Doença celíaca: a evolução dos conhecimentos desde sua centenária descrição
original até os dias atuais
REVISÃO / REVIEW
DOENÇA CELÍACA:
a evolução dos conhecimentos desde sua centenária descrição original até os
dias atuais
Vera Lucia SDEPANIAN*, Mauro Batista deMORAIS** e Ulysses FAGUNDES-NETO***
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RESUMO¾ Nos últimos anos, alguns aspectos da doença celíaca têm sido discutidos
na literatura, especialmente relacionados à predisposição genética, patogênese,
formas de apresentação clínica e critérios diagnósticos. Inúmeros estudos
demonstraram anormalidades imunológicas características da doença como a
presença de anticorpos circulantes e de linfócitos com receptores gama/delta
presentes em grande número a nível intraepitelial da mucosa intestinal. Outras
formas de apresentação clínica, além da forma clássica, têm merecido destaque
como baixa estatura, anemia resistente à ferroterapia oral, hipoplasia do
esmalte dentário, constipação intestinal, manifestações neurológicas e
osteoporose, dentre outras. A forma assintomática foi reconhecida especialmente
nas duas últimas décadas após o desenvolvimento de marcadores sorológicos como
anticorpo antigliadina, anti-reticulina e antiendomísio. Até o presente
momento, a biopsia de intestino delgado continua sendo imprescindível para o
diagnóstico da doença celíaca. No Brasil, fatos marcantes ocorreram nos últimos
anos, como a promulgação da Lei Federal que dispõe sobre a obrigatoriedade dos
rótulos dos produtos industrializados informarem sobre a presença de glúten.
Houve, também, aumento do número de portadores de doença celíaca cadastrados na
Associação dos Celíacos do Brasil.
DESCRITORES¾ Doença celíaca. Glúten.
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A clássica descrição da doença celíaca (DC) foi feita há mais de 100 anos por
Samuel Gee, em 1888, sob a denominação de "afecção celíaca",
relatando as seguintes características: "indigestão crônica encontrada em
pessoas de todas as idades, especialmente em crianças entre 1 e 5 anos"(8,
74).
No entanto, foi durante o período da Segunda Guerra Mundial que se associou os
efeitos deletérios de certos tipos de cereais à doença celíaca. Neste período,
Dicke, um pediatra holandês, observou que durante o período de racionamento de
trigo na segunda Guerra Mundial, a incidência do "sprue celíaco"
havia diminuído muito. Posteriormente, quando os aviões suecos trouxeram pão
para a Holanda, as crianças com doença celíaca voltaram rapidamente a
apresentar sintomas, confirmando a importância do trigo na gênese da doença
(11).
Poucos anos depois, com o advento da biopsia do intestino delgado peroral,
comprovaram-se as características histopatológicas da mucosa intestinal na
doença celíaca(86).
A DC é uma intolerância permanente ao glúten, caracterizada por atrofia total
ou subtotal da mucosa do intestino delgado proximal e conseqüente má absorção
de alimentos, em indivíduos geneticamente susceptíveis(69, 108).
EPIDEMIOLOGIA
A possibilidade atual de realização de rastreamento sorológico com os
anticorpos antigliadina e antiendomísio permitiu a identificação de outras
formas de manifestação clínica da doença, além da digestiva. Alguns estudos
realizados na Grã-Bretanha e Irlanda(22, 28, 53, 95), observaram decréscimo da
incidência da DC quando o glúten era introduzido tardiamente na dieta. Porém,
estudo subseqüente(39) demonstrou que a introdução tardia do glúten na dieta
retarda o início da sintomatologia, com redução das formas típicas e
proporcional aumento das formas atípicas da doença tanto na criança, quanto no
indivíduo adulto. Recentemente, estudos de rastreamento têm demonstrado alta
prevalência da doença em crianças(20, 21, 66) e adultos(40) aparentemente
saudáveis. Um estudo epidemiológico realizado numa província italiana(21),
publicado em 1994, demonstrou que a prevalência de DC no grupo em que foi
realizado o rastreamento sorológico foi de 1 para cada 300 indivíduos
estudados. Posteriormente, um estudo multicêntrico italiano observou que
prevalência de doença celíaca na população pesquisada foi de 1 para cada 184
indivíduos estudados(18).
O fenômeno epidemiológico da Dinamarca é interessante, pois há alguns anos a DC
era considerada rara naquele país, com incidência de 1/10.000 nascidos vivos
(109), enquanto que em países vizinhos, como Suécia e Finlândia, que apresentam
herança genética similar, observava-se aumento da incidência, a qual foi
atribuída à diminuição da prática da amamentação e aumento do consumo de
alimentos contendo glúten entre os lactentes(5). Entretanto, estudo sorológico
posterior evidenciou que a incidência de DC na Dinamarca é semelhante a da
Suécia (1/300)(6). Assim, é possível postular-se que, anteriormente, a maioria
dos casos não era diagnosticada, provavelmente devido à diminuição dos casos
típicos.
Um grande estudo multicêntrico promovido pela Sociedade Européia de
Gastroenterologia e Nutrição (ESPGAN) envolvendo 36 centros de 22 países,
forneceu importante informação epidemiológica(100). A incidência média
encontrada foi de 1 caso para cada 1000 nascidos vivos. Considerando o
intervalo de confiança de 95% das freqüências observadas em cada região,
verificou-se que não há diferença significante entre os diferentes países
estudados. Incidência comparável foi verificada na América do Sul(76).
Ainda não se sabe com certeza a razão da baixa incidência da DC nos EUA, mesmo
nas populações caucasianas, que têm ancestrais comuns aos indivíduos que vivem
na Europa. A experiência européia demonstra que a apresentação clínica pode
divergir em países vizinhos devido a fatores como: tipo de fórmula láctea,
amamentação, idade de introdução do glúten na dieta, quantidade e qualidade dos
cereais, quantidade de ingestão de trigo, etc. Seria possível que estes fatores
ocorram nos EUA e sejam responsáveis por formas atípicas da doença,
dificultando sua identificação na prática clínica?(34). A comunidade científica
americana considera que a DC é rara nos EUA, o que reflete o limitado número de
publicações científicas nos últimos 30 anos. Uma pesquisa no Medline mostrou
que de 6276 publicações a respeito da DC entre 1966 e 1996, somente 48 (0,8%)
foram originadas dos EUA(34). Resultados preliminares de um rastreamento com
anticorpos antigliadina e antiendomísio em 2000 americanos doadores de sangue,
sugere que a incidência da doença não difere dos estudos similares de
rastreamento realizados na Europa(34). Portanto, a dimensão do
"iceberg" da DC dos americanos é semelhante a dos europeus; no
entanto, a porção visível do mesmo parece ser menor, pois a maior parte parece
estar submersa. A razão para esta divergência até o presente momento é
desconhecida. É interessante observar que, baseado na experiência de LLOYD-
STILL(54), no Children's Memorial Hospital de Chicago, até 1978, 70% das
crianças encaminhadas com diarréia crônica, foram tratadas sintomaticamente com
dieta isenta de trigo, muito embora não se tivesse estabelecido um diagnóstico
de certeza. Nos EUA é prática comum prescrever dieta isenta de leite, ovo e
trigo para o tratamento de diarréia recurrente em crianças, o que pode ter
causado impacto tanto na apresentação clínica, quanto na idade de início da DC
(34).
Estudos envolvendo populações que emigraram da Europa para países não Europeus,
como a Nova Zelândia, por exemplo, revelaram baixa incidência da doença, quatro
vezes menor na população pediátrica, se comparada com a população européia. Os
investigadores concluíram que, como os fatores genéticos não poderiam explicar
estas diferenças, as possibilidades mais prováveis para entender a discrepância
de incidência, seriam as diferenças dietéticas e a subestimação diagnóstica
(34).
ETIOPATOGENIA
Para que ocorra a expressão da DC, além do uso do glúten na dieta, é também
necessária a presença de outros fatores, tais como: genéticos, imunológicos e
ambientais.
O glúten é uma proteína que está presente no trigo, centeio, cevada e aveia.
Os cereais que pertencem à família Gramineaepodem ser divididos em quatro
subfamílias, a saber: Bambusoidea, Pooideae, Panicoideae e Chloridiodeae. A
subfamília Pooideae compreende dois subgrupos: Triticeae que contém a maioria
dos cereais: trigo (triticum), centeio (secale), e cevada (hordeum); e
Aveneaeque contém a aveia (avena)(4).
Os fragmentos polipeptídicos do glúten, que constituem a fração do glúten
solúvel em álcool, são denominados de prolaminas. Estas, em geral, representam
50% da quantidade total do glúten e diferem de acordo com o tipo de cereal:
gliadina no trigo, secalina no centeio, hordeína na cevada e avenina na aveia.
Atualmente está comprovada a toxicidade da gliadina, assim como da secalina na
DC. Quanto à hordeína e avenina ainda existem controvérsias(4).
A DC é precipitada em indivíduos geneticamente susceptíveis. Sua ocorrência em
mais de um membro da família foi descrita há mais de 50 anos(97). Estudos
posteriores de amostras de biopsia de intestino delgado de parentes de primeiro
grau(57, 72) corroboraram a evidência de que fatores genéticos podem
influenciar na susceptibilidade desta doença. A prevalência da DC em parentes
de primeiro grau varia de 2%(93) a 20 %(96) com média de 8 % a 12 % na maioria
dos estudos(57, 72), sendo igual a 70% em gêmeos monozigóticos.
Fatores Genéticos
Há forte associação entre DC e antígeno de histocompatibilidade (HLA), de
classe II, HLA-DR3 e HLA-DQ2 (DQA1*0501 e DQB1*0201)(92). A grande maioria dos
pacientes com DC DR3 negativos são DR5/DR7 heterozigotos(92). Os genes
DQA1*0501 e DQB1*0201 estão locados em cis (no mesmo cromossomo) em indivíduos
DR3, enquanto estão locados em trans (em cromossomos opostos) em indivíduos
heterozigotos DR5/DR7. Assim, a susceptibilidade primária na maioria dos
pacientes, aproximadamente 90%, é devida ao heterodímero DQ (A1*0501 e
B1*0201), isto é, DQ2, enquanto que 2% a 10% dos que não levam o DQ (A1*0501 e
B1*0201), apresentam diferentes variantes de DR4 e DQ (A1*0301 e B1*0302), isto
é, DQ8(91). Assim, a DC parece estar associada, principalmente, ao DQ2 e menos
freqüentemente ao DQ8.
Fatores Imunológicos
O mecanismo pelo qual o glúten exerce sua ação tóxica ainda permanece obscuro.
A presença de células T produtoras de citocina na lesão celíaca ativa e a
estreita associação com o antígeno de histocompatibilidade - HLA, sugerem que o
sistema imunológico celular tem papel importante no desenvolvimento da doença
(91, 98).
Especula-se sobre a possibilidade de que os linfócitos T, portadores de
receptores gama/delta, presentes em grande número a nível intraepitelial -
linfócitos intraepiteliais - (LIE)(59) em pacientes celíacos (tanto em
atividade, como em remissão com dieta isenta de glúten) poderiam constituir um
marcador precoce da DC, o que permitiria identificar inclusive as formas
latentes(81). Observa-se que tanto familiares de primeiro grau de pacientes
celíacos, quanto alguns pacientes com dermatite herpetiforme, podem apresentar
importante infiltrado de LIE, sem manifestações digestivas, tampouco atrofia
vilositária. No entanto, a especificidade destas células, assim como sua
importância na etiopatogenia da DC, não foram, até o momento, suficientemente
comprovadas(81). As células T CD4+ glúten-específicas da lâmina própria da
mucosa do intestino delgado de pacientes com DC, reconhecem os peptídios
derivados do glúten, principalmente quando apresentados por heterodímeros
associados à DC, isto é, DQ (A1*0501, B1*0201) ou DQ (A1*0301, B*0302)(56).
Todos os clones de células T secretam interferon-gama em altas concentrações, e
alguns deles também secretam uma ou várias das citocinas IL-4, IL-5, IL-6, IL-
10 e fator de necrose tumoral. Portanto, é possível que o interferon-gama e
outras citocinas produzidas pelas células T ativadas da mucosa do intestino
delgado, estejam envolvidos no desenvolvimento da lesão celíaca(73).
Recentemente, SOLLID et al.(92), assim como outros pesquisadores(46, 103, 104),
caracterizaram o peptídio de ligação principal do DQ2.
A associação da DC com outras doenças de base imunológica apoia a teoria
etiopatogênica de uma resposta imunológica alterada, tanto da imunidade
celular, quanto da humoral.
Fatores Ambientais
Além dos fatores genéticos e imunológicos, foram estudados outros fatores
ambientais além do glúten para explicar a patogênese da DC. KAGNOFF et al.(47)
descreveram alto grau de equivalência entre uma seqüência de aminoácidos alfa-
gliadina (fragmento 12-amino ácido alfa-gliadina) e o adenovírus sorotipo 12
(fragmento E1b proteína tipo 12 do adenovírus), determinando reação de
anticorpos cruzada à proteína do vírus e à gliadina. Alguns anos mais tarde,
encontraram anticorpos contra o adenovírus tipo 12, no soro de portadores de
doença celíaca não tratada, com freqüência significantemente maior do que nos
controles(48). Por outro lado, dados contraditórios revelam que o adenovírus 12
não seria elemento importante no desencadeamento da doença(44).
QUADRO CLÍNICO
Após a descrição clássica de Samuel Gee em 1888(8, 74), novas formas de
apresentação da doença ainda estão sendo descritas. Em 1991, Richard Logan
comparou a distribuição das várias formas da DC a um "iceberg" devido
a existência de casos de apresentação sintomática, que corresponderiam à porção
visível do mesmo, e os de apresentação assintomática, que corresponderiam à
porção submersa do "iceberg"(19).
Assim, a DC pode ter as seguintes formas clínicas de apresentação: clássica,
não-clássica, latente e assintomática(81).
A mais freqüente é a forma clássica que se inicia nos primeiros anos de vida,
manifestando-se com quadro de diarréia crônica, vômitos, irritabilidade, falta
de apetite, déficit de crescimento, distensão abdominal, diminuição do tecido
celular subcutâneo e atrofia da musculatura glútea. Após semanas ou meses da
introdução de glúten na dieta, as fezes tornam-se fétidas, gordurosas e
volumosas, e o abdome distendido. Esta forma de apresentação foi a mais
freqüente nos dois estudos realizados na cidade de São Paulo na década de 80.
KODA e BARBIERI(50) estudaram 27 crianças com DC e observaram distensão em
100%, diarréia e déficit ponderal em 93% dos casos. ROSALES et al.(85)
acompanharam 72 crianças com DC e relataram que as principais queixas no
momento do diagnóstico foram diarréia crônica (84,4%), distensão abdominal
(81,1%) e perda de peso (70,2%). Um inquérito nacional brasileiro sobre DC,
realizado em 1989(10), que registrou 886 casos em 24 instituições, constatou
que a forma clássica (78% dos casos) foi mais freqüente que a forma não-
clássica (22% dos casos).
Poucos pacientes apresentam-se gravemente enfermos com diarréia levando à
desidratação e choque (crise celíaca).
As formas não-clássicas caracterizam-se por quadro mono ou paucisintomático, no
qual as manifestações digestivas estão ausentes ou, quando presentes, ocupam um
segundo plano. Esta forma apresenta-se mais tardiamente na infância. Os
pacientes deste grupo podem apresentar manifestações isoladas, como por
exemplo: baixa estatura, anemia por deficiência de ferro refratária à
ferroterapia oral, artralgia ou artrite, constipação intestinal, hipoplasia do
esmalte dentário, osteoporose e esterilidade.
Aproximadamente 10% dos indivíduos com baixa estatura isoladamente submetidas a
biopsia de intestino delgado, apresentaram atrofia vilositária total(15).
A hipoplasia do esmalte dentário, embora pouco assinalada na literatura, é um
sinal freqüente em crianças e adolescentes celíacos não tratados. É definida
como um defeito do esmalte da dentição permanente, distribuído simétrica e
cronologicamente em todas as quatro secções da dentição. Estudos demostraram
que a hipoplasia do esmalte dentário estava presente em 96% das crianças e 83%
a 100% dos adultos com DC, comparados com 4% da população controle(1, 3, 58).
Estas alterações também estiveram presentes de forma estatisticamente
significante em pacientes adultos com dermatite herpetiforme, quando comparados
com uma população controle, sugerindo que estes pacientes já apresentavam uma
enteropatia glúten-induzida subclínica, no momento do desenvolvimento da
dentição permanente(2). A hipoplasia do esmalte dentário na DC também foi
analisada quanto a sua correlação com o antígeno de histocompatibilidade em 82
crianças italianas. As alterações foram significantemente menores no grupo
controle, sendo que a presença de HLA-DR3 aumentou significantemente o risco de
lesão, enquanto que HLA-DR5/DR7 parecia proteger dos defeitos do esmalte. A
análise de regressão logística mostrou que apenas os antígenos DR discriminavam
pacientes com DC daqueles sem defeito de esmalte dentário(62). BALLINGER et al.
(9), comparando 45 pacientes adultos com DC com 18 controles, concluiram que a
hipoplasia do esmalte dentário é pouco freqüente em pacientes adultos com DC
(9,5%), sendo de baixa sensibilidade para teste de rastreamento. No entanto, o
defeito foi significantemente mais freqüente naqueles indivíduos que
apresentaram sintomas gastrointestinais antes dos dois primeiros anos de vida.
Estes achados reforçam a teoria de que a DC pode se desenvolver em diferentes
épocas da vida, sugerindo que os indivíduos que manifestam a doença na vida
adulta não devem ter tido enteropatia glúten-sensível na infância, posto que o
desenvolvimento do esmalte dentário mostrou-se normal.
Descreveu-se a tríade epilepsia, calcificação intracraniana occipital bilateral
e DC(38). Também, propôs-se a associação de hepatite crônica
"criptogenética" e DC(102).
A DC assintomática, comprovada fundamentalmente entre familiares de primeiro
grau de pacientes celíacos, vem sendo reconhecida com maior freqüência nas
últimas duas décadas após o desenvolvimento de marcadores séricos específicos,
especialmente, os anticorpos antigliadina, antiendomísio e anti-reticulina(16,
17).
Portanto, pacientes com DC ativa, quer seja com manifestações da forma
clássica, quer seja não-clássica, assim como os portadores da forma
assintomática, caracterizam-se por apresentar mucosa jejunal com alterações
características, com atrofia subtotal das vilosidades intestinais, que revertem
à normalidade com a introdução de dieta isenta de glúten.
Nos últimos anos novas terminologias foram introduzidas como as definições de
DC latente e DC potencial, para melhor compreensão da enteropatia glúten-
sensível(35). Ambas condições são caracterizadas por ausência de anormalidades
morfológicas da mucosa, enquanto o indivíduo faz uso de dieta com glúten.
Apresentam DC latente, aqueles pacientes com biopsia jejunal normal consumindo
glúten, sendo que, em outro período de tempo, que pode ser anterior(61, 90) ou
posterior(60), apresentam atrofia subtotal das vilosidades intestinais, que
reverte à normalidade com a utilização dieta sem glúten(35, 101).
A Sociedade de Gastroenterologia Pediátrica da Itália revisou 10 anos prévios
de 25 centros e agrupou os indivíduos em dois grupos: 19 pacientes no primeiro
grupo, que apresentavam mucosa intestinal normal com dieta normal e que
posteriormente apresentaram alteração grave da arquitetura da vilosidade
intestinal, e cinco pacientes no segundo grupo, que haviam preenchido os
critério da ESPGAN de 1970, mas que apresentavam biopsia jejunal normal após o
mínimo de dois anos de dieta com glúten. Do ponto de vista clínico, os
pacientes do primeiro grupo apresentavam sintomas sugestivos de DC, exceto três
assintomáticos, todos com diabetes mellitus insulino-dependente. Este fato
sugere que os indivíduos pertencentes a grupos de risco devem realizar mais de
uma vez análise sorológica e biopsia jejunal. Em quatro de nove pacientes a
sorologia apresentava títulos altos, porém com biopsia normal, sendo em dois
casos positivos para anticorpo antiendomísio(101).
Apesar da maioria dos pacientes com DC apresentarem recurrência das
anormalidades histopatológicas no período de dois anos após a reintrodução do
glúten, o diagnóstico da mesma não deve ser descartado se, dentro deste período
de tempo, o indivíduo continuar apresentando mucosa intestinal normal. POLANCO
e LARRAURI(77) descreveram cinco casos em que a mucosa intestinal permanecia
normal após quatro anos da reintrodução do glúten na dieta, observando-se
alteração histopatológica após cinco, seis, sete e nove anos do início do
desencadeamento com glúten.
Demonstrou-se uma seqüência de lesões da mucosa induzidas pelo glúten: fase
inicial mostrando um padrão infiltrativo, posteriormente lesão hiperplásica e,
finalmente, um quadro destrutivo de mucosa totalmente atrofiada(64). Na fase
inicial, a mucosa caracteriza-se por apresentar vilosidade normal, sendo o
epitélio preenchido por numerosos linfócitos pequenos e não mitóticos. Esta
alteração pode ocorrer em pacientes que foram desencadeados com baixas doses de
gliadina, em parentes de primeiro grau de pacientes celíacos e, em muitos
casos, de dermatite herpetiforme. A fase seguinte caracteriza-se essencialmente
por hiperplasia críptica. A fase final apresenta a clássica lesão de atrofia
vilositária, hiperplasia críptica e grandes linfócitos intraepiteliais em
mitose.
WEINSTEIN(110) sugeriu a existência de um estado pré-celíaco e descreveu dois
pacientes com dermatite herpetiforme e biopsia jejunal normal em que a típica
lesão celíaca se desenvolveu algumas semanas após 20 g de glúten que foi
adicionada a sua dieta que já continha glúten.
Segundo FERGUSON et al.(35) a descrição anatomopatológica da DC deveria ser
revista e o tratamento com dieta sem glúten (cuidadosamente monitorado)
orientado para pacientes com mínimas formas de enteropatia. Um novo termo
deveria ser proposto para descrever indivíduos que devem ter diagnóstico de DC
latente ou considerados como DC de baixo grau de comprometimento - como aqueles
com aumento da contagem de linfócitos intraepiteliais, anticorpos intestinais
positivos para o padrão celíaco, linfócitos intraepiteliais com alta expressão
gama-delta, parentes de celíacos e pacientes com deficiência de IgA.
O termo DC potencial(35) foi proposto para aqueles indivíduos que não
apresentam e que jamais apresentaram biopsia jejunal característica de DC, e
que já têm anormalidades imunológicas similares àqueles encontrados nos
pacientes celíacos. Os prováveis marcadores da DC potencial(101) são: presença
de anticorpo antiendomísio; grande quantidade de linfócitos intraepiteliais nas
vilosidades; aumento da densidade de linfócitos intraepiteliais expressando
receptor gama delta da célula T; sinais de atividade da imunidade celular da
mucosa como a expressão de CD25 e B7 pelas células mononucleares da lâmina
própria; expressão aumentada de moléculas MHC classe II no epitélio e adesão de
moléculas na lâmina própria. Todos estes fatores estarão alterados no
desencadeamento realizado in vitro, padrão anticorpo intestinal "coeliac-
like" e desencadeamento retal com glúten positivo.
O significado do número aumentado de linfócitos intraepiteliais gama-delta
positivos como marcador de DC potencial não está claro. Até 41% dos parentes de
primeiro grau de pacientes celíacos têm níveis altos de gama-delta relacionados
com HLA. Até o presente momento, não está estabelecido se a presença de gama-
delta positivo representa apenas um marcador genético ou se é um sinal de
enteropatia glúten induzida(101).
Doenças Associadas
A dermatite herpetiforme pode ser considerada uma variante da DC. Apresenta-se
comumente como erupção pruriginosa, papulovesicular em crianças e adolescentes,
sendo que a diferenciação com outras doenças bolhosas da infância pode ser
difícil(67). McGOVERN e BENNION(67) descreveram uma apresentação não usual em
um adolescente com púrpura macular e papular, palmar, pruriginosa como
manifestação da dermatite herpetiforme. Posteriormente, este paciente
desenvolveu as lesões extensoras vesicobolhosas típicas e sintomas da
enteropatia glúten-sensível. Todas as lesões regrediram com dapsona e dieta
isenta de glúten.
Embora o termo dermatite herpetiforme tenha sido utilizado pela primeira vez em
1884 por Duhring, foi MARKS et al., em 1966(63), que descobriram que a maioria
dos pacientes com dermatite herpetiforme apresentavam lesões intestinais
similares à DC.
Estudando a existência de enteropatia em 29 pacientes com dermatite
herpetiforme que recebiam dieta com glúten, CUARTERO et al.(26) observaram que
em 71% dos casos, existia lesão intestinal grave, indistingüível da DC, com
pouca expressão clínica, sendo que somente três crianças apresentavam peso e
estatura abaixo ou no percentil 3. Aproximadamente 18% apresentavam atrofia
moderada e 10% apresentavam mucosa normal ou com mínima alteração. Com o
emprego de dieta isenta de glúten, todas as lesões intestinais regrediram e as
dermatológicas desapareceram em 17 pacientes ou regrediram em 8, persistindo
brotes em outros 3 que transgrediam a dieta. Quanto ao antígeno de
histocompatibilidade (HLA) de classe II houve associação total com DQw2 e de
85% com DR3, idêntico ao grupo controle com DC. Estes achados conduzem à
consideração de que dermatite herpetiforme e DC são distintas expressões
clínicas de uma mesma sensibilidade ao glúten, associada a uma disfunção
imunológica e com base genética comum ligada a determinadas moléculas HLA.
Várias doenças auto-imunes estão associadas com a DC, tais como: doenças
tiroideanas(71), doença de Addison(83), trombocitopenia auto-imune(94),
sarcoidose(29), nefropatia por IgA(41) e deficiência seletiva de IgA(88).
Aproximadamente 2% a 4% dos pacientes com diabetes mellitus insulino-dependente
apresentam DC(89).
DIAGNÓSTICO
Anamnese detalhada associada a exame físico cuidadoso permitem estabelecer o
diagnóstico de suspeita naqueles casos que cursam com sintomatologia clássica.
No entanto, o conhecimento atual de diferentes formas de apresentação da DC
demonstram que o diagnóstico clínico é uma utopia(80, 81).
Sua investigação diagnóstica pode ser dividida nos seguintes estudos: função
digestivo/absortiva, sorológico e histopatológico do intestino delgado.
Estudos da função digestivo/absortiva
Os testes de absorção intestinal, como a prova de absorção da D-xilose, dosagem
de gordura nas fezes e estudos hematológicos como determinação de folatos nos
glóbulos vermelhos, têm valor somente nas crianças que apresentam quadro
clínico florido de síndrome de má absorção. Recentemente, dois fatores
reduziram a importância dos estudos da função intestinal como testes de
rastreamento para a DC: primeiro, os testes sorológicos, segundo, o
reconhecimento de que pacientes com DC podem ser assintomáticos, podendo não
apresentar síndrome de má absorção(70). Não há alterações específicas da função
digestivo/absortiva na DC. O teste da D-xilose, por exemplo, além de apresentar
limitações dependentes do tempo de esvaziamento gástrico e da função renal,
pode ser anormal em outras doenças como intolerância à proteína do leite de
vaca, enteropatia ambiental e diarréia protraída(68).
Estudos de rastreamento sorológico
Nestes últimos anos, com o objetivo de selecionar os pacientes que deverão se
submeter a biopsia de intestino delgado, foram desenvolvidos testes sorológicos
que representam os marcadores imunológicos de atividade da doença, sendo
importante destacar que nenhum destes testes é patognomônico para o diagnóstico
(70, 106).
Há grande número de artigos publicados com respeito a sensibilidade e
especificidade dos anticorpos antigliadina. Duas classes de anticorpos,
imunoglobulinas G e A, têm sido analisadas, sendo em geral, os marcadores IgG
mais sensíveis, enquanto que os IgA mais específicos(106). Cerca de 2% de
pacientes celíacos têm deficiência isolada de IgA, portanto a determinação de
rotina de anticorpo antigliadina da classe IgG reduz a possibilidade de não se
detectar estes pacientes durante o rastreamento sorológico. Assim, para o
rastreamento devem ser determinadas ambas classes IgG e IgA. De acordo com a
literatura mais recente a sensibilidade de anticorpos antigliadina da classe
IgG varia entre 62% a 96%(106). Anticorpos antigliadina da classe IgG também
foram encontrados em crianças normais; com doença auto-imune, como artrite
reumatóide, síndrome de Sjögrens, sarcoidose, eczema atópico, pênfigo(99);
intolerância à proteína do leite de vaca; diarréia aguda e crônica e parasitose
(12); e em pacientes com hepatopatias, como cirrose biliar primária, hepatite
não-A, não-B(37). A especificidade de anticorpos antigliadina da classe IgG
varia entre 63% a 97%(106). Com relação ao AGA da classe IgA a especificidade
apresenta valores mais altos de 83% a 100% enquanto a sensibilidade de 46% a
92%(106).
MEDEIROS et al.(68) estudaram 236 crianças com síndrome de má absorção,
concluindo que os anticorpos antigliadina foram úteis no diagnóstico
diferencial entre DC e outras enteropatias, sendo o da classe IgG mais sensível
e o da classe IgA mais específico no diagnóstico. No seguimento dos pacientes
com DC os títulos dos anticorpos foram significantemente mais altos na vigência
do emprego do glúten na dieta do que na fase de restrição, demonstrando ser um
bom indicador da presença de lesão intestinal nesses pacientes.
ROMALDINI e BARBIERI(84) também demonstraram utilidade dos anticorpos séricos
antigliadina IgA para o diagnóstico diferencial entre DC e hipersensibilidade
alimentar, assim como no acompanhamento dos pacientes com DC em relação à
adesão à dieta sem glúten.
Além de anticorpos para antígenos exógenos como a gliadina, foram detectados
auto-anticorpos no soro de pacientes celíacos que reagem com elementos das
camadas musculares do intestino, reticulina (ARA) e endomísio (EmA). Além
destes, auto-anticorpos para jejuno humano normal (JAB) foram demonstrados.
Todos estes três auto-anticorpos, anticorpo anti-reticulina (ARA), anticorpo
antiendomísio (EmA) e anticorpo antijejunal (JAB), são analisados por
imunofluorescência indireta. Para isto, são utilizados estômago, rim e fígado
de camundongo para determinação de anticorpo anti-reticulina; esôfago de
macaco, e mais recentemente, cordão umbilical humano para determinação de
anticorpo antiendomísio; e jejuno de feto humano para avaliação do anticorpo
antijejunal. Apesar do auto-anticorpo IgG ser detectável, são o auto-anticorpo
da classe IgA do anticorpo anti-reticulina, anticorpo antiendomísio e anticorpo
antijejunal que refletem a lesão da mucosa na DC(106).
Anticorpo anti-reticulina da classe IgG apresenta baixa sensibilidade e
especificidade. Anticorpo anti-reticulina da classe IgA é mais útil com
sensibilidade de 43 a 90% e especificidade de 99 a 100%(70).
A sensibilidade e especificidade do anticorpo antiendomísio IgA, como também do
anticorpo antijejunal IgA, geralmente é maior se comparada com anticorpo anti-
reticulina IgA e anticorpo antigliadina IgA e IgG. No entanto, a sensibilidade
é dependente da idade; assim, crianças menores de 2 anos apresentam anticorpo
antiendomísio e anticorpo antijejunal com sensibilidade inferior ao anticorpo
antigliadina(49).
A sensibilidade do anticorpo antiendomísio IgA variou entre 83% a 100%,
enquanto a especificidade de 98 a 100%(106). Anticorpo antiendomísio foi
positivo no soro de algumas crianças normais e com intolerância à proteína do
leite de vaca(23). Com o advento do conceito de DC latente é difícil comentar
se alguns destes pacientes apresentam doença subclínica que irá se manifestar
posteriormente.
Com relação aos auto-anticorpos para jejuno há poucos estudos no momento,
encontrando-se sensibilidade de 93 a 96%(49, 105) e especificidade de 100%(49).
Se levarmos em conta apenas um teste sorológico, o anticorpo antiendomísio deve
ser considerado o mais preciso, porém apresenta duas limitações: primeira,
cerca de 2% dos pacientes com DC têm deficiência de IgA, assim, anticorpo
antiendomísio sendo da classe IgA, não será positivo nesse grupo de pacientes;
segunda, é a relativa baixa sensibilidade nas crianças menores de 2 anos de
idade(70). Considerando estes fatores, a combinação destes marcadores
proporcionará melhor valor diagnóstico desses testes. Num estudo em que AGA-
IgG, AGA-IgA e EmA-IgA foram positivos, o valor preditivo positivo foi de 99,3%
e quando todos os três foram negativos, o valor preditivo negativo foi 99,6%
(14).
Estudos recentes têm utilizado os marcadores sorológicos para rastreamento
populacional. CATASSI et al. publicaram, em 1994(21), estudo realizado numa
província no centro da Itália, comparando a DC a um "iceberg",
analisando 3351 estudantes de 11 a 15 anos de idade. No primeiro nível de
investigação realizou AGA-IgG e AGA-IgA por punção digital. Os 71 estudantes
(2%) que apresentaram pelo menos um desses exames positivos, foram convocados
para um segundo nível de investigação em que no sangue venoso foram dosados
AGA-IgG, AGA-IgA, EmA-IgA e IgA sérica. Dezoito indivíduos foram convocados
para um terceiro nível de investigação que correspondia à realização de biopsia
de intestino delgado, 11 destes apresentaram alteração compatível com DC. A
prevalência de DC subclínica no grupo em que foi realizado o rastreamento
sorológico foi de 1 para cada 305 indivíduos estudados. Em 1996, CATASSI et al.
(18)deram continuidade ao estudo piloto publicado em 1994, realizando estudo
multicêntrico na Itália para caracterizar a prevalência da DC naquele país.
Foram analisados AGA-IgG e AGA-IgA, em amostras de sangue capilar ou venoso, de
17.201 estudantes de 6 a 15 anos de idade. Mil duzentos e oitenta e nove (7,5%)
apresentaram AGA IgG e/ou IgA positivos e foram convocados para um segundo
plano de investigação, que consistia na dosagem de AGA-IgG e IgA, EmA-IgA, e
dosagem sérica de imunoglobulina A. Cento e onze indivíduos com AGA-IgA
positivo e/ou EmA positivo ou AGA-IgG positivo com deficiência sérica de IgA
foram convocados para um terceiro plano de análise caracterizada pela biopsia
de intestino delgado. Dos 111 indivíduos, 98 realizaram a biopsia de intestino
delgado e 82 destes foram considerados afetados pela DC. Sua prevalência no
grupo analisado, incluindo os casos já diagnosticados, foi de 1 para cada 184
indivíduos estudados. A razão de casos já diagnosticados em relação aos casos
não diagnosticados de DC antes da realização do rastreamento populacional, foi
de 1 para 7, confirmando que a maioria dos indivíduos com DC não são
diagnosticados, a não ser que se realize uma pesquisa ativa.
Estudos histopatológicos do intestino delgado
Para o diagnóstico da DC é imprescindível a realização da biopsia de intestino
delgado, sendo a amostra obtida, preferentemente, da junção duodeno-jejunal
(107).
As amostras de intestino delgado podem ser obtidas mediante cápsulas perorais,
durante a duodenoscopia ou mediante a utilização de uma cápsula de biopsia de
intestino delgado endoscopicamente dirigida(81). Apesar de a endoscopia
gastrointestinal apresentar a vantagem de analisar visualmente a mucosa,
havendo também oportunidade de examinar o esôfago e o estômago, além de
possibilitar a realização de múltiplas biopsias do intestino delgado com mínimo
risco de complicações, as amostras obtidas resultam pequenas, apresentam
artefatos por esmagamento e estão limitadas ao duodeno proximal. Em geral, as
vilosidades duodenais são mais largas e curtas do que as do jejuno, tendendo a
ramificar-se e, ocasionalmente, a se fundir nos extremos. Os critérios mínimos
que se podem aceitar como adequados para a interpretação de uma biopsia de
intestino delgado são a presença de muscularis mucosa e a ausência de artefatos
tangenciais devido a uma orientação inadequada. A maioria das biopsias
duodenais que se realizam com fórceps endoscópico, não chega a alcançar a
muscularis mucosa, além do que não está orientada antes de ser introduzida no
fixador correspondente(81). Estas são algumas das razões porque a ESPGAN
continua aconselhando que as biopsias de intestino delgado obtidas para o
diagnóstico de DC sejam realizadas mediante cápsula(107).
Há uma tendência progressiva de substituição da biopsia intestinal com cápsula
pela biopsia endoscópica com pinça. Esta tendência se iniciou na
Gastroenterologia de adultos e está se estendendo na Gastroenterologia
pediátrica. Comparando a informação obtida de cada uma dessas biopsias, o
fragmento obtido com cápsula permite informações mais confiáveis porque a
biopsia endoscópica é habitualmente mais proximal do que a com cápsula e as
dimensões do fragmento de mucosa obtido com cápsula são quase sempre maiores
que os obtidos por pinça endoscópica(87).
Classicamente, o estudo histológico da biopsia de intestino delgado obtida de
pacientes com DC que estão em dieta com glúten, evidencia mucosa cujas
vilosidades intestinais desapareceram na sua totalidade, atrofia total, ou que
estão reduzidas a pequenos esboços que não se destacam da superfície da mucosa.
Devido a altura da vilosidade não ser superior a 50 micras, a relação
vilosidade/cripta é menor do que 1. No entanto, a espessura total da mucosa
está ligeiramente diminuída, apresentando-se com hiperplasia críptica com
aumento da atividade mitótica. O epitélio de superfície tem aspecto cubóide, de
baixa altura, com citoplasma basofílico e com núcleos hipercromáticos que
mostram pseudoestratificação e borramento ou perda de seu rebordo na porção
apical. A celularidade da lâmina própria está evidentemente aumentada, às
custas de uma população celular polimorfa, composta por linfócitos, macrófagos
e alguns eosinófilos, destacando-se a quantidade de células plasmáticas(80,
81).
Apesar de característica, a aparência histológica da mucosa não é específica.
Pode ser impossível distinguir a lesão mucosa da DC de lesões que ocorrem em
alguns pacientes com enteropatia ambiental(32), sobrecrescimento bacteriano
intestinal(33), enterite eosinofílica, gastroenterite viral, linfoma primário
de intestino delgado ou hipersecreção gástrica grave causada por gastrinoma
(98).
Em 1969, a ESPGAN recomendava três biopsias intestinais para o diagnóstico de
DC: a primeira no momento do diagnóstico, a segunda durante a dieta isenta de
glúten para avaliar a normalização da biopsia intestinal, e a terceira após a
reintrodução do glúten na dieta para verificar se ocorria reaparecimento da
atrofia vilositária(69).
Após 20 anos, um grupo de trabalho da ESPGAN(107) reconsiderou os critérios,
sendo fundamental para o diagnóstico da DC: 1) presença de atrofia vilositária
com hipertrofia críptica e superfície anormal do epitélio, quando há ingestão
de quantidades normais de glúten; 2) recuperação clínica total após a retirada
do glúten da dieta. A presença de anticorpos antigliadina, anti-reticulina e
antiendomísio da classe IgA no momento do diagnóstico, e seu desaparecimento
com a dieta sem glúten, confere maior peso ao diagnóstico. A biopsia de
controle para verificar as conseqüências na arquitetura da mucosa intestinal da
dieta sem glúten é mandatória somente em pacientes com resposta clínica
duvidosa e naqueles com formas assintomáticas de apresentação, como parentes de
primeiro grau de pacientes celíacos e pacientes diagnosticados em programas de
rastreamento. A prova de desencadeamento com glúten não é considerada
imprescindível, porém deve ser considerada em certas circunstâncias, como
quando há alguma dúvida com relação ao diagnóstico inicial, por exemplo, quando
não foi realizada a biopsia inicial ou quando esta amostra de biopsia foi
inadequada ou não típica de DC. Também é necessário o desencadeamento com
glúten para excluir outras doenças que podem ser responsáveis pela atrofia
vilositária, como intolerância à proteína do leite de vaca, síndrome pós-
enterite e giardíase. Como a maioria dessas doenças ocorre nos dois primeiros
anos de vida, o desencadeamento com glúten é recomendado em todos os pacientes
diagnosticados com idade inferior a 2 anos. Quanto à idade, aconselha-se
realizar o desencadeamento com glúten após pelo menos dois anos de dieta sem
glúten, de preferência não antes dos 6 anos de idade, devido às alterações do
esmalte dentário de caráter permanente, sendo também desaconselhável sua
realização durante o estirão puberal.
Segundo POLANCO(80, 81), a razão principal para a realização da segunda biopsia
de intestino, após um período de dieta sem glúten, é a de assegurar a
normalização histológica da mucosa intestinal.
Uma vez decidida a realização do desencadeamento com glúten, este deve ser
feito sob supervisão médica, precedido por avaliação histológica da mucosa,
utilizando uma dose padrão de, no mínimo, 10 g de glúten por dia, sem
interromper a dieta habitual(100). A biopsia deve ser obtida quando houver
quadro clínico evidente ou de qualquer modo após três a seis meses do início do
desencadeamento. Testes laboratoriais como, anticorpos antigliadina, reticulina
e endomísio da classe IgA e testes de permeabilidade de mucosa podem auxiliar
para reduzir o tempo de duração do desencadeamento(100). Se não houver
alteração característica da arquitetura da mucosa, o paciente deverá continuar
com dieta com glúten e uma nova biopsia deve ser obtida, na ausência de
sintomas ou alteração de testes laboratoriais, após dois anos. Se a arquitetura
vilositária permanecer inalterada, este paciente deverá ser acompanhado e
outras biopsias obtidas se houver sintomatologia ou se os testes dos anticorpos
forem anormais(100).
Segundo POLANCO(78, 80, 81), a proposta de modificar os critérios diagnósticos
clássicos da DC pode, por um lado, diagnosticar a doença em indivíduos não-
celíacos mantendo dieta desnecessariamente por toda a vida ou, o que é mais
perigoso, descartar a existência de DC latente em indivíduos geneticamente
predispostos, cuja primeira biopsia de intestino durante ingestão de glúten
tenha sido normal. Desta forma, considera que as três biopsias intestinais são
necessárias para o diagnóstico de certeza de DC, enquanto não dispomos de
marcadores tão confiáveis como a biopsia.
O desencadeamento não será necessário quando pela história clínica, primeira e
segunda biopsias (antes e depois de dieta sem glúten), risco genético
comprovado (HLA de classe II, DR3 e DQ2) e antecedentes de um familiar de
primeiro grau com diagnóstico de certeza de DC, não existirem dúvidas
diagnósticas(80).
A provocação com glúten está contra-indicada naqueles indivíduos com doença
auto-imune concomitante ou com processos crônicos graves(80).
TRATAMENTO
Os princípios do tratamento da DC não mudaram substancialmente desde os estudos
pioneiros de Dicke e colaboradores, que se iniciaram na década de 30 e que
permanecem até o presente momento(11).
Dicke(11) pode ser considerado o pioneiro da dieta sem glúten no tratamento da
DC. Em 1934-36 iniciou experimentos com dieta sem trigo, publicando, em 1941, A
simple diet for Gee-Herter's syndrome. Neste artigo comenta que, embora a
literatura recomendasse a dieta de Haas a base de banana, e a dieta de Fanconi
a base de frutas e vegetais, para o tratamento da DC, naquele momento em que
acontecia a Segunda Guerra Mundial, estes alimentos não eram facilmente
encontrados. Por este motivo, esse autor utilizou uma dieta simples que
consistia na exclusão de pão e biscoitos, observando vantagens desta dieta
naquele período de racionamento. No final da Segunda Guerra Mundial, quando os
aviões suecos trouxeram pão para a Holanda, as crianças com DC voltaram a
apresentar sintomas, o que o convenceu do papel do trigo na gênese da mesma. Em
1950 escreveu seu trabalho de tese, um estudo meticuloso que se iniciou em 1936
e que durou vários anos, onde relatou o caso de uma paciente que, quando
hospitalizada, recebendo dieta estritamente isenta de glúten, apresentou
desaparecimento dos sintomas, com ganho de peso e estatura. Entretanto, após
alta hospitalar, como não conseguia manter a dieta sem glúten, observou-se
declínio na curva de crescimento. Durante quatro admissões hospitalares foi
verificado restabelecimento da velocidade de crescimento. Desta forma Dicke
concluiu que, se certos tipos de cereais como o trigo e o centeio, fossem
substituídos na dieta diária, a paciente apresentava evolução satisfatória e os
episódios de diarréia desapareciam; porém, após um período de latência
variável, posterior à reintrodução do glúten, havia reaparecimento dos
episódios de diarréia e deterioração do estado geral do paciente.
O tratamento da DC é basicamente dietético, devendo-se excluir o glúten da
dieta durante toda a vida, tanto nos indivíduos sintomáticos, quanto
assintomáticos(79).
Quanto à aveia, em 1995, um estudo(45) concluiu que à maioria dos pacientes com
DC, em remissão ou diagnosticada recentemente, poder-se-ía adicionar
quantidades moderadas de aveia na dieta sem glúten. Este trabalho recebeu
críticas, principalmente quanto à conclusão prematura, pois o tempo de
acompanhamento foi de apenas 12 meses(13). Apesar destas controvérsias,
praticamente a totalidade dos serviços especializados preconiza dieta sem
trigo, centeio, cevada e aveia para o tratamento da DC(75, 82, 108).
A dieta destes indivíduos com DC deverá atender às necessidades nutricionais,
de acordo com a idade. São considerados alimentos permitidos: arroz, grãos
(feijão, lentilha, soja, ervilha, grão de bico), gorduras, óleos e azeites,
legumes, hortaliças, frutas, ovos, carnes (de vaca, frango, porco, peixe) e
leite. O glúten poderá ser substituído pelo milho (farinha de milho, amido de
milho, fubá), arroz (farinha de arroz), batata (fécula de batata), e mandioca
(farinha de mandioca e polvilho).
Após a retirada do glúten da dieta a resposta clínica é rápida, havendo
desaparecimento dos sintomas gastrointestinais dentro de dias ou semanas(79),
observando-se notável incremento da velocidade de crescimento depois de pouco
tempo de dieta(100). A média do peso para estatura, em geral, retorna a valores
normais após 15 meses de tratamento, sendo que o "catch-up" de peso e
estatura é completo nos pacientes diagnosticados antes dos 9 anos de idade(27).
Segundo FAGUNDES-NETO et al.(31), embora nenhuma criança se encontrasse
eutrófica no momento do diagnóstico, 9 dos 11 pacientes alcançaram total
recuperação de seu estado nutricional em relação ao peso, enquanto que somente
seis crianças recuperaram totalmente a estatura durante o período de seguimento
médio de 3,4 anos. De acordo com os resultados obtidos por KODA e BARBIERI, o
tempo para normalização do peso variou de 2 a 16 meses e para normalização da
estatura, de 3 a 36 meses(51).
Embora seguir uma dieta estritamente isenta de glúten a princípio possa parecer
simples, na prática evidencia-se uma série de dificuldades na manutenção desta
dieta não somente por parte do paciente, como também de seus familiares, pois
consiste em uma mudança radical do hábito alimentar, principalmente no mundo
ocidental.
A adesão à dieta isenta de glúten é variável e difícil, especialmente durante a
adolescência(7, 30, 52, 65). Menor motivação para segui-la ocorre em pacientes
paucisintomáticos no momento do diagnóstico(30).
Justamente com o objetivo de minimizar as dificuldade para seguir uma dieta
isenta de glúten, é que surgiram as Associações de celíacos. Em São Paulo, em
1985, a Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica da Universidade Federal de
São Paulo - Escola Paulista de Medicina (UNIFESP-EPM) criou o Clube dos
Celíacos, organizando reuniões com grupos de mães destes pacientes, para
intercâmbio de informações, especialmente para a troca de receitas de alimentos
sem glúten e para que uma equipe pudesse esclarecer dúvidas a respeito da
doença.
Em fevereiro de 1994, estimulados pelo sucesso inicial do empreendimento e
contando com a consultoria técnico-científico daquela Disciplina, os pais dos
celíacos fundaram a ACELBRA (Associação dos Celíacos do Brasil - Seção São
Paulo).Esta associação objetiva, principalmente, a orientação dos pacientes
quanto à doença e quanto à dieta sem glúten, por meio de palestras e envio de
manuais de orientação alimentar, assim como, divulgar a doença, alertando os
médicos e a população em geral.
No Brasil, em virtude das dificuldades para garantir a prática da dieta isenta
de glúten, foi promulgada, em 1992, a Lei Federal número 8.543, que determina a
impressão da advertência contém glúten nos rótulos e embalagens de alimentos
industrializados que apresentem em sua composição derivados do trigo, centeio,
cevada e aveia. Assim, os portadores de DC podem identificar os alimentos que
não devem consumir. No entanto, as embalagens dos produtos que não o contenham,
não necessitam, segundo a mesma Lei, virem acompanhadas dos dizeres não contém
glúten e, obviamente, podem ser consumidos pelos celíacos.
Na Europa e nos Estados Unidos da América, os produtos industrializados que não
contêm glúten, ou contêm uma quantidade mínima (<10 mg de prolamina/100 g),
permitida segundo o Codex Alimentarius da FAO/WHO(24, 25) para consumo por
portadores da DC, apresentam em sua embalagem o símbolo internacional
representado por um trigo "cortado", à semelhança do símbolo de
trânsito "proibido estacionar", caracterizando-o como alimento isento
de glúten.
PROGNÓSTICO
Existem poucos estudos com relação ao prognóstico a muito longo prazo para a
DC. Entretanto, há relatos de uma série de complicações não-malignas da mesma,
como por exemplo, esterilidade, osteoporose, distúrbios neurológicos e
psiquiátricos(43).
HOLMES et al.(42) demonstrou que o cumprimento de dieta restrita isenta de
glúten, reduz o risco de linfoma e de outras doenças malignas. O risco de
malignidade foi maior no grupo de pacientes que seguiam dieta normal ou com
quantidade reduzida de glúten, quando comparado a pacientes que seguiram dieta
restrita isenta de glúten durante cinco anos ou mais. Neste último grupo, o
risco de desenvolver malignidade a qualquer nível do trato gastrointestinal,
não estava aumentado, quando se comparava à população geral.
A taxa de mortalidade de pacientes com DC na Escócia foi 1,9 vezes a da
população geral. O aumento da taxa de mortalidade não foi devido à má absorção
e sim a doenças linfoproliferativas e a outras doenças malignas(55).
Quando comparados à população geral, os pacientes com DC têm risco aumentado de
desenvolver enteropatia associada a linfoma de célula T, carcinoma de esôfago e
faringe, e adenocarcinoma de intestino delgado(36).
Estes dados permitem um inquestionável suporte para aconselhar a todos os
pacientes com DC a adesão à dieta restrita isenta de glúten por toda a vida.
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Sdepanian VL, Morais MB de, Fagundes-Neto U. Celiac disease: evolution in
knowledge since its original centennial description up to the present days. Arq
Gastroenterol,São Paulo, 36(4):244-258, 1999.
ABSTRACT ¾ In the recent past, some celiac disease features have been discussed
in literature specially related to genetic susceptibility, pathogenesis,
clinical presentation and diagnostic criteria. Immunological abnormalities
characteristic of celiac disease, such as circulating antibodies and increased
numbers of intra-epithelial lymphocytes containing a high percentage of gamma-
delta T cells have been demonstrated. Other pictures of clinical presentation
besides the classical one deserve attention namely short stature, iron-
resistant anaemia, enamel hypoplasia, constipation, neurological manifestation
and osteoporosis, among others. Asymptomatic presentation has been recognized
since development of serological markers such as anti-gliadin, anti-reticulin
and anti-endomysium antibodies. Up to now, small intestinal biopsy is the only
decisive diagnostic approach. A Federal law has recently imposed food
manufactures to place labels informing the presence of gluten in industrialized
foods in Brazil. Lately there has been an increase in celiac disease patients
registered in the Brazilian Celiac Association.
HEADINGS¾ Celiac disease. Gluten.
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