A colangiopancreatografia retrógrada endoscópica pode ser realizada com
segurança em caráter ambulatorial
ARTIGO ORIGINALORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
A colangiopancreatografia endoscópica retrógrada (CPRE) é uma das técnicas mais
efetivas no manejo das doenças pancreatobiliares, seja para diagnóstico ou
realização de terapêutica.
Alguns estudos têm sido realizados com objetivo de avaliar a segurança do
procedimento quando realizado em ambulatório, enfatizando a realização de
procedimentos terapêuticos(3, 4, 5, 6, 7, 9, 11, 12, 15). As complicações
relacionadas ao exame podem ser mais bem avaliadas pelos estudos prospectivos,
uma vez que os sintomas das complicações podem aparecer apenas 12-24 horas após
o procedimento(4, 5, 6, 7, 9).
O objetivo deste estudo foi avaliar a segurança da CPRE diagnóstica e
terapêutica realizada em regime ambulatorial e descrever as complicações
relacionadas ao procedimento.
CASUÍSTICA E MÉTODO
Avaliaram-se, prospectivamente, 195 pacientes de ambulatório encaminhados ao
Setor de Endoscopia do Hospital São Paulo - Universidade Federal de São Paulo,
São Paulo, SP, para realização de CPRE no período de 2001 a 2003.
O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição. Cada
paciente recebeu e assinou termo de consentimento, sendo informado sobre o
procedimento e suas possíveis complicações.
A CPRE foi realizada sob sedação individualizada, com midazolam, diazepam,
propofol e meperidina, associados ou não. Antibioticoterapia profilática foi
realizada quando indicada.
Em pacientes com menos de 70 anos e sem outras doenças graves a sedação era
inicialmente feita com 100 mg de meperidina e 3 mg de midazolan ou 10 mg de
diazepam. De acordo com necessidades individuais, eram feitos reforços com
doses pequenas (2 mg de midazolam, 25 a 50 mg de meperidina, ou 5 mg de
diazepam). O reforço da dose era feito até sedação suficiente para realização
do exame ou desaturação detectada por oximetria de pulso. A partir da segunda
metade do estudo, nos pacientes em que não se conseguiu bom nível de sedação,
procedeu-se à associação com propofol (não utilizado em pacientes com
cardiomiopatias). Propofol é droga anestésica de rápido pico de ação e rápida
metabolização, que age nos receptores centrais do ácido gama-aminobutírico
(GABA). Necessita de maior cuidado na monitorização, já que freqüentemente leva
a queda da saturação de hemoglobina, o que pode ser potencializado quando
outras drogas estão associadas. Não há droga descrita para reversão do efeito.
Em pacientes idosos ou com outras doenças graves, as doses eram diminuídas ou
em certos casos, avaliadas individualmente, sendo o exame realizado com o
auxílio de anestesista.
Após o exame, os pacientes permaneceram em observação por um período mínimo de
2 horas. Na ausência de evidências de complicações, tais como dor persistente,
náuseas, vômitos, febre, instabilidade dos sinais vitais ou sedação prolongada,
foram dispensados para casa. Quando se suspeitou de complicação, os pacientes
foram mantidos em observação por período mais prolongado ou internados, se
necessário. Todos foram reavaliados por contato telefônico num prazo de 24
horas e 30 dias após o exame para possíveis sinais e sintomas de complicações.
Foram consideradas complicações associadas à CPRE: pancreatite, hemorragia,
colangite, perfuração, complicações cardiorespiratórias, e também dor ou febre
pós-procedimento. Pancreatite aguda foi definida como dor abdominal e/ou
vômitos acompanhados por elevação da amilase sérica pelo menos 3 vezes o limite
superior de normalidade, 24 horas após o procedimento(2). Hemorragia foi
definida como evidência clínica de sangramento, com sintomas ou alteração
hemodinâmica(2). Colangite foi diagnosticada quando o paciente apresentou febre
> 38,5º C, por mais de 24 horas, com hemocultura positiva(2). Perfuração
retroperitonial ou em cavidade livre foi considerada quando documentada por
exame radiológico(2).
As complicações foram descritas e avaliadas quanto à distribuição por sexo,
idade, diagnóstico e grau de dificuldade do exame.
Readmissão hospitalar após a liberação inicial foi considerada uma complicação
quando o evento preencheu os critérios acima.
O grau de dificuldade do exame foi determinado segundo a classificação de
SCHUTZ e ABBOTT(11), reproduzida no Quadro_1.
A análise estatística dos dados foi realizada através do teste de Mann-Whitney
e teste de comparação de proporções com o programa "Primer of Biostatistics". O
resultado foi considerado estatisticamente significativo quando valor de P
encontrado foi <0,05.
RESULTADOS
Do total das 195 CPRE estudadas, 79 exames (40,5%) foram diagnósticos e 116
(59,5%) terapêuticos. O grupo foi constituído por 112 pacientes do sexo
feminino e 83 do masculino, com média de idade de 51 (± 18,9) anos.
Dentre os diagnósticos encontrados, cálculo biliar foi o mais freqüente,
respondendo por 30,2% dos casos (59 pacientes), estenose benigna foi o segundo
acometendo 13,8% da amostra (27), seguido por neoplasia 10,2% (20), pancreatite
crônica 10,2% (20) e outros diagnósticos em 5,1% (10) dos casos (Tabela_1).
Os exames diagnósticos foram bem sucedidos em 88,6% (70/79), enquanto a
realização da terapêutica proposta foi alcançada em 78,5% (91/119). As
principais causas de insucesso do procedimento foram falha de acesso à via
biliar ou pancreática e falha da terapêutica, apesar do acesso, respondendo por
58,8% e 32,4%, respectivamente.
Dentre os 37 insucessos, a sedação foi responsável por 3 casos (8,8%). Em um
houve depressão cardiorespiratória e o exame foi interrompido. Nos outros dois,
na metade pré-propofol, não foi conseguida sedação suficiente para realização
do procedimento.
A taxa total de complicações encontrada na amostra da presente série foi de
9,2% (18 casos), das quais 4 (2%) ocorreram em exames diagnósticos e 14 (7,2%)
em terapêuticos. A Tabela_2 apresenta a distribuição das complicações de acordo
com a realização ou não da terapêutica. Observaram-se quatro (2,05%) de
complicações severas.
Dez pacientes (5,1%) necessitaram de observação mais prolongada após o
procedimento. Dentre estes, sete (3,6%) foram internados por suspeita de
complicação, confirmada em todos os casos (dois por pancreatite aguda, dois por
perfurações, um por hemorragia, um por complicação cardiorespiratória e um por
febre). Os outros três que haviam apresentado respectivamente dor, alergia no
local da venopunção e tremores após o término do exame, foram dispensados, sem
necessidade de posterior reinternação (Tabela_2).
Dos 188 casos dispensados após o exame, 8 (4,2%) foram readmitidos no hospital
por complicações (Tabela_2): pancreatite aguda (1), hemorragia (1), perfuração
(1), colangite (3) e dor abdominal (2).
As complicações foram distribuídas também quanto ao grau de dificuldade do
exame (Tabela_3).
Comparou-se o grupo de pacientes em que as complicações foram identificadas
imediatamente após o exame, com o grupo em que elas foram diagnosticadas
tardiamente, necessitando readmissão hospitalar. Não se encontrou diferença
estatisticamente significativa quanto à idade, sexo ou diagnóstico do exame.
Analisou-se, também, a distribuição das complicações quanto ao grau de
dificuldade do exame, igualmente sem diferença estatística.
O acompanhamento dos pacientes por 30 dias permite a identificação de
complicações tardias; porém, além das já citadas, encontraram-se apenas
complicações relacionadas à prótese.
DISCUSSÃO
Apesar das variações dos formatos dos trabalhos que estudam as complicações da
CPRE, as taxas relatadas variam em torno de 8%(1, 2, 6, 7, 9, 10, 11, 12, 15)
Estudos prospectivos tendem a demonstrar taxas de complicações maiores e a
reavaliação em 30 dias possibilita o diagnóstico de complicações tardias. A
taxa de complicações encontrada nesta casuística de exames ambulatoriais foi de
9,2%, semelhante aos dados previamente relatados na literatura.
A maioria dos estudos existentes sobre a realização de CPRE terapêutica
ambulatorial sugere período de observação de 2 a 3 horas após o exame(6, 15),
baseados no fato de que a maior parte das complicações manifesta-se neste
intervalo. Entretanto, FREEMAN et al.(7) observaram que nas primeiras 2 horas,
apenas 44% dos pacientes que complicaram desenvolveram sintomas e em 6 horas
79% tinham sintomas.
FREEMAN et al.(7) realizaram estudo prospectivo, multicêntrico, com análise
multivariada de possíveis fatores preditores de readmissão hospitalar por
complicações em 614 pacientes submetidos a CPRE em regime ambulatorial. Após
observação inicial e liberação, 35 doentes (5,7%) foram readmitidos por
complicações (20 por pancreatite aguda e 15 por outras). A análise mostrou
serem fatores independentes preditores de reinternação, os seguintes: disfunção
do esfíncter de Oddi, cirrose, canulação difícil do ducto biliar, pré-corte e
exame percutâneo combinado, aumentando em 3 vezes a chance de readmissão.
Concluíram que a CPRE é procedimento amplamente utilizado e relativamente
seguro, resultando porém, em grande número de reinternações por complicações,
sugerindo que pacientes de alto risco ou com pelo menos um dos cinco fatores
independentes devam ser observados por, no mínimo, 6 horas.
METHA et al.(11) avaliaram, retrospectivamente, dados de 262 CPRE realizadas em
ambiente ambulatorial, excluídos casos onde foi realizada manometria e/ou
qualquer intervenção pancreática, encontraram taxa de complicação em 30 dias de
5,7% (15 casos). Nove pacientes (3,4%) necessitaram de internação, dos quais
sete apresentavam sintomas nas primeiras 4 horas e foram internados logo após o
procedimento: cinco por pancreatite aguda, um por hemorragia, um por
perfuração; os outros dois foram liberados e posteriormente readmitidos por
hemorragia e colangite. Esses autores sugerem, que 4 horas seja um intervalo de
tempo adequado para observação após a CPRE, concluindo que esfincterotomia e
colocação de prótese biliar podem ser realizadas nesse espaço com segurança.
Estudo brasileiro realizado por BALBINOTTI et al.(1) avaliou prospectivamente
as complicações da CPRE em 311 pacientes, dos quais 63% terapêuticos.
Observaram taxa de complicação de 8,4%, sendo pancreatite aguda a mais
freqüente, respondendo por 5,1% dos casos. Não foi objetivo do estudo analisar
separadamente exames realizados no ambiente em questão e taxa de reinternação
por complicação.
THAM et al.(15) revisaram os dados de 190 CPRE terapêuticas realizadas e,
ambulatório. Internação hospitalar foi necessária em 31 casos (16%), 22 por
complicações (11,6%) e 9 (4,4%) para observação. Dos 31 pacientes internados,
26 (13%) foram admitidos após a CPRE e 5 (3%) liberados após o exame e
retornaram ao hospital após intervalo médio de 24 horas, sendo pancreatite
aguda a complicação mais freqüente. Concluíram que essa modalidade de CPRE
terapêutica realizada em grupo selecionado de pacientes, permanecendo em
observação após o exame por período de 2 horas e internação reservada para
aqueles com suspeita de complicação, parece ser segura e reduzir custos.
HO et al.(9) estudaram prospectivamente 415 pacientes submetidos a CPRE
terapêutica ambulatorial. Internação hospitalar foi necessária para 41 (9,9%)
pacientes por complicações e 63 (15,2%) para observação após o exame. Dos 41
internados por complicações pós-CPRE, 29 foram admitidos logo após o
procedimento e os demais readmitidos após liberação inicial. A análise
multivariada dos dados sugere que sejam fatores de risco para internação por
mais de 1 dia: dor durante o procedimento, história de pancreatite e realização
de esfincterotomia. A presença dos três fatores esteve associada a 67% de
probabilidade de internação. Concluem, que esses três sejam fatores
independentes preditores de internação hospitalar.
ELFANT et al.(6) estudaram prospectivamente 98 pacientes ambulatoriais
encaminhados para CPRE terapêutica por coledocolitíase, em 94,9% dos casos (93)
foi realizada esfincterotomia. Os pacientes foram observados por período de 1 a
3 horas e então liberados para casa. Um paciente ficou internado por hemorragia
pós-esfincterotomia e dois (2,1%) foram readmitidos por pancreatite aguda 24
horas após a alta. Esses autores concluíram que a terapia endoscópica para
coledocolitíase pode ser realizada com segurança em pacientes ambulatoriais,
com redução de custos.
Pancreatite aguda é a complicação mais freqüentemente associada à CPRE,
ocorrendo em cerca de 1% a 7% dos exames(1, 7, 9, 8, 10, 11, 12, 15). Foi
também uma das principais complicações na presente série, ocorrendo em 1,5% dos
exames. Dos três casos de pancreatite aguda, um não foi identificado no período
de observação após o exame. O atraso no aparecimento dos sintomas pode estar
associado à sedação e analgesia, ou à demora de fato do início da dor.
Hemorragia é complicação mais diretamente relacionada à realização da
esfincterotomia, com incidência relatada de 0,76% a 2,5%(8, 10) Na metade dos
casos a manifestação do sangramento pode ser tardia, ocorrendo dias após o
procedimento(7, 11, 15). Na presente série, encontrou-se taxa de 1,0% de
hemorragia. Em um dos dois casos, o sangramento não foi detectado durante o
procedimento e o doente foi readmitido 4 dias após a esfincterotomia.
Outras complicações como colangite e colecistite aguda, geralmente manifestam-
se 24 horas após o procedimento(7, 10). Como foi observado nesta casuística, os
três pacientes (1,5%) que desenvolveram colangite haviam sido liberados após o
exame e foram readmitidos posteriormente para tratamento da complicação.
A ocorrência de perfuração durante o exame tem sido relatada em até 1% dos
casos após esfincterotomia, geralmente retroperitonial, exceto em alterações
anatômicas(6, 10, 14). Neste estudo encontraram-se três casos de perfuração
(1,5%), dois deles associados à esfincterotomia e um após punção de pseudocisto
pancreático.
As complicações cardiorespiratórias são mais raras, ocorrendo em menos de 1%
dos casos. Geralmente são decorrentes da sedação utilizada ou da doença de base
(8, 10). Observou-se um caso (0,5%) de depressão respiratória pelos sedativos.
No presente estudo, analisaram-se os diversos procedimentos da CPRE, estudados
separadamente nos trabalhos anteriormente descritos, através do grau de
dificuldade dos exames, porém não se encontrou diferença estatisticamente
significante quanto à taxa de complicações e os diferentes graus de dificuldade
do mesmo.
Assim como nos estudos referidos anteriormente, observou-se maior taxa de
complicações nos exames terapêuticos. Embora não haja dados publicados que
permitam esta conclusão, parece que neles, principalmente nos com maior grau de
complexidade, o tempo de observação após o procedimento deva ser prolongado
(talvez maior do que 2 horas). Além disso, em nosso meio, provavelmente seja
importante investigar a facilidade do paciente (no que se relaciona a acesso a
transporte) em retornar ao Serviço ou procurar outro local de atendimento
médico na evidência da ocorrência de qualquer sinal ou sintoma de complicação.
CONCLUSÃO
O tamanho da amostra estudada e os resultados negativos encontrados na análise
estatística impediram a determinação de fatores de risco independentes para
complicações pós-CPRE. Observou-se, contudo, que o índice de complicações
ocorridas nos procedimentos ambulatoriais é semelhante àquele dos exames
realizados durante internação hospitalar. A metade delas pôde ser identificada
logo após o procedimento e a outra metade identificada tardiamente, porém sem
determinar evolução negativa do caso, sem ocorrência de nenhum óbito.