Endometriose de septo retovaginal: doença de diagnóstico e tratamento
específicos
REVISÃO REVIEWINTRODUÇÃO
A endometriose é definida como a presença de tecido endometrial fora da
cavidade uterina e afeta cerca de 10% a 15% das mulheres em idade reprodutiva
(16).
Na década de 1990, o estudo da endometriose foi alvo de modificações
estratégicas a partir de sua crescente prevalência e complexidade que envolve
seu diagnóstico e tratamento. A partir da descrição em 1992 da classificação da
endometriose conforme sua profundidade(11) e da classificação em doenças
distintas localizadas em ovário, peritônio e septo retovaginal(14), atenção
específica tem sido dada aos aspectos diagnósticos e terapêuticos da moléstia
envolvendo esses três sítios.
O acometimento do septo retovaginal representa o principal alvo de preocupações
na atualidade com essa doença, uma vez que a intensidade dos sintomas e a
dificuldade terapêutica são maiores com acometimento deste local. Tal fato
motivou BROSENS e BROSENS(6) a sugerirem que a endometriose do septo
retovaginal, assim como a doença que infiltra a bexiga ou até a própria
adenomiose uterina, possui características diferentes do acometimento do
peritônio e ovário, sendo lesões menos freqüentes, mais profundas, desenvolvem-
se por metaplasia e não por implante, são em geral, mais sintomáticas,
progressivas e menos responsivas à terapêutica hormonal.
O conhecimento médico sobre endometriose é sustentado principalmente pelos
estudos clínicos, laboratoriais, incluindo os imunológicos e os obtidos pela
videolaparoscopia. Vários estudos têm tentado encontrar critérios prognósticos
para a abordagem da doença.
ENDOMETRIOSE DE SEPTO RETOVAGINAL
A endometriose do septo retovaginal foi inicialmente relatada por SAMPSON(20),
no início do século, que descreveu um processo aderencial extenso no fundo de
saco posterior, obliterando sua porção inferior e unindo a cérvice uterino ou
porções inferiores do corpo uterino ao reto, com invasão de tecido endometrial
no colo uterino e no reto.
Na década de 1980, KONINCKX et al.(11) iniciaram estudos relativos às
características dessa forma de endometriose que se apresentava infiltrando o
peritônio em direção ao septo retovaginal, observando que algumas lesões
infiltravam mais profundamente no estroma subperitonial. Dessa forma, a
endometriose profunda foi definida como a lesão que penetra mais que 5 mm,
diferenciando-se das lesões superficiais por apresentarem comportamento
agressivo, por não responderem aos mecanismos de defesa do fluido peritonial.
Três tipos de endometriose profunda foram então estabelecidos (Figura_1):
tipo I: área pélvica de lesão típica ou atípica envolta por tecido
cicatricial, na forma de cone, diagnosticando-se sua profundidade ao
ser retirada cirurgicamente;
tipo II: lesão formada por retração do reto envolvendo lesão
típica;
tipo III: nódulo endometriótico infiltrando o septo retovaginal.
O acometimento do espaço vesicouterino e o comprometimento intestinal,
principalmente de cólon e sigmóide, pode ocorrer conjuntamente em 3% a 37% dos
casos(22).
DONNEZ et al.(8) propuseram dois diferentes tipos de endometriose profunda. A
primeira seria a endometriose profunda infiltrativa, causada por invasão de
lesão peritonial profunda ativa no espaço retroperitonial. Em casos de invasão
peritonial lateral, os ligamentos uterossacros e a parede anterior do reto
poderiam estar envolvidos, resultando em processo de retração, adesão e
obliteração secundária do fundo de saco de Douglas. O segundo tipo seria
decorrente de pseudo infiltração, também denominada adenomiose do septo
retovaginal, onde as lesões seriam originadas do tecido do próprio septo
retovaginal e consistiriam de musculatura lisa com epitélio glandular ativo ou
estroma, sendo portanto, menos invasivas.
DIAGNÓSTICO
O diagnóstico definitivo da doença é eminentemente cirúrgico. No entanto,
algumas características clínicas, o próprio exame físico, exames laboratoriais
e evidências de exames de imagem podem sugerir o diagnóstico dessa forma de
endometriose, indicando a abordagem e via cirúrgica de acesso.
Clinicamente, a paciente pode apresentar queixas como dismenorréia, em graus
variáveis, dor pélvica acíclica, dispareunia de profundidade e alterações
intestinais cíclicas como puxo, tenesmo, proctorragia e diarréia na
menstruação, entre outros. O toque vaginal é extremamente útil para o
diagnóstico, podendo revelar áreas de fibrose em graus variados ou lesões
nodulares, geralmente próximas à inserção dos ligamentos uterossacros, sendo
superior, inclusive, ao toque retal com esse objetivo. O exame ginecológico
realizado durante o período perimenstrual auxilia no diagnóstico(13).
Quanto aos exames laboratoriais, as dosagens de marcadores séricos nos
primeiros dias do fluxo menstrual podem contribuir para a suspeita diagnóstica.
Assim, a elevação do marcador sérico CA125 acima de 100 UI/mL e da proteína
amilóide A em valores superiores a 50 mg/mL, podem sugerir o diagnóstico quando
associados às queixas clínicas além de exame físico sugestivo de doença de
septo retovaginal(1, 3).
Com relação aos exames de imagem, o ultra-som transvaginal ainda representa o
exame com melhor relação custo-benefício nos casos de endometriose ovariana e
de septo retovaginal. Nesta última, a presença de lesão hipoecogênica
localizada na região entre o reto e a vagina pode sugerir o diagnóstico. Quando
realizado por profissional capacitado e preferencialmente no período
perimenstrual, pode fornecer informações úteis para a condução terapêutica,
tais como: dimensões da lesão, grau de comprometimento da parede do reto e se
há concomitância de acometimento de outros sítios em vísceras ocas pélvicas, ou
dos ligamentos uterossacros(12) (Figura_2).
O enema opaco não apresenta grande acurácia, com sensibilidade de apenas 54%
(21). A retossigmoidoscopia ou a colonoscopia podem ser necessárias para
investigação de acometimento da luz intestinal, porém apresentam sensibilidade
estimada em 51%, devendo-se considerar que esses métodos só detectam lesões de
septo nos casos mais avançados, em que há infiltração relativamente profunda da
parede do reto.
A urografia excretora tem utilidade para avaliação dos ureteres e da bexiga,
que podem estar acometidos dependendo da extensão da doença.
A ressonância magnética pode ser utilizada como método complementar ao ultra-
som transvaginal, quando este foi normal e há forte suspeita clínica, ou quando
há lesões extensas do septo e se quer avaliar também outros sítios, como
assoalho pélvico, bexiga, ureteres ou planos musculares. No caso do trato
urinário, podem ser realizados cortes seqüenciais específicos chamados de
"urorressonância", em que, principalmente diante da presença de
hidronefrose, há a visualização de todo o sistema coletor e bexiga numa mesma
imagem, semelhante à obtida com a urografia excretora convencional.
A tomografia computadorizada só deve ser utilizada para avaliação de
endometriose nos serviços que não dispõem de ressonância magnética, já que por
esse método há maior dificuldade em distinguir e delimitar os órgãos pélvicos e
as lesões. Como regra, fornece informações inferiores às obtidas num ultra-som
transvaginal realizado por profissional experiente.
Mais recentemente temos realizado a ecoendoscopia retal previamente ao
tratamento cirúrgico, inicialmente utilizada no estádio de casos de neoplasia
retal, em casos suspeitos(5, 10, 19). OHBA et al.(15) foram os primeiros a
utilizar tal exame na avaliação de pacientes com doença de septo retovaginal,
através de um transdutor linear, descrevendo imagens irregulares que associadas
a sintomas clínicos, sugeriam a presença de endometriose. Além disso, permite
identificar a distância entre a lesão e a luz retal, assim como compressões
extrínsecas e lesões na submucosa do reto (Figuras_3A, 3B).
TRATAMENTO
O tratamento clínico na endometriose de septo retovaginal é ainda assunto
controverso. FEDELE et al.(9) demonstraram melhora importante em relação à dor
durante os 6 meses de tratamento com análogos de GnRH, porém com recurrência
precoce após a suspensão do tratamento. Além disso, as lesões endometrióticas
mostraram discreta, mas significante redução, observada ao ultra-som
transvaginal, no seu tamanho durante a terapia, mas retornaram a seu volume
original após 6 meses de suspensão do tratamento com GnRH.
Desta forma, existe na literatura consenso de que o tratamento desta forma de
endometriose é cirúrgico. A via de acesso pode ser por laparotomia ou
laparoscopia, dependendo da experiência do cirurgião e da extensão e
acometimento da doença(19).
Sempre que houver a suspeita clínica de doença do septo retovaginal é indicado
o preparo intestinal pré-operatório. Usualmente, utiliza-se solução de manitol
a 10% na véspera da cirurgia, 150 mL a cada 15 minutos até que a evacuação seja
sem resíduos. A antibioticoterapia é recomendada, iniciando-se durante indução
anestésica e prolongando-se por 24 horas.
Melhor planejamento do procedimento cirúrgico é conseguido a partir de dados do
ultra-som ou ecoendoscopia retal preditivos sobre o comprometimento da parede
retal. A avaliação prévia da distância da lesão da mucosa retal é importante
para a definição estratégica. Lesões muito próximas à luz podem requerer
resseccões segmentares, enquanto lesões mais distantes podem ser tratadas pela
nodulectomia. A correta decisão prévia pode minimizar os riscos do procedimento
cirúrgico.
Para se determinar durante a cirurgia laparoscópica, se o acometimento do septo
é parcial ou total, utilizou-se um probe retal e uma pinça com duas gazes
dobradas inserida no fórnice vaginal posterior. Pacientes com fundo de saco
normal apresentam uma porção de parede vaginal distinta do colo uterino e do
reto e os ligamentos uterossacros são claramente individualizados. Nos casos
com obliteração parcial ou total, o reto está aderido aos ligamentos
uterossacros ou ao útero, respectivamente(4).
Inicialmente, deve-se identificar e liberar adequadamente a parede anterior do
reto, utilizando-se laser, eletrocirurgia ou tesoura. A seguir, liberam-se os
ligamentos uterossacros e removem-se as lesões da parede vaginal posterior.
Freqüentemente é difícil distinguir as lesões de endometriose na junção
cervicovaginal, sendo eventualmente necessário remover parte da parede vaginal
posterior, que deve ser imediatamente reparada. Quando se identificam lesões
nodulares infiltrando a parede anterior do reto, deve-se proceder à remoção das
mesmas e um toque retal auxilia na percepção da profundidade das lesões. Quando
ocorre a abertura da luz retal, deve-se realizar o fechamento imediatamente,
utilizando-se sutura laparoscópica (intra ou extracorpórea). A utilização de
laser de CO2 ou de Diodo pode determinar maior precisão na atuação cirúrgica
(4).
POSSOVER et al.(17) recomendam que, independente da via de acesso, são
essenciais para bom resultado cirúrgico, a dissecção da artéria uterina e
ureter bilateralmente, já que o tecido endometriótico pode infiltrar os tecidos
subjacentes, e a palpação digital do tecido a ser ressecado a fim de selecionar
um plano de dissecção adequado para completa remoção da área infiltrada.
Por ser doença profunda, as complicações tendem a ser mais freqüentes. Numa
série inicial de 100 casos, REICH et al.(18) relataram quatro casos de
perfuração retal, todos tratados com sucesso por laparoscopia. KONINCKX e
MARTIN(11) relataram secção de artéria uterina em duas pacientes, secção de
ureter em uma e perfuração intestinal diagnosticada após a cirurgia em seis
pacientes, em série de 225 submetidas a cirurgia de endometriose profunda. A
lesão arterial foi resolvida com uso de clipe, a lesão ureteral foi suturada
endoscopicamente e em dois dos seis casos de perfuração intestinal as lesões
também foram suturadas por laparoscopia. Além disso, superfícies dissecadas da
parede do reto e do fundo de saco de Douglas preferencialmente não devem ser
novamente peritonizadas devido ao maior risco de formação de aderências neste
local.
Ao final da cirurgia, os ureteres devem ser identificados em sua integridade e
120 mL de ar devem ser injetados no reto, visualizando-se pela laparoscopia a
pelve com a introdução de ringer para identificação de eventuais bolhas que
possam apontar para a presença de lesão retal. Outro teste pertinente é o
realizado com a introdução de solução diluída com azul de metileno no reto e
visualização laparoscópica. Até 10% dessas pacientes terão que ser submetidas a
ressecções intestinais, sendo importante ressaltar que esses procedimentos não
são complicações da abordagem cirúrgica e sim o tratamento apropriado para o
caso. Fica, portanto, o aspecto principal no tratamento da endometriose de
septo retovaginal que deve ser realizado por equipe com treinamento e
experiência em técnicas avançadas de laparoscopia(4).
CONCLUSÃO
Inegavelmente a endometriose de septo retovaginal representa entidade
preocupante, de diagnóstico complexo e tratamento específico. Sua incidência
tem crescido, até por que o raciocínio sobre esta variedade de endometriose tem
aumentado entre os especialistas.
NISOLLE e DONNEZ(14), ao enfatizarem que as doenças peritonial, ovariana e de
septo retovaginal são três entidades distintas, também salientaram que a
endometriose de septo, ou adenomiose externa, tem gravidade maior. Além disso,
apresenta sintomas mais exuberantes, principalmente relacionados à dor, com
elevação mais pronunciada de marcadores como o CA 125 sérico e da proteína
amilóide A(2). Tal fato já havia sido estudado por KONINCKX e MARTIN(11), em
1992, quando descreveram os três tipos de endometriose infiltrativa.
Da mesma forma, CARVALHO e ABRÃO(7), analisando a classificação histológica da
endometriose, demonstraram de forma estatisticamente significativa, que há
proporcionalmente menos doença indiferenciada na doença de peritônio quando
comparada à moléstia ovariana e de septo retovaginal, reforçando tanto a idéia
de existirem três entidades distintas, como a de que no peritônio o
comportamento da endometriose seja diferente. Por outro lado, o fato de as
localizações de pior prognóstico apresentarem mais endometriose indiferenciada
corroboram a tese da utilidade da presente classificação.
De modo objetivo, o tratamento da endometriose infiltrativa é cirúrgico e a
excisão das lesões deve ser guiada visualmente, preservando-se o tecido sadio
ao redor do nódulo endometriótico, ressecando-se parte da parede do reto e do
fundo de saco posterior, quando necessário, e dissecando-se cuidadosamente
ureteres e artérias uterinas. Eventualmente acaba sendo necessário realizar
ressecção segmentar do retossigmóide.
Assim, é importante que atenção especial seja dada a essa forma específica de
comprometimento da endometriose, já que representa uma doença mais profunda, de
maior gravidade clínica e cirúrgica e que requer cuidados multidisciplinares
para sua resolução.