e Machado, considera o jogo de evasão e detecção em
uma rede e propõe um algoritmo para resolver o problema de evasão.
Finalmente, o último trabalho, de Boffey e Saeidi, considera aspectos de
localização de web caching. Este assunto é de grande interesse para se evitar,
por exemplo, congestionamento na rede www, através do uso de proxy caches e
replicação, desta maneira armazenando informação mais perto do usuário final.
Dada a informação técnica, voltemos para aspectos mais amplos da vida
profissional de Roberto Galvão. No que se segue, pretende-se dar uma certa
ênfase em aspectos terceiro-mundistas, ou seja, a contribuição dada por Galvão
à Pesquisa Operacional dentro de um contexto de países em desenvolvimento. De
1979 a 1982 Galvão fez parte da direção da Sociedade Brasileira de Pesquisa
Operacional, SOBRAPO, tendo inclusive sido presidente da associação. Durante o
seu mandato houve um incidente com a International Federation of Operational
Research Societies, IFORS, que bem ilustra a sua atuação e a sua linha de
pensamento. Cabe uma breve recapitulação do acontecimento. Tendo Buenos Aires
sido escolhida para sediar a X Conferência da IFORS, a realizar-se em 1984, a
sociedade inglesa de PO inicia em 1981 uma movimentação para a transferência do
congresso para outro local. O motivo alegado era violação dos direitos humanos,
argumento estranho uma vez que já se vivia na época na Argentina um clima de
distensão. Como motivação real pode-se imaginar desde o conflito das Malvinas
até um certo receio de perda de poder perante a comunidade de países em
desenvolvimento. Cabe lembrar que um dos resultados esperados pela realização
do congresso na Argentina era a filiação de diversas sociedades latino-
americanas à IFORS, o que reforçaria bastante o poder destas junto à associação
internacional.
A movimentação de diversas sociedades de PO, em particular a sociedade indiana,
movimentação esta liderada pela SOBRAPO, fez com que, na votação realizada
durante o IX Congresso na Alemanha, a Inglaterra sofresse fragorosa derrota.
Após a derrota, o golpe, é a receita clássica. Algum tempo após a votação, o
presidente da IFORS, que por coincidência era inglês, resolve derrubar a mesa.
Comunica que um comitê especial resolveu retirar o convite feito à Argentina
para sediar a X Conferência. A argumentação desta vez não mais eram direitos
humanos mas sim os riscos que implicaria a realização da conferência na
Argentina. Provavelmente alegavam-se riscos pois era a alegação de riscos que
permitia esta saída pouco democrática. É circular, sim, mas funciona. Ou, ao
menos, funcionou. De fato, a X Conferência da IFORS em 1984 acabou por
realizar-se em Washington.
Certamente estes fatos contribuíram para a fundação da Associação Latino-Ibero-
Americana de Pesquisa Operacional, ALIO, em 1982, do qual Galvão foi o
presidente no primeiro biênio, além de ter sido vice-presidente no período
1984-86, bem como editor associado da revista Investigación Operativa. A
pressão política também foi decisiva para a realização da XI Congresso da IFORS
em Buenos Aires em 1987, o que de certa forma representou um reconhecimento da
injustiça cometida. Também é inegável que, em função de toda a movimentação, a
IFORS teve que fazer algumas concessões. Criou-se um comitê para países em
desenvolvimento do qual Galvão foi o coordenador no período 1989-91, houve a
criação de um prêmio para o melhor artigo proveniente de países do terceiro
mundo apresentado em congressos da IFORS, bem como a criação de um boletim
visando divulgar notícias e eventos vinculados à PO em países em
desenvolvimento. Galvão foi editor deste boletim no período 1989-92. Também é
inegável que os ICORD, International Conference on Operational Research for
Development, dos quais até hoje já foram realizados cinco simpósios, o último
na Índia em 2002, surgiram em parte como conseqüência da aglutinação de
interesses em Pesquisa Operacional e Desenvolvimento. Galvão participou
ativamente de algumas destas conferências tomando inclusive parte nos debates e
painéis.
Mais recentemente, e, de certa maneira, numa mesma linha de ação, pode ser
mencionado o seu papel como editor-chefe da revista Pesquisa Operacional no
período 1996-2000. A revista vinha de uma crise séria, com seríssimos problemas
de regularidade e qualidade da publicação. Roberto Galvão e, posteriormente,
seu sucessor Horacio Yanasse (um dos autores deste editorial, mas, certamente
não autor deste parágrafo) elevaram a revista a um patamar do qual se pode
afirmar hoje que é com orgulho que se publica um artigo na revista. Cabe
lembrar que nem sempre foi assim. A Pesquisa Operacional é hoje uma revista que
faz parte do SciELO, projeto conjunto FAPESP/CNPq, o que é mais uma comprovação
da qualidade da revista. Nunca é demais também lembrar que ser editor de uma
revista é tarefa árdua, principalmente em um país com sérios problemas de
infra-estrutura como o nosso. O encaminhamento de dezenas de artigos,
constantes cobranças de pareceres de revisores é tarefa que requer grande
paciência e perseverança. O retorno que se recebe como contrapartida, um certo
reconhecimento e prestígio por parte da comunidade de PO, raras vezes compensa
o sacrifício e o tempo perdido.
A disponibilidade de uma revista de qualidade é um fato importante para um país
em desenvolvimento. Além de projetar o país e os seus autores no cenário
internacional e de significar um movimento em direção a uma certa
independência, abre uma possibilidade adicional para autores nacionais e
internacionais apresentarem seus trabalhos, significando também um espaço para
autores jovens que muitas vezes não possuem os contatos nem os conhecimentos de
inglês necessários à publicação em uma revista estrangeira. Além disso, ao
menos potencialmente, existe a possibilidade de se publicar aspectos ou
aplicações julgadas relevantes dentro do cenário nacional e que podem, por
alguma razão eventual, não ter esta relevância para publicações estrangeiras.
Perante todos estes fatos, inegavelmente, sorrisos surgirão. Qual a importância
de todo este movimento? Não seria pura xenofobia, completamente fora da moda em
um mundo globalizado? Essa acusação, feita há cinco anos atrás, teria sido mais
difícil de ser respondida. Hoje em dia, com o modelo de globalização
apresentando sérias fissuras, a resposta é mais fácil. Dificilmente alguém
contestará hoje que de globalizado o modelo tem somente o nome ou a marca. Não
se trata aqui de questionar a supremacia tecnológica dos países desenvolvidos.
Muito pelo contrário, cabe reconhecê-la, assim como reconhecer que a ela
associada está uma supremacia de poder. Poder este ao qual cabe oferecer algum
tipo de resistência não pelo prazer esportivo da luta, mas por necessidade de
sobrevivência. Afinal, se o nome ou a marca são globalizados, os interesses não
o são. Afirmar que países desenvolvidos e em desenvolvimento, países grandes e
pequenos comungam dos mesmos interesses, caminham unidos na marcha pelo
desenvolvimento, ou é ingenuidade, ignorância ou má-fé, ou um pouco dos três.
Que estes diversos interesses têm o seu reflexo nas diversas opções
tecnológicas, e portanto nas diversas prioridades em ciência e pesquisa, é uma
conseqüência lógica do fato de que políticas de desenvolvimento devem ou, ao
menos, deveriam, refletir-se em prioridades tecnológicas e científicas. Se não
se refletem, temos aí um problema que há de se corrigir.
Ao invés de xenofobia, muito pelo contrário, as idéias acima traduzem na
verdade xenofilia. Pois da admiração pelo modo de proceder dos países
desenvolvidos, organizando-se em associações e cartéis é que nasce a idéia de
proceder de modo semelhante.
O movimento de resistência mencionado acima dificilmente surgirá sem algum tipo
de união de países do terceiro mundo. O MERCOSUL, a OPEP, o Forum Social
Mundial e o G-21 representam passos nesta direção. Também a SOBRAPO, a ALIO, a
Investigacion Operativa, a Pesquisa Operacional e os ICORD são pequenos,
pequeníssimos passos nesta direção, direção esta na qual Roberto Galvão vem
trilhando e deixando a sua contribuição com coerência e continuidade. Jogando
um pouco com as palavras, poderíamos dizer que Roberto Galvão, cuja ênfase
técnica é em problemas de localização, vem, no que tange a parte mais ampla e
política de sua vida profissional, sinalizando possíveis localizações de
esforços e prioridades da comunidade de PO de países em desenvolvimento em prol
de um mundo melhor, mais equilibrado, com menos injustiça e desigualdade.
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