Instrumentos legais podem contribuir para a restauração de florestas tropicais
biodiversas
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INTRODUÇÃO
O objetivo central da restauração florestal é o restabelecimento de florestas
que sejam capazes de se autoperpetuar, ou seja, florestas biologicamente
viáveis e que não dependam de intervenções humanas constantes. De forma geral,
as iniciativas de restauração de florestas tropicais visam ao comprimento da
legislação ambiental, ao restabelecimento de serviços ecossistêmicos e\ou a
proteção de espécies nativas locais. Essas demandas, predominantemente de ordem
local, somam-se, agora, a outra que opera nas escalas de paisagem, para
potencializar os serviços de conservação da biodiversidade prestados pelas
paisagens muito antropizadas (TABARELLI et al., 2010). Nesse contexto, a
diversidade biológica não é apenas variável-chave para a obtenção de florestas
viáveis e que são naturalmente ricas em espécies (i.e. florestas biodiversas),
mas representa, também, alvo importante das próprias ações de restauração. Além
disso, a adequação ambiental de setores produtivos, possível através da
restauração, em muitos casos representa ganho de mercado e maior geração de
emprego e renda, que dá dimensão econômica direta importante para as práticas
de restauração.
Restauração ecológica é uma prática que ainda necessita de muitos avanços para
que atinja a efetividade necessária, especialmente em regiões de ocorrência de
florestas tropicais e subtropicais biodiversas, cujos remanescentes estão
totalmente inseridos em paisagens fragmentadas e degradadas (i.e. as paisagens
antrópicas). Justamente nessas condições mais críticas, a restauração ecológica
tem de ser muito mais do que a aplicação de um simples pacote de técnicas
silviculturais, acreditando-se que a diversidade biológica e os processos
ecológicos serão restabelecidos por si só, em situações que já ultrapassaram o
nível crítico da resiliência. Nesse contexto, a restauração ecológica deve
assumir a difícil responsabilidade de restabelecer os processos ecológicos
necessários ao estabelecimento de florestas viáveis, para que estas prestem os
serviços almejados, sejam serviços ambientais, de conservação de
biodiversidade, ou de fornecimento de produtos florestais, salvaguardando,
assim, os interesses maiores da sociedade, a qual paga por esse tipo de
investimento na formas de iniciativas públicas e privadas.
No Brasil, a limitação de conhecimentos aplicados e específicos de restauração
ecológica de florestas tropicais, a escassez de profissionais com capacitação
nesse tema e a intensa demanda por ações emergenciais de restauração
resultaram, nas últimas décadas, em uma infinidade de iniciativas mal sucedidas
e de pouca efetividade (BARBOSA et al., 2003; SOUZA e BATISTA, 2004; RODRIGUES
et al., 2009a). Embora tais iniciativas tenham trazido inúmeros prejuízos
econômicos e até mesmo ecológicos, em função, por exemplo, da adoção de
espécies de plantas exóticas e invasoras, eles também apontaram caminhos a
serem seguidos para que as ações de restauração ecológica atingissem um nível
aceitável de efetividade, seja nos estabelecimento de florestas viáveis, seja
na obtenção dos serviços ambientais esperados. Além das observações oriundas
dessas experiências empíricas, os experimentos realizados por instituições de
pesquisa nesse período passaram, também, por diferentes fases, inúmeras
discussões e muitas polêmicas, o que é previsível e recomendado no âmbito de
pesquisas de caráter aplicado e tecnológico, como a restauração florestal.
Diversos encontros, reuniões e simpósios ocorreram nos últimos 20 anos no
Brasil, colocando em dúvida a aplicação de vários conceitos no contexto da
restauração florestal. Duas dúzias de eventos (e.g. cursos, simpósios,
encontros e workshops) coordenados pelo Instituto de Botânica de São Paulo e
com mais de 5.000 pessoas foram realizados entre 2000 e 2009 sobre a temática
da restauração ecológica. Dentro desse contexto democrático de construção e
organização do conhecimento e geração de tecnologia por pesquisadores, agentes
públicos e profissionais, foi elaborada uma resolução estadual orientadora ou
norteadora para a restauração ecológica, alicerçada no conhecimento empírico e
científico existente até o momento sobre a restauração florestal no Brasil e no
exterior (i.e. SMA-08 disponível em: www.cetesb.sp.gov.br/licenciamentoo/
legislacao/estadual/resolucoes/2007_Res_SMA_8.pdf). Portanto, esse avanço da
legislação no Estado de São Paulo foi fruto de pesquisa, discussão ampla,
aplicação prática do conhecimento e revisão permanente dos erros e acertos.
Desde sua primeira versão em 2001, essa resolução tem sido periodicamente
revisada e atualizada em workshops que reúnem mais de 200 profissionais em
média, os quais aprimoram o conteúdo da resolução com base nos avanços
científicos e experiências pessoais. Destaca-se na resolução atual, a demanda
por um mínimo de 80 espécies nativas regionais ao final do processo de
restauração de florestas naturalmente biodiversas.
Os impactos positivos dessa resolução para a evolução da restauração ecológica
no Estado de São Paulo podem ser avaliados com base na riqueza de espécies
florestais nativas e no número de mudas produzidas destas espécies após a
publicação da primeira versão da resolução em 2001, o que retrata fielmente o
enorme incremento no número de ações de restauração no Estado, onde em 2001,
por exemplo, foram produzidas cerca de 13.000.000 mudas de espécies florestais
nativas em 55 viveiros florestais. Embora o conjunto de viveiros produzisse ou
já tivesse produzido 277 espécies ao todo, cada viveiro individualmente
produzia, em média, menos de 30 espécies nessa época (BARBOSA et al., 2003). Já
o diagnóstico de 2008 revelou a produção de 33.000.000 mudas de espécies
florestais nativas por ano em 114 viveiros florestais, os quais produziam no
conjunto 582 espécies e individualmente mais de 80 espécies (BARBOSA et al.,
2009). Esses resultados positivos tornaram a resolução um modelo de instrumento
legal a ser copiado por outros estados brasileiros, os quais se amparam na
experiência e histórico da prática de restauração ecológica no Estado de São
Paulo para a formulação de suas próprias políticas públicas estaduais sobre o
tema, também buscando corrigir as deficiências já observadas na restauração nos
respectivos estados.
O conteúdo da resolução paulista, principalmente seu foco na riqueza de
espécies de plantas como base da restauração ecológica de florestas
naturalmente biodiversas, é também um dos aspectos principais defendidos pelo
Pacto pela Restauração da Mata Atlântica (www.pactomataatlantica.org.br), onde
foi estabelecido o desafio coletivo de restauração de 15 milhões de hectares
até 2050. O Pacto é composto hoje por 135 membros, sendo 85 representantes de
ONGs e colegiados, 28 de órgãos governamentais, 16 da iniciativa privada e 6 de
instituições de pesquisa, demonstrando que o referencial teórico da resolução é
amplamente aceito pelos principais atores da restauração da Mata Atlântica, que
é o bioma mais ameaçado do Brasil e uma das florestas tropicais mais ameaçadas
do mundo (RODRIGUES et al., 2009a). No contexto da Mata Atlântica e da
conservação de sua biodiversidade, as florestas restauradas devem ser vistas
como elemento capaz de ampliar a probabilidade de persistência das espécies
nativas nas paisagens antrópicas, proporcionando a reintrodução (via mudas ou
sementes) de espécies de plantas já extintas local ou regionalmente, oferecendo
novas áreas de habitat florestal rico em espécies, aumentando a conectividade
estrutural e funcional da paisagem, reduzindo os efeitos de borda ao redor de
unidades de conservação e restabelecendo fluxos ecossistêmicos. Ou seja, a
restauração ecológica é uma ferramenta-chave no planejamento e implementação de
ações de conservação da biodiversidade (TABARELLI et al., 2010).
Diante do potencial da restauração ecológica como instrumento de conservação da
biodiversidade e de adequação ambiental da atividade de produção agrícola, mas
também como ferramenta para a obtenção de florestas viáveis e fornecedoras de
serviços ambientais, é necessária ampla discussão pública para que sejam
apontadas as vantagens, limitações e oportunidades de melhoria das ações de
restauração em paisagens antrópicas, como a elaboração de instrumentos legais
orientadores dessa atividade. Assim, o debate científico em torno do conteúdo
da resolução estadual paulista, que será utilizada de modelo para essa
discussão, vai permitir uma oportunidade de grande valia para o avanço da
restauração ecológica no estado de São Paulo, no Brasil e no mundo.
Histórico da restauração ecológica no Estado de São Paulo e a demanda por um
mecanismo legal orientador dessa atividade
O Brasil apresenta legislação ambiental com características únicas no mundo,
estabelecidas em 1965 pelo Código Florestal. Por meio dessa lei, ficaram
estabelecidas e regulamentadas as Áreas de Preservação Permanente (APPs), nas
quais os esforços de restauração ecológica têm-se concentrado, a fim de atender
à legislação e restabelecer os serviços ambientais realizados pelas florestas
alocadas ao longo dos cursos d'água, principalmente. Embora o uso econômico das
APPs seja vedado desde 1965, pois estas devem servir exclusivamente para a
conservação da biodiversidade e manutenção dos serviços ambientais, a maioria
delas ainda continua sendo muito utilizada para atividades de produção. No
entanto, a restauração ecológica dessas áreas só é obrigatória quando for
aplicada uma penalidade legal pelo seu uso indevido. Nessas situações, é
legítimo que o estado estabeleça parâmetros mínimos que deverão ser seguidos no
processo de regularização ambiental, os quais podem ser definidos, por exemplo,
por meio de uma resolução estadual. Inclusive, o cumprimento integral das
disposições contidas na resolução só será exigido (ver artigo 4º) nos casos de
requisitos de licenciamento ambiental, de cumprimento de termos de ajustamento
de conduta ou de reparação de danos ambientais, objetos de autuações
administrativas e projetos implantados com recursos públicos. Assim, essa é uma
forma legítima de o Estado exigir um mínimo de qualidade na mitigação, ou
reparação de danos ambientais, que afetam a sociedade diretamente. No entanto,
vale destacar que nos casos de restauração voluntária dessas áreas essa
resolução tem importante papel orientador, buscando garantir a efetividade e a
viabilidade dessas ações. A exemplo da resolução paulista, o Código Florestal
constitui, também, um bom exemplo de instrumento legal que visa garantir a
prestação de serviços ambientais pelos ecossistemas, bem como a conservação da
biodiversidade que lhes é inerente (METZGER, 2010).
A ação mais efetiva dos órgãos públicos fiscalizadores e licenciadores nos
últimos 20 anos com relação ao uso irregular dessas APPs, somada à maior
exigência de certificação ambiental de produtos agrícolas e florestais (FSC,
ISO 14001, Selo Verde, Etanol Verde, Boi Verde, Rainforest Alliance e selos
orgânicos de forma geral) e a crescente preocupação da sociedade com questões
ambientais, aumentaram consideravelmente a pressão por ações de restauração
ecológica nessas áreas, impulsionadas primariamente pelo objetivo de proteção
dos recursos hídricos.
No início do processo de regularização ambiental das APPs no Estado de São
Paulo, a restauração era conduzida, principalmente, por meio do plantio de
algumas espécies nativas e exóticas, algumas delas invasoras, mas sem
combinação sucessional, o que elevava muito o tempo e os custos para a obtenção
de uma vegetação de porte florestal ou a fisionomia florestal almejada.
Buscando maior eficiência na produção de uma cobertura florestal em iniciativas
de larga escala espacial, deu-se inicio a uma segunda fase da restauração no
Estado, na qual se privilegiou o plantio de espécies nativas pioneiras
(RODRIGUES et al., 2009a b). Nesse momento, a restauração passou a ser
interpretada do ponto de vista mais ecológico, incorporando o conceito de
sucessão florestal e privilegiando o uso de espécies da flora nativa
brasileira, mas não necessariamente regionais. Na busca por iniciativas mais
eficientes de restauração, tanto em termos de resultados quanto de custos,
houve maior aproximação com os institutos de pesquisa e com as universidades,
as quais fundamentaram suas recomendações na ecologia das florestais tropicais
e formações florestais brasileiras, criando novas estratégias de restauração
com base, principalmente, no conceito de sucessão secundária (KAGEYAMA e
GANDARA, 2004).
Para acelerar a obtenção de uma fisionomia florestal numa área degradada,
privilegiou-se, muitas vezes, a realização de plantios com grande número de
indivíduos de poucas espécies arbóreas pioneiras, mais com número bem menor de
indivíduos das espécies dos estágios sucessionais finais ou tardios da sucessão
(SOUZA e BATISTA, 2004). Apesar de em poucos anos (2 a 3 anos) esses plantios
terem sido capazes de formar uma fisionomia florestal, essas florestas
mostraram-se biologicamente inviáveis, pois entraram em declínio com menos de
20 anos de idade. Esse fato decorreu, em grande parte, devido ao ciclo de vida
curto da maioria dos indivíduos plantados, da mortalidade sincrônica das
árvores do dossel, do baixo número de indivíduos de espécies mais longevas e da
chegada insatisfatória de sementes de espécies típicas da floresta madura ou de
seus estágios sucessionais mais tardios, por conta da degradação da paisagem
regional (BRANCALION et al., 2009a). A senescência dos indivíduos pioneiros
permitiu a reinvasão dessas áreas por gramíneas exóticas agressivas, as quais
já estavam presentes na área antes do plantio das plantas nativas. Na verdade,
as gramíneas se mantiveram no banco de sementes e de plântulas durante todo o
período de persistência da floresta restaurada, por meio da entrada de luz pela
borda e pelo dossel aberto por árvores decíduas na estação seca.
Em síntese, o simples plantio de uma população pioneira, com baixa riqueza e
elevada dominância, embora capaz de sombrear rapidamente o solo e inibir
temporariamente as gramíneas, mostrou-se insuficiente para desencadear o
processo de sucessão secundária, o qual, via substituição direcional de vários
grupos, deveria originar uma floresta biologicamente viável. Esse padrão
emergiu, principalmente, em paisagens com longo histórico de degradação e
resiliência severamente comprometida pela ausência de produção\movimentação de
sementes de espécies de florestas maduras. Infelizmente, esse tipo de paisagem
já predomina em várias regiões tropicais, a exemplo da Floresta Atlântica
brasileira (TABARELLI et al., 2008).
Os insucessos resultantes dessa abordagem ou estratégia baseada em riqueza e
diversidade de espécies reduzida (i.e. baixa diversidade) trouxeram
significativos prejuízos econômicos, já que a maioria dessas iniciativas teve
que ser refeita uma ou mais vezes para se efetivar. Considerando os 15 milhões
de ha potenciais para a restauração ecológica no domínio da Mata Atlântica do
Brasil no âmbito do Pacto pela Restauração da Mata Atlântica (http://
www.pactomataatlantica.org.br) e que a implantação e manutenção por dois anos
de reflorestamentos com espécies nativas (cerca de 1.700 indivíduos/ha) tem um
custo variável entre R$6.000,00 e R$10.000,00/ha, conclui-se que é possivel
desperdiçar bilhões de reais nesse processo caso não se adotem técnicas que
permitam a restauração de florestas biologicamente viáveis ou autoperpetuáveis
(BARBOSA et al.,2003). O grande montante de recursos a serem investidos na
restauração ecológica pelas empresas, sociedade civil e governos só se
justifica se essa atividade de fato trouxer os resultados esperados, de forma
que um nível mínimo de qualidade deve ser exigido como mecanismo legítimo de
proteção dos interesses coletivos envolvidos nessa atividade. Nesse sentido, os
atores da restauração ecológica do Estado de São Paulo passaram a buscar
mecanismos técnicos e legais que coibissem a reincidência desses erros do
passado e possibilitassem maior efetividade ecológica e exequibilidade
financeira das ações de restauração no futuro.
O Ponto mais controverso dessa Resolução: a orientação de ações que resultem,
ao final do processo de restauração, numa diversidade florística compatível com
o ecossistema de referência
Entre as diversas recomendações presentes nessa resolução, podem-se citar (1) a
caracterização do solo, visando criar as condições adequadas para a
restauração; (2) o diagnóstico prévio da área visando definir prioridades de
restauração baseadas nas características da paisagem regional e particularizar
as ações de restauração para cada situação da paisagem, em função da
resiliência dessas áreas; (3) a explicitação de outras possíveis metodologias
de restauração, que não apenas o plantio de mudas, como a nucleação, a condução
da regeneração natural, a semeadura direta etc.; (4) a possibilidade do uso de
sistemas agroflorestais, como metodologia de manutenção das áreas em processo
de restauração; e (5) o uso de um mínimo de espécies atrativas da fauna e de
espécies raras ou ameaçadas de extinção. Essas recomendações nada mais são do
que o resultado do referencial teórico e da experiência prática da maioria dos
profissionais envolvidos com a restauração ecológica no Estado. Entre tais
orientações, destaca-se a recomendação para que sejam estabelecidas ações de
restauração que garantam diversidade florística compatível com o ecossistema de
referência nas áreas restauradas, incluindo nisso os conceitos de riqueza e de
equabilidade. Essa recomendação é a que mais recebeu destaque na publicação
dessa resolução, tendo provavelmente sido o principal gerador deste debate.
Diante disso, torna-se necessário transcrever o conteúdo desse artigo (SÃO
PAULO, 2007), para que não haja interpretações equivocadas: "em áreas de
ocorrência das formações de Floresta Ombrófila, de Floresta Estacional
Semidecidual e de Savana Florestada (cerradão), a recuperação florestal deverá
atingir, no período previsto em projeto, o mínimo de 80 espécies florestais
nativas de ocorrência regional". Dessa forma, fica claro que esse nível de
riqueza só será cobrado ao final do processo de restauração, que pode durar de
poucos até dezenas de anos, dependendo do projeto, e apenas para florestas
tropicais que naturalmente são de elevada riqueza. O questionamento dessa
orientação da resolução causa estranheza, pois será que algum restaurador de
regiões tropicais não pretende que suas áreas restauradas tenham elevada
riqueza ao final do processo de restauração? Nesse sentido, mais uma reflexão
merece destaque, pois se pode considerar o uso de uma espécie altamente
invasora como Pinus elliottii como facilitadora da restauração, mesmo que em 11
anos apenas duas dezenas de espécies nativas regenerem em seu sub-bosque (MODNA
et al., 2010)? Nota-se, também, que não é exigido qualquer número mínimo de
espécies ao final do processo de restauração de formações florestais ou outros
tipos de vegetação que não tenham a elevada riqueza como característica natural
ou que sejam mais complexas de restaurar, dadas as limitações do meio físico,
tal como florestas de restinga, florestas deciduais, florestas paludosas e
manguezais (ver artigo 7º da Resolução). Diante da importância dessa
recomendação no contexto da Resolução, do ponto de vista de restauração e,
consequentemente, deste estudo, justifica-se maior detalhamento do referencial
teórico que embasou a ênfase dada à biodiversidade nessa Resolução e na
restauração ecológica de forma geral.
Como não incluir a biodiversidade como base para a restauração ecológica de
Hotspots de alta diversidade?
O Estado de São Paulo está incluído na área de abrangência dos biomas Cerrado e
Mata Atlântica, os quais constituem, respectivamente, o segundo (~2 milhões de
km2) e o terceiro (~1,3 milhão de km2) maiores biomas brasileiros (IBGE, 2006).
A Mata Atlântica é um bioma único caracterizado por alta diversidade de
espécies e altos níveis de endemismo, com riqueza de plantas estimada em 20.000
espécies, das quais 8.000 são endêmicas (MITTERMEIER et al., 2004). Da mesma
forma, o Cerrado apresenta características de extraordinário valor para a
conservação, com cerca de 10.000 espécies vegetais, das quais aproximadamente
4.400 também são endêmicas (MITTERMEIER et al., 2004). Apesar do inestimável
valor biológico desses biomas, estes se encontram seriamente ameaçados. A
cobertura natural da Mata Atlântica no Brasil foi reduzida para menos de 15% de
sua área, e 80% dos remanescentes têm menos de 50 ha (RIBEIRO et al., 2009;
TABARELLI et al., 2010), o que também ocorreu no Cerrado, que teve sua
cobertura reduzida em mais de 70% (KLINK e MACHADO, 2005). Por essas
características, Cerrado e Mata Atlântica foram identificados como "hotspots",
ou seja, ecossistemas prioritários para a conservação da biodiversidade global
(MYERS et al., 2000).
No Estado de São Paulo, essa situação é ainda mais crítica. Embora a Floresta
Ombrófila Densa se encontre em melhor estado de conservação, com ainda 42% de
sua área remanescente, o mesmo não se observa com as demais formações
florestais. Houve drástica redução da cobertura de Cerrado e de Floresta
Estacional Semidecidual para 8,5% e 8,2%, respectivamente (RODRIGUES e BONONI,
2008), justamente pelo fato dessas formações ocorrerem em ambiente de elevada
aptidão agrícola. Além disso, os poucos remanescentes desses tipos
vegetacionais têm sido historicamente degradados pela extração de madeira,
caça, incêndios, invasão de gado e diversos impactos decorrentes da atividade
agrícola do entorno e da altíssima fragmentação (TABARELLI et al., 2005;
DURIGAN et al., 2007). Consequentemente, as paisagens que abrigam remanescentes
desses ecossistemas demandam ações urgentes de restauração ecológica com o
objetivo de garantir a persistência de florestas biologicamente viáveis,
ampliando as chances de permanência da biodiversidade nativa e garantindo os
serviços ambientais que tanto interessam à sociedade (TABARELLI et al., 2005,
2010). Em outras palavras, nas paisagens antrópicas as florestas restauradas
podem realizar um serviço de conservação da biodiversidade complementar ao
realizado pelas unidades de conservação e até ampliar o papel dessas áreas via
expansão das conectividades estrutural e funcional da paisagem.
Coerência das ações de restauração ao ecossistema de referência
A escolha e caracterização do ecossistema de referência são fundamentais para
orientar as ações de restauração ecológica (ARONSON et al., 1995; CLEWELL e
ARONSON, 2007). Com base no ecossistema de referência é que se definem alguns
atributos necessários para que determinada área seja considerada como
restaurada (SERI, 2004), entre os quais se destaca, para a restauração de
florestas tropicais, a elevada diversidade de espécies vegetais. Para se ter
uma ideia da riqueza encontrada nas três formações florestais para as quais se
requerem no mínimo 80 espécies arbustivas e arbóreas ao final do processo de
restauração, cabe observar os resultados obtidos nos levantamentos florísticos
das espécies dessas formas de vida de três áreas de 10 ha inseridas em Unidades
de Conservação do Estado de São Paulo pelo Projeto Parcelas Permanentes (BIOTA/
FAPESP). Foram encontradas nas parcelas de Floresta Estacional Semidecidual,
Cerradão e Floresta Ombrófila Densa, respectivamente, 148, 116 e 205 espécies
com circunferência à altura do peito superior a 15 cm (Parcelas Permanentes,
2006). Considerando a paisagem regional em levantamentos florísticos visando à
escolha de espécies para a restauração ecológica em 21 projetos realizados no
âmbito do Programa de Adequação Ambiental do LERF/ESALQ/USP, foram encontradas
238 ± 65 (média ± desvio-padrão) espécies arbustivas e arbóreas nativas
(RODRIGUES et al., 2010). Além da riqueza per se, boa parte dos padrões
funcionais que caracterizam o ecossistema de referência, tal como a estrutura
das comunidades, as interações ecológicas, a composição funcional e os
processos biogeoquímicos, estão fortemente correlacionados com a riqueza de
espécies presentes na floresta restaurada (JONES et al., 1994).
Florestas pobres em espécies, sejam elas naturais ou restauradas, apresentam
baixa diversidade funcional e, dessa forma, são menos capazes de reter
biodiversidade e prestar uma gama maior de serviços ambientais. É importante
salientar que em muitos casos a restauração florestal leva ao estabelecimento
de pequenos fragmentos de floresta, os quais, como fragmentos, tendem
naturalmente a se estabilizar como sistemas sucessionais iniciais em paisagens
extremamente fragmentadas (TABARELLI et al., 2008).
Caso se tenha conhecimento científico consistente sobre processos envolvidos na
reconstrução das florestas que permitissem identificar se existe e quem são as
poucas espécies facilitadoras que promovessem, através da sucessão secundária,
o acúmulo gradual e garantido da biodiversidade em diferentes condições de
degradação, poderia ser revista a necessidade de um número mínimo de espécies a
serem adotadas inicialmente em alguns casos. Enquanto isso não ocorre, a
responsabilidade de cada um de nós é buscar o máximo de diversidade possível no
processo de restauração para ampliar as chances de se estabelecerem florestas
biologicamente viáveis e que auxiliam na manutenção da diversidade biológica
nas paisagens antrópicas, como forma de evitar a erosão do patrimônio ou ativo
biológico abrigado nos ecossistemas nativos.
Criação de microssítios heterogêneos de regeneração e favorecimento da sucessão
secundária em paisagens muito fragmentadas
A grande diversidade de árvores do dossel e do estrato emergente das florestas
tropicais exerce papel fundamental na criação e manutenção de microssítios
particulares de regeneração, dadas as variações de altura, tamanho de copa,
densidade de folhagem, épocas, intensidade (perenifólias, caducifólias e
semicaducifólias) e duração do período de perda foliar (MONTGOMERY e CHAZDON,
2001; GANDOLFI et al., 2007). Além das variações de microclima resultantes
dessas diferentes características das árvores do dossel (NICOTRA E CHAZDON,
1999), a riqueza de microssítios de regeneração é acentuada pelos efeitos da
deposição e constituição da serapilheira nas plântulas (MOLOFSKY E AUGSPURGER,
1992; GUILLMAN e OGDEN, 2005), na germinação (VÁZQUEZ-YANEZ et al., 1990), na
mineralização de nutrientes (ZINKE, 1962; MONTAGNINI e SANCHO,1990), na
liberação de aleloquímicos (BORGES et al., 1993) e na interação com
microrganismos (LAMBAIS et al., 2006; MITCHELL et al., 2010).
As diferentes espécies florestais, submetidas a esse ambiente temporal e
espacialmente heterogêneo, não se distribuem nele de forma homogênea ou
independente das variáveis ambientais. Ao contrário, essas especies se
estabelecem devido a diferenças de tolerância às condições ambientais e têm a
ocorrência selecionada em algum nível pela distribuição dessa heterogeneidade.
Assim, qualquer floresta restaurada terá de formar com o tempo um dossel
diversificado, a fim de criar as condições adequadas de microclima e de
microssítio de regeneração para que diferentes espécies tolerantes à sombra,
que são a maioria das espécies nas florestas tropicais e subtropicais, possam
se estabelecer e regenerar no sub-bosque, além de outras formas de vida como as
epífitas e as trepadeiras (SIQUEIRA-FILHO e TABARELLI, 2006; BRANCALION et al.,
2009b). Dessa forma, a composição, riqueza, abundância e arranjo espacial das
espécies do dossel irão afetar, em curto e longo prazos o grau de
heterogeneidade ambiental existente no sub-bosque e do próprio dossel da
floresta em restauração. Em paisagens muito fragmentadas, degradadas e com
menor cobertura de vegetação nativa, o aporte de novas espécies de dossel e
subdossel na área restaurada tende a ocorrer de forma lenta e pouco abundante,
limitando a heterogeneidade desse estrato caso as espécies vegetais não sejam
introduzidas na área via ações de restauração.
Utilizando inicialmente muitas espécies pioneiras e tardias de dossel e sub-
dossel, dispostas num arranjo espacial favorável e com abundância adequada,
pode-se conseguir a formação de um dossel predominantemente de pioneiras e
ambiente florestal em apenas dois anos. Gradualmente nos primeiros 10 a 20 anos
da restauração, a presença dessas pioneiras no dossel vai se reduzir, e elas
serão aos poucos substituídas por espécies tolerantes à sombra e de estágios
sucessionais mais avançados, aumentando gradualmente a heterogeneidade
florística e arquitetural desse estrato. As estratégias de restauração
ecológica devem, assim, garantir que espécies pioneiras, secundárias e clímax
estejam presentes numa abundância e distribuição espacial adequadas, a fim de
permitir que o dossel seja continuamente refeito através de um processo de
substituição sucessional, o que aumenta as chances de que o processo de
sucessão secundária ocorra localmente. Na floresta madura, esse estrato
permanecerá como um mosaico em que as espécies pioneiras e secundárias estarão
presentes, porém com menor abundância, predominando as espécies mais
climácicas.
Outro fator de suma importância para aumentar a previsibilidade da sucessão
secundária são o aporte de sementes nas áreas restauradas e o consequente
desenvolvimento do sub-bosque, possibilitando a viabilidade e a persistência da
floresta no tempo. Em condições de elevada fragmentação e degradação, a
introdução de dezenas de espécies nativas na área restaurada pode assegurar a
produção de sementes dos diferentes grupos ecológicos que compõem o dossel,
subdossel e o estrato emergente no próprio local e, assim, possibilitar a
regeneração e manter a heterogeneidade da floresta em formação durante a
sucessão. Dossel florestal permanente e diversificado pode ser, também,
fundamental para garantir o recrutamento contínuo de diferentes grupos
ecológicos de plantas, os quais atingem a floresta restaurada via movimentação
lenta de sementes na paisagem (MELO et al., 2006).
Recursos para polinizadores e dispersores
Um dos principais resultados do processo evolutivo nas florestas tropicais e
subtropicais é a coexistência de grande número de espécies vegetais. Juntamente
com essas espécies, também evoluíram as espécies polinizadoras e dispersoras de
sementes (KEARNS et al., 1998; BASCOMPTE et al., 2006). Como a maioria das
espécies de florestas tropicais é alógama (BAWA, 1974; CASTRO, 2007) e tem suas
sementes dispersas por animais (SEIDLER e PLOTKIN, 2006; ALMEIDA-NETO et al.,
2008), a presença de polinizadores e dispersores de sementes é requisito para a
viabilidade biológica das florestas restauradas e consequentemente para sua
perpetuação no tempo. Caso a oferta de recursos a esses organismos seja
escassa, pouco diversificada ou restrita a certos períodos do ano, a abundância
e diversidade de agentes polinizadores e dispersores serão também restritas, o
que certamente pode comprometer a perpetuação das florestas restauradas e o
papel delas na conservação da biodiversidade regional (SILVA, 2003). Dessa
forma, em situações em que o aporte de sementes oriundas de fragmentos
florestais remanescentes do entorno seja limitado (BERTONCINI e RODRIGUES,
2008), o uso de métodos que garantam a presença de elevada diversidade de
espécies nativas regionais favorece a criação de uma rede de interações mais
complexa e contribui, assim, para a reconstrução de uma floresta funcional e
perpetuável. Uma vez que cada espécie em particular iniciará a produção de
flores e frutos em diferentes momentos, a presença de um grande número de
espécies de plantas amplia a base de recursos naturais para os organismos
consumidores durante o processo de sucessão, atraindo e mantendo populações de
polinizadores, dispersores, herbívoros e organismos dependentes. Ou seja, a
estruturação trófica da floresta restaurada dependerá, em grande parte, da
riqueza de estratégias biológicas incorporadas ao plantio inicial. Além de
favorecer a perpetuação das espécies introduzidas ou regeneradas na própria
área restaurada, a oferta regular e diversificada de recursos alimentares para
animais frugívoros favorece, também, a chegada de sementes oriundas de
fragmentos do entorno através da atração de maior diversidade e quantidade de
animais dispersores (SILVA, 2003; JORDANO et al., 2006).
Favorecimento de outras formas de vida vegetal, de insetos e de microrganismos
Almejar elevada diversidade de espécies arbustivas e arbóreas nativas nas áreas
em processo de restauração de paisagens fragmentadas não significa que se está
restaurando uma floresta pobre em formas de vida e estratégias biológicas
vegetais. No caso das lianas e epífitas, dois grupos de grande importância para
a manutenção da dinâmica de florestas tropicais, a ocorrência e distribuição
dessas espécies na floresta não se dão de forma aleatória, pois há preferências
específicas por árvores com determinadas características de tronco e estrutura
(ZIMMERMAN e OLMSTED, 1992; MUÑOZ et al., 2003). Assim, se quisermos que as
comunidades de epífitas e lianas sejam restabelecidas nas áreas restauradas a
médio e longo prazos, seja através de reintrodução das espécies ou da
recolonização natural, é preciso proporcionar diversidade de troncos e de
estruturas de copas, o que só é possível com a efetivação de uma grande
diversidade de arbustos e árvores (BELLOTTO et al., 2009). Microrganismos até
então desconhecidos pela ciência também demonstraram ter estreita relação com a
diversidade de árvores (LAMBAIS et al., 2006), evidenciando claramente que a
diversidade de microrganismos numa comunidade florestal deve estar diretamente
relacionada com a diversidade vegetal (MITCHELL et al., 2010). Não se deve
ignorar ainda a frequente especificidade de insetos fitófagos em relação às
espécies vegetais (Dyer et al., 2007), ressaltando-se novamente que uma
floresta complexa e funcional só poderá ser obtida caso elevada diversidade de
espécies vegetais regionais esteja presente na área restaurada.
Aumento da conectividade da paisagem
No contexto da conservação da biodiversidade, um dos principais benefícios
atribuídos à restauração ecológica tem sido o aumento da conectividade da
paisagem, o que reduz as chances de extinções locais em função de minimizar
restrições à migração, reduzir a vulnerabilidade a eventos estocásticos de
flutuação populacional e evitar problemas genéticos decorrentes do restrito
fluxo gênico (METZGER, 2003). Esse benefício é ainda maior em paisagens
antrópicas, onde os poucos, pequenos e muito degradados remanescentes de
florestas naturais estão separados por grandes distâncias (METZGER, 2009). Essa
maior interação ecológica das áreas restauradas com os remanescentes de
vegetação nativa contribui significativamente para que se restabeleçam as redes
complexas de interações que garantem o funcionamento das florestas, naturais ou
restauradas, e favoreçam a sobrevivência tanto das espécies vegetais como
também dos animais, insetos e microrganismos que dependem dessas plantas
(TABARELLI et al., 2005). Particularmente no caso da restauração de APPs
localizadas na condição ribeirinha, essas iniciativas resultam na reconstrução
de excelentes corredores ecológicos, interligando remanescentes florestais
antes isolados na paisagem regional. Contudo, dependendo da metodologia usada
para a restauração dessas áreas, elas poderão aumentar apenas a conectividade
estrutural, mas não a funcional. Para que um corredor ecológico seja funcional,
favorecendo consequentemente o fluxo de organismos, sementes e grãos de pólen
que somados constituem o fluxo gênico , o contraste entre a vegetação do
corredor e a do fragmento deve ser minimizado, de forma que esse corredor
possua características florísticas e fisionômicas as mais próximas possíveis
dos habitats presentes em suas extremidades (METZGER, 2003; TABARELLI et al.,
2010). Nesse contexto, a presença de elevada diversidade de espécies nativas
nas áreas em processo de restauração, que em paisagens muito fragmentadas é
obtida quase sempre por meio da introdução direta dessas espécies na área
através de ações diversas de restauração ecológica, pode, em muito, contribuir
para o aumento da conectividade funcional da paisagem e para a conservação da
biodiversidade na escala regional (RODRIGUES et al., 2009b).
Resgate de espécies vegetais vulneráveis e ameaçadas de extinção
Muitas vezes, argumenta-se que a conservação de espécies raras e ameaçadas não
deva ser alvo da restauração ecológica, mas sim de programas específicos para
essa finalidade. Contudo, em situações muito dramáticas para a conservação da
biodiversidade, como a dos Hotspots, verifica-se que o número de espécies
vulneráveis e ameaçadas de extinção é tão grande que estratégias pontuais têm
poucas chances de serem bem-sucedidas, já que o habitat dessas espécies foi
drasticamente reduzido e a própria paisagem não favorece os fluxos necessários
para minimizar os riscos de extinção local (Becker et al., 2009). Nessas
situações, as estratégias de conservação da biodiversidade devem, inclusive, se
estender para além dos limites das áreas protegidas, trabalhando de forma mais
integrada com a paisagem do entorno para se obter maior efetividade das ações
(TABARELLI et al., 2005; CHAZDON et al., 2009), como é o caso dos corredores de
biodiversidade.
Nesse contexto, a restauração ecológica de florestas tropicais surge como uma
das principais alternativas para o resgate e manutenção de espécies ameaçadas
de extinção, pois permite o restabelecimento do habitat dessas espécies, a
reintrodução de suas populações na paisagem regional e contribuem para a
conservação e reconexão de fragmentos florestais degradados que possam conter
essas espécies (TABARELLI et al., 2005; RODRIGUES et al., 2009b). Contudo, a
restauração ecológica só cumprirá essa missão se houver compromisso dos
restauradores com ela, levando para além das fronteiras das unidades de
conservação a preocupação com a restauração e conservação da diversidade
biológica. Caso não sejam adotadas medidas que incentivem o resgate dessa
elevada diversidade de espécies nativas regionais, principalmente aquelas
ameaçadas de extinção, por meio da restauração ecológica, dificilmente essas
espécies serão incorporadas à área restaurada. Isso porque as espécies
ameaçadas já foram, em sua maioria, extintas localmente ou tiveram suas
populações muito reduzidas nas paisagens antrópicas, tendo, assim, chances
mínimas de colonizar as áreas restauradas caso não tenham sido ali
reintroduzidas propositalmente pelas ações de restauração, tal como observado
em árvores com grandes sementes dispersas por vertebrados na Mata Atlântica
(SILVA e TABARELLI, 2000). Essa preocupação tem mudado, inclusive, o
entendimento do papel das áreas protegidas no Estado de São Paulo, que criou
uma Resolução estadual específica para possibilitar a coleta de sementes em
Unidades de Conservação (SÃO PAULO, 2008a), visando ao acesso a espécies
vegetais vulneráveis e ameaçadas de extinção, por meio do plantio de mudas ou
da semeadura nos remanescentes naturais e nas áreas em processo de restauração.
Essa preocupação está explícita no artigo 6º da Resolução.
Os problemas associados à Resolução são quase sempre o resultado de sua
interpretação e aplicação Equivocadas
A maioria das críticas normalmente feitas à Resolução paulista é reflexo de
equívocos em sua interpretação e aplicação, principalmente dessa versão mais
atual de 2007, que tentou corrigir a maioria das incoerências identificadas nas
versões anteriores. Logicamente, a restauração ecológica e por consequência a
própria resolução têm ainda muito a evoluir para garantir a restauração de
florestas biodiversas autoperpetuáveis, incorporando conceitos de grupos
funcionais, de diversidade genética, de incorporação de outras formas de vida,
de mudanças climáticas, de processos biogeoquímicos etc. (RODRIGUES et al.,
2009a). Contudo, é evidente que para o atual estado da arte da restauração
ecológica essa resolução orientativa tem contribuído significativamente para o
ganho de qualidade das ações de restauração, conforme descrito anteriormente.
Visando contra-argumentar as principais críticas feitas à Resolução SMA-08, nos
tópicos subsequentes são apresentadas as contestações dessas críticas com base
no referencial conceitual da restauração e na própria aplicação prática da
Resolução, atentando para a relação custo-benefício das ações de restauração,
já que se trata de uma resolução de caráter orientador.
· As recomendações da resolução não estão respaldadas pela ciência: A grande
carência de conhecimentos científicos sobre a restauração ecológica de
florestas tropicais é um desafio a ser enfrentado. Cerca de 80% da pesquisa em
restauração ecológica publicada em periódicos internacionais tem sido conduzida
em países desenvolvidos (ARONSON et al., 2010), embora 26 dos 34 Hotspots
estejam inseridos em países tropicais em desenvolvimento (MYERS et al., 2000),
onde as pesquisas nessa área seriam mais necessárias. Tal descompasso entre a
pesquisa e a urgente demanda de ações de conservação e restauração nos países
em desenvolvimento sinaliza que não há tempo a perder e que políticas públicas
devem ser construídas em prol da biodiversidade e de seus valores, mesmo
considerando a grande carência de informações, adotando-se o princípio da
precaução. Por exemplo, a fundamentação científica do Código Florestal também
tem sido constantemente questionada, mas, quando se faz uma análise detalhada
das suas recomendações com base na própria ciência, verifica-se que seria
necessário maior rigor ainda no estabelecimento de parâmetros (METZGER, 2010).
Nesse contexto, a ciência não pode atuar como barreira para o avanço das
práticas e políticas públicas que visam potencializar os esforços de
conservação e restauração da biodiversidade remanescente, mas sim como
ferramenta de aperfeiçoamento constante e direcionadora de novos rumos, tal
como trabalhado nos constantes encontros de aperfeiçoamento e revisão da
Resolução. Apesar dessa carência de informações, vários dos trabalhos até então
publicados de ecologia, biologia da conservação e de restauração ecológica têm
destacado direta ou indiretamente o papel da biodiversidade para a sustentação
das ações de restauração de ecossistemas naturais de alta diversidade (as
referências utilizadas neste artigo são um exemplo disso), justificando sua
defesa inequívoca diante de uma postura menos comprometida com o papel central
que a biodiversidade deve ocupar na restauração ecológica.
· 80 espécies é um número arbitrário, sem significado ecológico: Se respeitarem
inteiramente as informações dos ecossistemas de referência para determinar o
número de espécies da restauração ecológica, a conclusão será de que 80
espécies representam um número reduzido se o foco é a restauração de florestas
naturalmente biodiversas. Esse patamar mínimo de 80 espécies a ser atingido no
final do processo de restauração foi definido pelos profissionais da
restauração ecológica do Estado de São Paulo, durante vários workshops de
discussão, como uma meta que poderia ser alcançada pelos viveiros florestais e
que também traria ganhos efetivos para a viabilidade biológica das áreas
restauradas. O enriquecimento induzido dessas áreas poderia ser feito já na
fase de plantio das mudas ou semeadura, ou ao longo de todo o processo de
restauração, usando-se para isso ações efetivas de restauração que promovessem
esse enriquecimento, como a atração de dispersores com poleiros naturais ou
artificiais, adição do banco de sementes de áreas naturais etc. Caso essas
ações não resultassem num incremento efetivo de espécies em prazo aceitável,
ações diretas de enriquecimento deveriam ser adotadas. Sem a adoção de um
critério mínimo de riqueza de espécies, estamos informando à sociedade que é
possível restaurar florestas biodiversas usando qualquer quantidade de espécies
vegetais. Oitenta espécies representam muito menos da metade da riqueza de
espécies arbustivas e arbóreas convivendo em um único hectare de florestas
tropicais e subtropicais, e como em qualquer mecanismo legal, alguns valores de
referência devem ser claramente definidos, pois qualquer possibilidade de
interpretação subjetiva de uma norma dificulta ou, mesmo, impede sua aplicação
por parte dos agentes públicos. Esse número adotado deverá sempre ser revisto,
e até mesmo ampliado, com a confirmação de sucesso da aplicação da Resolução na
restauração de áreas. Contudo, independentemente do número em si adotado pela
resolução para propor a restauração de florestas com maior diversidade, a
inserção de valores mínimos de diversidade vegetal a ser atingida na
restauração ecológica está amparada cientificamente como forma de sustentar os
processos ecológicos e o funcionamento dos ecossistemas (GRIME, 1997; LOREAU et
al., 2001; REY BENAYAS et al., 2009; WRIGHT et al., 2009).
· A Resolução coibiu as iniciativas de restauração ecológica: Esse fato, ou
tendência, não se confirmou nos últimos anos, já que na prática foi o período
em que mais houve incremento das iniciativas de restauração no Estado de São
Paulo e no Brasil, acompanhando a tendência mundial. Vale ainda destacar que
cada vez mais essas iniciativas estão em consonância com o preconizado na
Resolução estadual, apesar de ela ser apenas orientadora das iniciativas de
restauração. Isso é facilmente observado pelo crescimento no número de empresas
e instituições que implantam projetos de restauração ecológica, que produzem
sementes e mudas e que trabalham na captação de recursos para essas atividades.
· O cumprimento da Resolução encarece a restauração ecológica: A Resolução não
estabelece que a única metodologia de restauração é o plantio de mudas, o que
poderia, sim, aumentar o custo da restauração. Ao contrário, foi a primeira vez
que se estabeleceram instrumentos legais possibilitando o uso de outras
técnicas de restauração, a exemplo da condução da regeneração natural,
nucleação, semeadura direta etc. É verdade que, nas paisagens muito degradadas
e fragmentadas, onde o plantio de mudas ou sementes é indicado como prática
necessária de restauração, um dos principais fatores que favorecem atualmente o
uso de elevada diversidade florística de espécies nativas é justamente a
ausência de diferença de preço na implantação de reflorestamentos com alta ou
baixa diversidade de espécies. O custo da muda não varia entre as espécies em
todos os viveiros florestais do Estado (cerca de R$0,65, em tubetes de 56 cm3)
e também não varia com o número de espécies solicitado. A adoção de um valor
padrão para todas as espécies se baseia no fato de que a contribuição do valor
da semente no custo total da muda, que é o principal insumo para se obter a
diversidade, é pouco significativa. A maior parte dos custos da muda se refere
aos demais insumos, à infraestrutura e à mão de obra. Como também não há
diferença no custo de implantação do reflorestamento em função do número ou da
composição de espécies utilizadas, chega-se facilmente à conclusão de que não
há justificativa econômica para não utilizar elevada diversidade florística na
restauração ecológica nem a de que a Resolução encareça os projetos.
· Os profissionais dos órgãos públicos responsáveis pela elaboração de
projetos, licenciamento e fiscalização ambientais não detêm conhecimento para
aplicar a Resolução: Esse argumento apenas reforça a necessidade de capacitação
e atualização constante desses técnicos em restauração ecológica, o que é
estimulado no próprio artigo 13º da resolução, não constituindo, portanto, em
uma deficiência dessa Resolução. Por ter caráter orientador, baseando-se em
princípios de diagnóstico ambiental, de escolha de métodos diferenciados de
restauração para cada situação do diagnóstico e de estabelecimento de alguns
parâmetros indicadores do sucesso da restauração, a Resolução acaba por
auxiliar o trabalho desses técnicos. Diante da crescente demanda e execução de
projetos de restauração ecológica, é essencial que o poder público crie
estrutura adequada, de corpo técnico e infraestrutura, para orientar e
fiscalizar as ações de restauração ecológica, exercendo as funções que lhe
competem.
A adoção das recomendações da Resolução, com a adequação da escolha das
espécies, das abundâncias e do arranjo espacial, aumenta a previsibilidade de
sucesso na formação e manutenção de uma fisionomia e habitatflorestal que se
sustentem pelo menos em médio prazo (viabilidade biológica), mesmo que por
longo tempo não haja o aporte de novas espécies na área em restauração. O
estímulo via resolução dessa maior previsibilidade pode, de maneira prática,
minimizar a necessidade de frequente fiscalização, bem como reduzir os casos de
insucesso.
· A Resolução dificulta a restauração em pequenas propriedades: Para facilitar
a aplicação da resolução em pequenas propriedades, foi estabelecido que "a
recuperação florestal na pequena propriedade rural poderá ser assistida pelo
poder público, dispensando-se a apresentação de projeto técnico...". Além
disso, buscou-se estimular a restauração ecológica nessas pequenas propriedades
deixando expressa a possibilidade de plantio consorciado de espécies nativas
com espécies agrícolas, por até três anos, como forma de manutenção do
reflorestamento. Além disso, há uma Medida Provisória Federal (nº 2166-67 de
2001) e também uma Resolução estadual paulista (SÃO PAULO, 2008b) que permite o
uso de sistemas agroflorestais em APPs de propriedades familiares, onde essas
áreas desempenham importante papel social direto, possibilitando a conciliação
de objetivos conservacionistas e produtivos nessas situações. A Resolução
estadual fornece esse respaldo, não gerando, portanto, conflito.
· A Resolução estimula o uso de espécies exóticas e não regionais para que se
atinja numericamente as 80 espécies requeridas: A Resolução é bem clara na
descrição desse tema "... a recuperação florestal deverá atingir, no período
previsto em projeto, o mínimo de 80 espécies florestais nativas de ocorrência
regional". Dessa forma, um projeto com 60 espécies nativas regionais e outras
20 exóticas ou não regionais não cumpre a Resolução. Como as espécies exóticas
são usadas na restauração ecológica há muito mais tempo do que a própria
existência da Resolução, não é correto estabelecer esse vínculo causal. Cabe
ressaltar também que um dos principais motivadores da construção dessa
Resolução foi o uso abusivo de espécies exóticas nos projetos de restauração
ecológica, incluindo invasoras, antes ignoradas pelos órgãos fiscalizadores e
hoje definidas como tal na Resolução estadual, que cumpre novamente com seu
papel orientativo no processo de efetivação da restauração ecológica como
prática. Há, inclusive, a recomendação de controle inicial de espécies exóticas
em seu artigo 9º, evidenciando a preocupação com as invasões biológicas no
âmbito da restauração ecológica.
· A Resolução restringe o uso de outros métodos de restauração que não o
plantio de mudas: Conforme já comentado, na Resolução fica clara a total
liberdade para que o restaurador defina a metodologia ou conjunto de
metodologias mais adequadas para a área em questão, baseando-se no diagnóstico
prévio da resiliência da área, desde que essa ação de restauração resulte, ao
final do tempo estipulado em projeto (que não é fixo e depende da recomendação
do técnico que conduziu o trabalho), numa área restaurada com diversidade
minimamente compatível com o ecossistema de referência. Isso fica claramente
definido em seu artigo 5º - "a recuperação florestal exige diversidade elevada,
compatível com o tipo de vegetação nativa ocorrente no local, a qual poderá ser
obtida através do plantio de mudas e, ou, de outras técnicas, como nucleação,
semeadura direta, indução e, ou, condução da regeneração natural".
· A Resolução coíbe a pesquisa científica: A pesquisa científica é livre de
qualquer vínculo com a Resolução e, quando isso é feito, se deve exclusivamente
à interpretação equivocada de seu conteúdo. Nesse caso, ressalta-se ainda mais
a necessidade de conhecer o conteúdo da Resolução para que ela não seja
aplicada indevidamente e se atribuam críticas indevidas á sua funcionalidade.
Em seu Artigo 13º, a Resolução justamente estabelece linhas prioritárias de
pesquisa e capacitação em restauração ecológica para preencher as lacunas de
conhecimento apontadas pelos participantes dos encontros de atualização da
Resolução. Essas recomendações, muitas vezes, facilitam o financiamento de
projetos científicos por entidades públicas de fomento à pesquisa.
Considerações finais
São Paulo é certamente o Estado onde mais se restauram florestas tropicais e
subtropicais em larga escala no Brasil e provavelmente no mundo. Os erros e
acertos nesse processo de consolidação da prática da restauração ecológica têm
proporcionado aprendizados que culminaram na elaboração participativa de uma
Resolução estadual orientativa para a restauração ecológica no Estado. Embora
sempre haja oportunidades de melhoria em uma Resolução que ousa orientar uma
atividade tecnológica tão complexa, a constante atualização e discussão pública
em torno do tema deixam claro que o caminho mais correto a seguir é o
aperfeiçoamento contínuo desse instrumento legal no lugar de simplesmente
criticá-lo ou bani-lo, como propõem alguns atores sociais. Essa resolução é
resultado de um compromisso público com uma restauração ecológica capaz de
atingir seus objetivos maiores.
Outras estratégias de mitigação dos impactos decorrentes da degradação
ambiental, tal como sistemas agroflorestais e reflorestamentos com espécies
exóticas, também têm seu valor para o restabelecimento dos serviços ambientais,
mas essas estratégias devem ser tratadas em outra esfera conceitual que não a
da restauração ecológica de florestas megadiversas, em que a manutenção dos
serviços florestais, inclusive o de retenção da biodiversidade nativa, deve ser
o objetivo norteador central.
Diante do exposto, conclui-se que a adoção de instrumentos legais estaduais
orientadores das ações de restauração ecológica, logicamente respeitando-se o
contexto de cada situação particular, pode servir como importante ferramenta de
política pública ambiental e induzir a restauração de florestas com maiores
chances de viabilidade biológica em médio e longo prazos.