Oxidações eletrocatalíticas de álcoois e dióis em meio bifásico utilizando
metanossulfonato de CeIV como mediador
INTRODUÇÃO
Os compostos de cério são largamente utilizados como oxidantes de substratos
orgânicos, efetuando transformações de utilidade sintética. Vários artigos de
revisão1-3 e livros4,5 já foram publicados, discutindo-se a sua aplicabilidade
nas oxidações de grupos funcionais orgânicos.
Métodos utilizando complexos de cério como catalisadores foram desenvolvidos e
estão descritos na literatura. Estes métodos consistem em utilizar os complexos
de cério em quantidades catalíticas que são reoxidados por um agente co-
oxidante presente na mistura6, ou eletroquimicamente através da aplicação de um
potencial adequado7-11.
Estudos de oxidações de arenos e quinonas realizados por Kreh e
colaboradores11-13 demonstraram que sais de cério (metanossulfonato e
trifluorometanossulfonato) possuem boa solubilidade e estabilidade, reagindo
com alta seletividade com uma ampla classe de substratos e que são facilmente
recicláveis pela oxidação eletroquímica com alta eficiência e alta densidade de
corrente. As oxidações orgânicas são rápidas sob condições onde os sais de
cério são solúveis e os produtos orgânicos imiscíveis em soluções aquosas,
facilitando a extração dos produtos.
Em nossos laboratórios foram estudadas oxidações eletrocatalíticas de várias
classes de substratos orgânicos com sais de cério como o nitrato ceroso, Ce
(NO3)3.6H2O14 e o metanossulfonato ceroso, Ce(CH3SO3)3.2H2O15,16,que na cela
eletrolítica são oxidados a CeIV e atuam como mediadores. Estes oxidantes
envolvem em seu mecanismo a abstração de um elétron formando um cátion radical
(após o que forma-se um radical pela saída de H+) e, com o envolvimento de mais
um equivalente químico do sal de cério, ocorre a abstração de mais um elétron
dando origem a um íon carbênio. Quando a reação for radicalar, os produtos
obtidos formam dímeros. Neste caso, os substratos são compostos carbonílicos
que não estabilizam íons carbênio nas vizinhanças da carbonila, mas que
estabilizam radicais. Derivados b-dicarbonílicos e b-cianocarbonílicos foram
submetidos a oxidação com Ce(NO3)3.6H2O em solução de HNO3 e produziram
dímeros14. Os mesmos substratos foram submetidos a oxidação com Ce
(CH3SO3)3.2H2O em solução do ácido metanossulfônico e deram origem a produtos
de fragmentação16b.
Anteriormente aos sais de cério, foram estudadas, em nossos laboratórios,
oxidações eletrocatalíticas de substratos orgânicos utilizando vários complexos
polipiridínicos de rutênio, especialmente o perclorato de bipiridinatripiridil-
oxo-rutênioIV , [Ru(IV)O(bpy)(trpy)](ClO4)217. Este último foi também estudado
em um sistema bifásico composto por água/diclorometano com o objetivo de se
obter maior seletividade no grau de oxidação de substratos orgânicos, devido à
diferença de distribuição nas duas fases do substrato e do produto. Esses
estudos demonstraram ser, de fato, o meio bifásico adequado para a obtenção de
seletividade nas oxidações de álcoois17g,h.
Portanto, com o intuito de dar continuidade aos estudos em meio bifásico, foram
submetidos à eletrooxidação álcoois e dióis utilizando como oxidante o
metanossulfonato cérico em meio de ácido metanossulfônico e benzeno como fase
orgânica. Este sal (metanossulfonato ceroso, Ce(CH3SO3)3.2H2O) foi
primeiramente sintetizado por Zinner18 e estudado em nossos laboratórios
através de técnicas eletroquímicas que demonstraram ser um bom mediador,
realizando oxidações seletivas de vários substratos orgânicos por
eletrossíntese indireta.
MATERIAL
As eletrólises foram efetuadas em um Potenciostato/Galvanostato FAC 200A ou
Potenciostato/Galvanostato PAR modelo 273A, conectados a um Registrador
Intralab modelo 2030, utilizando um multímetro Engro MD 820 para medidas
externas de corrente e potencial.
As oxidações eletrocatalíticas foram realizadas em uma cela de forma cilíndrica
com capacidade de 50 mL contendo eletrodo de trabalho (rede de platina de
164cm2 de área aparente, diâmetro do fio: 0,16mm) que atuou como ânodo,
eletrodo auxiliar (placa de platina de 1cm2de área dentro de um tubo de vidro
sinterizado), que atuou como cátodo e eletrodo de referência de calomelano
saturado (ECS), ligados a um galvanostato para a aplicação de uma corrente
escolhida, que foi controlada de acordo com a reação desejada, para que o
potencial se mantivesse numa faixa específica (no caso +1,6 a +1,7V).
Os espectros de ressonância magnética protônica (RMN-1H) foram obtidos em um
aparelho "Brucker" AC-80 utilizando tetrametilsilano (TMS) como
padrão interno.
Os espectros de absorção no Infravermelho (I.V.) foram registrados em
espectrofotômetro Perkin Elmer modelo 1430 ou 1600 séries FTIR.
Para realizar as análises de cromatografia gás-líquido (c.g.l.) foi utilizado
um cromatógrafo Intralab modelo 3000 com colunas OV-17 ou Carbowax, registrador
Intralab e detector de ionização de chama.
Foram utilizados solventes comerciais, purificados quando necessário. A maioria
dos substratos utilizados são grau PA, sendo que o álcool ftálico foi
sintetizado19.
PARTE EXPERIMENTAL
Método Geral da Oxidação Eletrocatalítica
O meio reacional da oxidação eletrocatalítica dos substratos é constituído por
30mL de uma solução 0,4mol/L de ácido metanossulfônico e 0,05mol/L de
metanossulfonato de cério(III). Aplica-se um potencial de +1,6V vs. ECS,
observando-se no início uma corrente de cerca de 150 mA, que diminui até 10 mA
após aproximadamente 40 minutos, quando a cor da solução passa de incolor para
amarela (CeIII originando CeIV).
O substrato (1,0g), dissolvido em 5mL de benzeno é colocado no meio reacional
(cela eletrolítica), utilizando-se acetonitrila como co-solvente para dissolver
o material na fase orgânica quando necessário, e aplica-se, para a maioria dos
substratos, uma corrente controlada de 50 mA para que ocorra sua oxidação,
sendo fixado o limite máximo para o potencial anódico de +1,7V. Para que este
valor não seja ultrapassado (pois pode ocorrer oxidação da água em grande
quantidade), valores sucessivamente menores de corrente são aplicados toda vez
que o potencial atinge aquele limite.
Depois da carga necessária para a transformação do substrato o processo
eletrocatalítico é interrompido.
A extração do produto é feita com 4 porções de 30mL de éter etílico ou
diclorometano. Quando necessário, a fase aquosa é saturada com cloreto de sódio
para depois ser extraído o produto nela contido. A fase orgânica é separada e
secada com sulfato de sódio anidro. O solvente é evaporado, os produtos obtidos
são isolados e purificados, analisados através de comparação com padrão em
cromatografia gás-líquido (c.g.l.), e o seu rendimento calculado. As análises
destes são feitas também através de RMN -1H, I.V. e ponto de fusão.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O metanossulfonato cérico gerado eletroquímicamente é um oxidante
suficientemente forte para oxidar um substrato orgânico até altos estados de
oxidação como, por exemplo, um álcool 1ário. a um ácido carboxílico. Com o
intuito de se obter seletividade nas oxidações dos substratos orgânicos (como,
por exemplo, oxidações seletivas de álcoois a aldeídos), foi aplicada uma
tecnologia desenvolvida em nossos laboratórios17g,h, na qual utilizou-se um
sistema bifásico composto por solução aquosa de ácido metanossulfônico e
benzeno.
O mediador oxidante é insolúvel na fase orgânica mas solúvel na solução aquosa.
Espera-se que as hidroxilas dos álcoois e dióis, sendo grupos hidrofílicos,
fiquem em contato com a solução aquosa na qual está dissolvido o oxidante CeIV,
enquanto que o restante da molécula, hidrofóbica, estaria solvatado na porção
orgânica (benzeno e, algumas vezes, benzeno/acetonitrila). A oxidação da
hidroxila a aldeído, ou a outra função, no caso de reações que levam a
fragmentação da estrutura, conduz a grupos funcionais hidrofóbicos e estes
produtos ficariam protegidos de posteriores oxidações na fase orgânica. Quando
o produto é um ácido, cuja função é hidrofílica, posteriores oxidações não
ocorrem por já estar o ácido num estado de oxidação superior. O processo seria,
assim, seletivo, na medida em que a oxidação não seria levada aos estados de
oxidação superiores.
Foi observado que a agitação forte do meio reacional na cela emulsiona
eficientemente as duas fases, fazendo com que haja um aumento muito grande da
superfície de contato entre elas, o que leva a um aumento da eficiência de
reação de oxidação.
Os substratos e os resultados obtidos estão mostrados na tabela_1.
A reatividade do álcool n-pentílico frente a este sistema, passando-se 2, 4 ou
6 elétrons/molécula, se mostrou baixa, pois parte do material de partida foi
recuperado junto com vários subprodutos não identificados. A reação de oxidação
também não se mostrou seletiva, sendo ácido pentanóico o único produto
identificado com rendimentos de 2, 4 e 37%, respectivamente.
Na oxidação do pentanal observou-se transformação quase total em ácido
pentanóico, demonstrando boa reatividade com 85% de rendimento. Esta
reatividade, diferente dos demais aldeídos formados neste estudo, se deve,
provavelmente, a uma maior solubilidade do pentanal no meio reacional aquoso.
portanto, se ocorre a formação de pentanal na oxidação do álcool n-pentílico, o
aldeído deve transformar-se completamente no ácido. O baixo rendimento de ácido
pentanóico na oxidação do pentanol é explicado pela baixa reatividade deste
substrato e o gasto de corrente em reações paralelas. Assim, o grande consumo
de carga exigida para esta transformação não foi suficiente para oxidar o
aldeído a ácido com bons rendimentos.
O álcool cicloexílico foi oxidado passando-se um número de Faradays suficiente
para transferência de 2 e 8 elétrons/molécula, obtendo-se rendimentos de 20,5 e
34% para cicloexanona e 8 e 50% para o ácido adípico, respectivamente.
A oxidação da cicloexanona com 6 elétrons/molécula originou como único produto
o ácido adípico, com 65% de rendimento. Esta oxidação foi realizada para
demonstrar que o caminho reacional de formação do diácido a partir do álcool
passa pelo intermediário cetona.
O álcool ciclopentílico, passando-se número de Faradays correspondente a 2
elétrons/molécula, foi oxidado a ciclopentanona com rendimento de 73%.
Passando-se número de Faradays correspondente a 8 elétrons/molécula, obteve-se
13% de ciclopentanona e 27% de ácido glutárico, mais uma mistura complexa de
produtos não identificados. Observando-se os rendimentos obtidos nota-se que a
oxidação do álcool ciclopentílico foi mais seletiva que a do cicloexanol.
Na oxidação do álcool alílico houve uma queda rápida da corrente, indicando
possivelmente passivação do eletrodo de trabalho por adsorção de materiais
orgânicos. Neste caso foi feita a eletrólise a potencial constante (+1,6V vs.
ECS) sendo necessário usar uma técnica diferente da usada nas outras oxidações.
Quando a corrente diminuiu para valores residuais, aplicou-se um potencial
igual a -0,2V por alguns segundos para promover a dessorção do material
orgânico. Em seguida, reaplicou-se o potencial de +1,6V, conseguindo-se assim
uma corrente maior. Este procedimento foi repetido sucessivamente. Como a massa
extraída foi muito pequena (139mg) correspondendo a uma mistura complexa de
produtos não identificados, supõe-se que houve fragmentação da molécula do
álcool durante a reação, formando produtos voláteis que não puderam ser
isolados e identificados.
O álcool benzílico foi oxidado a benzaldeído passando-se 2 e 4 elétrons/
molécula, com rendimentos de 81 e 85%, respectivamente. Este resultado mostra a
grande seletividade deste meio reacional em relação a este substrato, pois o
benzaldeído não foi oxidado a ácido benzóico nem mesmo passando-se excesso de
elétrons por molécula.
O álcool p-metóxi-benzílico sofre oxidação direta no eletrodo de platina na
faixa de potencial utilizado nestas oxidações. Mesmo assim foi feita a oxidação
do álcool p-metóxi-benzílico com e sem oxidante para detectar se o produto
seria o mesmo. Observou-se então que, com o cério, o único produto obtido foi o
p-metóxi-benzaldeído com 98% de rendimento e que sem o cério os produtos foram
p-metóxi-benzaldeído e ácido p-metóxi-benzóico com rendimentos de 95 e 3%,
respectivamente. Apesar da diferença ser pequena, pode-se dizer que a
seletividade na oxidação com o mediador cérioIV é maior do que sem ele.
As oxidações realizadas do 1,4-butanodiol tiveram um comportamento esperado do
ponto de vista eletroquímico, com altas correntes devido à presença de duas
hidroxilas oxidáveis na mesma molécula. Foi, aqui, possível aplicar corrente na
faixa de 200-100 mA e demonstrar que o material de partida consumiu todo o
CeIVgerado. Isto foi confirmado pela ausência do substrato após a reação. No
entanto, esta alta reatividade conduziu a uma ausência de seletividade,
obtendo-se uma mistura complexa de produtos que impossibilitou sua separação e
identificação.
O álcool ftálico foi oxidado a ftalida, aldeído ftálico e ácido ftálico com
rendimentos de 60, 28 e 9%, respectivamente, sem a formação da 4-hidróxi-
ftalida. Pode-se notar que este meio é mais adequado para a formação
preferencial da ftalida do que aquele por nós descrito anteriormente17c,e.
O mecanismo proposto para estas oxidações20 nas quais um mol de elétrons é
transferido ao substrato por um mol do mediador, é aquele mostrado
esquematicamente na figura_1, onde ocorre primeiro formação de cátion radical
no oxigênio seguido de perdas sucessivas de mais um elétron e dois H+ com
formação da carbonila (-2e- e -2H+). No caso de um álcool primário, o aldeído
formado sofre nova oxidação obtendo-se ácido carboxílico e um álcool secundário
é oxidado diretamente à cetona.
A figura_1 propõe também a abertura do anel na oxidação de cetonas cíclicas, (-
8e-, -8H+ e +3H2O). Como ficou demonstrado para a oxidação da cicloexanona,
onde obtem-se produtos de cadeia aberta, ácidos dicarboxílicos, supõe-se que
também a oxidação do ciclopentanol passe pela formação intermediária da cetona
correspondente.
A ftalida é um produto gerado pela oxidação de apenas uma das hidroxilas do
álcool ftálico a aldeído, que forma um hemiacetal com a hidroxila vizinha. A 4-
hidroxiftalida se oxida, subseqüentemente, à ftalida. A não ocorrência da 4-
hidroxiftalida como produto e a maior proporção da ftalida obtida na mistura de
outros dois produtos em quantidades inferiores, indica fortemente a existência
das condições de seletividade devido ao uso do sistema bifásico nesta oxidação.
CONCLUSÃO
Os resultados obtidos mostram que o método é eficiente para as oxidações de
álcoois e dióis e que em alguns casos, como nas oxidações dos álcoois
ciclopentílico, benzílico, p-metóxi-benzílico e ftálico, houve seletividade
reacional. Esta se deve ao fato de que os álcoois e dióis são substâncias
hidrofílicas e são oxidadas pelo CeIV contido na fase aquosa. As cetonas,
aldeídos e lactonas utilizadas são substâncias hidrofóbicas que, uma vez
produzidas, ficam dissolvidas na fase orgânica não entrando em contato com o
oxidante na fase aquosa. No caso do pentanal, uma pequena solubilidade em água
conduz à sua transformação em ácido pentanóico.