Editorial
EDITORIAL
As Universidades Federais atravessam, novamente, um período de turbulência e
incertezas quanto ao futuro; atividades são novamente paralisadas para chamar a
atenção da sociedade. Pode-se creditar à insensibilidade do atual governo
motivos para a deflagração da crise, mas atribuir a este toda a
responsabilidade, como transparece em algumas análises, é simplificar em
demasia a origem do problema.
Neste editorial argumentamos que algumas das motivações para esta crise são
anteriores, com origens na dependência excessiva das universidades em relação a
diretrizes do estado e na postura subserviente a valores culturais importados.
As universidades brasileiras são de origem muito recente e muitas foram criadas
sem maiores vínculos com questões culturais, científicas e técnicas,
previamente discutidas com a sociedade. Esta origem artificial induziu a
universidade pública brasileira a um distanciamento crônico dos agentes sociais
e econômicos efetivos do país, atitude que a mantém paralisada e caudatária da
(s) política(s) governamental(is). Durante o regime militar, a visão
geopolítica ditada pela guerra fria, pela desconfiança em relação a países
vizinhos e, principalmente, por um projeto desenvolvimentista de cunho
nitidamente nacionalista, favoreceu a adoção de programas e financiamentos que
impulsionaram o crescimento das universidades existentes, a expansão da pós-
graduação e possibilitando ainda a criação de novos centros universitários. A
história dessa época registra a crítica de setores da população universitária
às restrições impostas pelo governo militar à liberdade de expressão; registra
também uma postura pendular com relação a políticas de desenvolvimento que
foram propostas. Projetos onde parte da elite universitária foi excluída, a
exemplo do acordo nuclear Brasil-Alemanha, motivaram protestos. Por outro lado,
a reserva de mercado para informática, medida controversa, mas que acenava a
grupos econômicos e universitários com oportunidades de financiamento, foi
recebida com ufanismo. Os insucessos das medidas citadas acima são conhecidos.
No caso da reserva de mercado para informática, o atraso provocado pela mesma
condena hoje um número significativo de trabalhadores ao desemprego e de
empresas à ineficiência competitiva. Desconhecemos, entretanto, a autocrítica
pública dos setores universitários e empresariais que apoiaram esta medida. Com
o fim do governo militar, os novos governantes introduziram modificações
drásticas, divergentes até, nas propostas para o setor. Atualmente, a política
de financiamento à pesquisa praticada pelo governo federal favorece a
concentração de recursos em alguns laboratórios, podendo condenar grupos
menores e emergentes ao desaparecimento. Observa-se nos centros universitários
com maior liderança, e portanto beneficiários em potencial deste programa, a
ausência de questionamentos quanto às possíveis conseqüências desta política.
Estes exemplos ilustram a relação dúbia que existe entre grupos universitários
e o poder, motivando suspeitas quanto a transações de postura crítica por
benefícios imediatos.
E quanto ao relacionamento da universidade brasileira com o exterior? É
inegável que o intercâmbio científico e cultural, quando praticado segundo
parâmetros que resguardem independência e postura crítica, é um fator
importante e fecundo para o desenvolvimento. Entretanto, vastos setores das
universidades brasileiras não estão propensos a uma interação criativa com a
sociedade. Recorrem periodicamente a fontes internacionais para definir
objetivos para o trabalho intelectual, atitude que advogam como a postura
correta para edificar a `grande ciência'. Esquecem, ou talvez desconheçam,
exemplos contrários e contundentes que a história da ciência proporciona:
Clausius, Kelvin, Carnot, entre outros, criadores da termodinâmica, não estavam
distantes das necessidades da indústria nascente, que precisava de máquinas
para progredir; James C. Maxwell ao pesquisar relações básicas do
eletromagnetismo, não estava distante dos desafios previstos para a
comunicação, no império britânico em crescimento; ao pesquisar a termodinâmica
de metais incandescentes, Max Planck não estava distante das necessidades da
indústria metalúrgica alemã; no início do século, a pesquisa de Ernest
Rutherford foi, em grande parte, financiada por exportadores ingleses,
convencidos que estavam da potencialidade destes estudos para ampliar, a longo
prazo, a competitividade de suas empresas. Outros exemplos, abrangendo
diferentes áreas do conhecimento, podem ser relacionados. Estes fatos mostram
uma forte correlação entre definição de objetivos de pesquisa e contribuição
para a evolução social. Logo, podem fornecer também uma sistemática para
avaliar a importância do trabalho científico. Esta não é, entretanto, a prática
corrente em nosso meio, pois o imediatismo da dependência cultural impõe outros
critérios: importam-se objetivos e, com estes, parâmetros para avaliar
`qualidade'. No momento, a moda consiste em correlacionar importância do
trabalho com `número de citações', de preferência no exterior, `índices de
impacto', etc. Nos primórdios da colonização, trocou-se riquezas e força de
trabalho por miçangas e objetos reluzentes. Comparando-se as atitudes do
passado e atuais, pode-se suspeitar que `índices de impacto' e `números de
citações' são as miçangas e objetos reluzentes que os novos `colonizadores'
oferecem. Outros exemplos da história são esclarecedores: no início deste
século, quando a ciência nos EUA caminhava a passos largos para o crescimento,
seus pioneiros certamente sabiam que os `índices de impacto' pertenciam às
revistas científicas européias. Isto não provocou resistência cultural
contrária à criação de canais de comunicação próprios. A análise dos fatores
subjacentes ao desenvolvimento da ciência naquele país mostra a fecundidade da
definição de objetivos, em consonância com necessidades culturais e sócio-
econômicas. Evidencia a sensibilidade de centros universitários que, ao longo
de sua história, fortaleceram-se porque souberam interpretar corretamente as
necessidades de seu tempo. Em nossa interpretação, a montagem da estratégia de
desenvolvimento adequada foi possível porque havia uma grande diferença de
postura: o objetivo maior daqueles pioneiros era buscar e divulgar
conhecimentos para edificar uma nação, e não para alcançar o sucesso de grupos
ou carreiras individuais.
Atravessamos, atualmente, um período onde transformações econômicas e
geopolíticas impõem novos paradigmas para o crescimento das nações, com
implicações dramáticas sobre a formação de recursos humanos e a criação de
novos conhecimentos. A universidade brasileira não pode perder novamente o
bonde da história: é urgente que, criticando a si mesma, conquiste uma nova
postura e estabeleça vínculos com a sociedade que a mantem. Porém, para
alcançar o reconhecimento social para a sua tarefa, é fundamental que a
universidade, primeiro, reconheça internamente os seus valores: não é mais
possível tolerar a imposição de isonomias artificiais, que ignoram totalmente
os esforços daqueles que trabalham para superar limitações; é fundamental que
retóricas do tipo, `ensino para todos', etc., sejam substituídas por ações
concretas para atingir qualidade, para estancar índices escandalosos de evasão
discente, de reprovações em massa, entre outras mazelas. Para iniciar esta
metamorfose, a universidade precisa estreitar seus laços com a sociedade.
Talvez um bom começo seja compreender a mensagem de outros brasileiros que,
exercendo criatividade sem perda de origens, conquistaram aqui e no exterior, o
reconhecimento: "aqui vive um povo que cultiva qualidade, ser mais sábio
que quem o quer governar".*
Luiz Carlos Gomide Freitas - UFSCar
*Trecho da música Notícias do Brasil de Milton Nascimento e Fernando Brandt.
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