Colonoscopia como método diagnóstico e terapêutico das moléstias do instestino
grosso: análise de 2.567 exames
ARTIGO ORIGINALORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
Desde 1960, com o surgimento das fibras ópticas na área médica, houve grande
avanço tecnológico na observação do aparelho digestivo, com a introdução dos
endoscópios flexíveis, usados anteriormente para o trato digestivo superior
(20).
A visualização completa da mucosa do intestino grosso através da colonoscopia é
sabidamente de fundamental importância para o diagnóstico correto da maioria
das afecções colorretais(1), com poucas exceções, como megacólon e doença
diverticular na crise aguda.
Atualmente destaca-se como um dos métodos mais completos de investigação das
doenças colorretais(17, 19, 20), com vantagens sobre outros métodos de
investigação por proporcionar a observação da mucosa colônica e muitas vezes do
íleo terminal, em tempo único e de forma direta(19).
O incessante aperfeiçoamento de tecnologias de videoendoscopia, de informática
e o desenvolvimento de recursos auxiliares como a cromoscopia e magnificação de
imagem são de contribuição inexorável para a aplicação mais ampla do método,
beneficiando maior número de pacientes. Tais tecnologias, ainda que custosas,
tornam a execução do procedimento menos difícil. Outra vantagem da aplicação
destas tecnologias é a maior segurança associada à realização do exame
colonoscópico seja para diagnóstico, ou tratamento(18).
O presente estudo teve por objetivo rever os resultados da aplicação da
colonoscopia diagnóstica e terapêutica na Disciplina de Coloproctologia da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, respeitando as
características de instituição de ensino e aprimoramento médico.
CASUÍSTICA E MÉTODOS
Foram submetidos a análise retrospectiva os dados referentes a 2.567 exames de
colonoscopia realizados entre os anos de 1984 e 2002, seja em regime de
internação hospitalar ou de forma ambulatorial. Foram computados dados
relativos a indicações da realização dos exames, diagnóstico endoscópico,
morbidade e mortalidade associadas ao método empregado, freqüência e motivos de
exames incompletos e resultados da realização de procedimentos terapêuticos '
polipectomias.
Para o preparo intestinal foi utilizada solução de manitol® a 10%(13). Na
véspera do exame, o paciente era instruído a ingerir livremente dieta sem
resíduos e quatro comprimidos (20 mg) de bisacodil® ao final do dia. Na manhã
do exame, recebia 10 mg de metoclopramida via intramuscular seguida de ingestão
de 500 mL de solução de manitol a 10%. Pacientes com suspeita ou quadro clínico
de suboclusão intestinal foram excluídos do método.
Antibioticoprofilaxia foi realizada somente para pacientes com alto risco para
endocardite infecciosa ou portadores de prótese valvar cardíaca, conforme
recomendado pela Sociedade Americana de Endoscopia Gastrointestinal(28) e pela
Associação Americana de Cardiologia(9). Esses doentes receberam a associação de
ampicilina e gentamicina.
Pacientes em uso de terapia anticoagulante tiveram suspensão temporária da
medicação. Doentes em uso de anti-agregantes plaquetários ou antiinflamatórios
não-hormonais tiveram seu uso suspenso por 7 dias previamente a data da
realização do exame.
A sedação para a realização da colonoscopia foi realizada de forma seletiva e
para a maioria dos pacientes. Para os doentes já submetidos a sigmoidectomias
prévias, o exame sem sedação constituiu a opção inicial. Nos demais casos, foi
realizada associação do analgésico meperidina (dose inicial de 50 mg) com o
sedativo diazepam (5-10 mg) ou midazolam (4-15 mg) administrados por via
endovenosa. A administração do antagonista opióide naloxone (2-4 mg) foi feita
conforme opção do endoscopista ao término do procedimento e baseada na dose de
meperidina administrada, bem como o nível de consciência do paciente na
ocasião.
O antifisético dimeticona foi eventualmente administrado, diluído à solução de
irrigação através do canal do colonoscópio para eliminar bolhas decorrentes do
uso do manitol®.
Os endoscópios utilizados foram dois fibrocolonoscópios da marca Olympus® e
Fujinon®, sendo que um deles possuía o recurso de magnificação de imagem.
Empregou-se a fonte de luz de 200 W. Quando necessária, utilizou-se
eletrocoagulação por diatermia (monopolar) com a unidade eletrocirúrgica Valley
Lab®. As biopsias foram colhidas por pinças de biopsia a frio, tipo espiculada,
e os procedimentos de polipectomia foram realizados por alça tipo ovalada,
ambas da marca Olympus®. Para as polipectomia de lesões pequenas (até 5 mm), a
pinça de biopsia a frio foi usada com a vantagem da coleta do material para
exame histológico. A excisão a frio foi realizada para esse tipo de lesão como
opção do endoscopista frente aos relatos de complicações decorrentes da "hot
biopsy". A alça de polipectomia tipo ovalada foi empregada para lesões
pediculadas maiores que 5 mm ou em pólipos sésseis para as ressecções do tipo
fatiada ("piecemeal") ou após realizar coxim submucoso com soro fisiológico.
RESULTADOS
A principal indicação de exame colonoscópico nesta casuística foi o sangramento
retal/anemia, ocorrendo em 571 (22,24%) doentes, seguida pela alteração do
hábito intestinal em 379 (14,76%) casos (Tabela_1).
Para a maioria dos doentes, o exame resultou normal em 1.089 (42,42%) casos. O
diagnóstico mais freqüentemente encontrado foi o de pólipo, em 397 (15,47%)
casos, seguidos pela doença diverticular em 330 (12,86%) casos. Os diagnósticos
endoscópicos encontrados estão relacionados na Tabela_2.
A sedação para realização do exame gerou complicações em seis casos que tiveram
mudança do padrão respiratório e cinco com alteração do nível de consciência.
Essas complicações levaram à interrupção do exame e conseqüente prejuízo ao
procedimento em 0,42% das vezes, porém sem morbidades ao paciente.
Foram realizadas 819 polipectomias em 397 doentes, gerando a média de 2,21
polipectomias por doente com este diagnóstico. Não houve complicações
associadas às polipectomias endoscópicas.
O exame foi considerado incompleto quando não alcançava o ceco, o que ocorreu
em 181 doentes, ou seja, 7,05% da casuística. O preparo de cólon para o exame
foi considerado inadequado em 45 (1,75%) das colonoscopias realizadas. As
causas de exames incompletos estão listadas na Tabela_3.
Houve um caso de perfuração por fratura de tumor sub-estenosante da transição
retossigmoidiana diagnosticada precocemente, necessitando de laparotomia de
urgência para realização de retossigmoidectomia a Hartmann, com boa evolução
pós-operatória e reconstrução do trânsito após 3 meses. Não houve nenhum óbito
relacionado ao procedimento.
DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
A primeira colonoscopia total realizada com sucesso utilizando fibra óptica foi
reportada em 1966 por OVERHOLT e POLLARD(22). A partir de então, com o
aperfeiçoamento do método e melhor desenvolvimento técnico, esse exame
despontou como o principal meio de avaliação do cólon, sendo mais sensível do
que o exame radiológico e oferecendo uma gama de opções terapêuticas(4).
Há 10 anos, o surgimento e aperfeiçoamento da tecnologia em videoendoscopia
transformaram a colonoscopia em um procedimento de mais simples execução,
facilitando assim, seu aprendizado. No entanto, devido ao fato de ser um exame
invasivo, pode trazer certos riscos ao paciente, mesmo quando realizado por
médico experiente(18).
O atual estudo visou analisar retrospectivamente os resultados do emprego da
fibrocolonoscopia quanto a sua eficácia e segurança, em um hospital de ensino e
aprimoramento médico.
Dentre as indicações para a realização da colonoscopia, o sangramento retal e
anemia constituíram as causas mais comuns para a realização do exame, sendo
responsáveis por 22,24% (n = 571) dos mesmos, resultando indicação freqüente e
importante conforme a casuística de muitos outros autores(4, 29). A alteração
do hábito intestinal foi responsável por 14,76% (n = 379) dos procedimentos.
Essa indicação pode, em parte, explicar a alta prevalência de exames normais (n
= 1089) na presente casuística. Outras indicações, como história familiar de
câncer colorretal (n = 111), emagrecimento (n = 130), enema opaco inconclusivo
(n = 98) e dor abdominal (n = 53) também vieram a corroborar com o alto índice
de exames sem alterações. Esses achados suportam a hipótese de que a
disponibilidade do método definitivo ou padrão-ouro, para a investigação do
intestino grosso em um hospital-escola, pode gerar anamneses incompletas e
indicações excessivas destes exames.
O diagnóstico mais freqüente nos exames realizados foram pólipos, encontrados
em 397 (15,47%) ocasiões, e para os quais foram feitas 819 polipectomias
endoscópicas. Resultado semelhante foi obtido em estudo prospectivo que
analisou 9.223 colonoscopias no Reino Unido, em que os pólipos foram os achados
mais comuns, encontrados em 22,5% dos casos, e a polipectomia realizada na
maioria(4). É de grande importância a detecção e tratamento adequados de
pólipos, considerando que a maior parte dos carcinomas colorretais decorram de
pólipos adenomatosos pré-existentes (seqüência adenoma-adenocarcinoma).
Apesar de sua alta sensibilidade, a colonoscopia pode apresentar resultados
falso-negativos, fato que pode ser atribuído a impossibilidade anatômica de
visibilizar o ceco, preparo intestinal inadequado ou técnica e treinamento
inapropriados(12).
A ocorrência e a gravidade das complicações também podem ser modificadas pela
qualidade do preparo. Para a presente casuística houve preparo inadequado em 45
(1,75%) doentes, dificultando a realização dos exames neles. O alto índice de
sucesso dos preparos indicam que o emprego do manitol®, além de amplamente
disponível no mercado, persiste nos moldes descritos como método eficaz e
seguro no preparo intestinal de doentes a serem submetidos a colonoscopia.
Algumas condições freqüentemente encontradas neste estudo, como lesões
intransponíveis podem ter sido responsáveis por prejuízo no preparo intestinal.
É de fundamental importância o conhecimento das complicações associadas ao uso
da colonoscopia, por ser exame rotineiramente utilizado. As principais citadas
na literatura são: sangramento, perfuração e alterações cardiopulmonares
associadas à sedação(5, 6, 15).
Sangramento e perfuração após polipectomias endoscópicas são as complicações
mais freqüentes, ocorrendo respectivamente em torno de 2% e até 0,5% (31).
Assim, as polipectomias devem ser realizadas de forma criteriosa e com técnica
adequada. No presente estudo, não houve complicações decorrentes das
polipectomias. Entretanto, ocorreu perfuração em um caso (0,003%), decorrente
de fratura de um tumor da transição retossigmoidiana, durante tentativa de
passagem do aparelho. As perfurações colônicas associadas à colonoscopia são
complicações mórbidas que geralmente necessitam de laparotomia de urgência,
assim como neste estudo. O risco de perfuração relatado na literatura varia de
0,06% a 2,1%(11), considerando-se que a maioria dos casos não são relatados.
FARLEY et al.(11), em estudo retrospectivo, encontraram 43 casos de perfuração
em 57.028 colonoscopias (0.075%) ou 1 perfuração para cada 1.333
procedimentos). A maioria delas foi tratada cirurgicamente, sendo que a conduta
intra-operatória foi baseada no grau de contaminação da cavidade e das
condições dos tecidos.
A complicação mais freqüentemente associada à sedação é à hipóxia, que pode
ocorrer entre 17% e 70% dos doentes, resultando tanto da quantidade de
medicação administrada, quanto de fatores individuais (idade, insuficiência
hepática ou pulmonar, anemia e instabilidade hemodinâmica). A criteriosa
seleção de doentes, o uso da monitorização com oximetria de pulso, o emprego
judicioso da medicação se-dativa, bem como a disposição de suporte ventilatório
de emergência constituem medidas eficazes na prevenção e tratamento da hipóxia
(5, 18).
Por esses motivos, CATALDO et al.(5), realizaram estudo prospectivo em que
analisaram 258 pacientes submetidos a colonoscopia sem sedação, concluindo que
esse procedimento é seguro, efetivo e bem tolerado pelos pacientes. Assim, essa
técnica se torna interessante à medida que pode reduzir a necessidade de
monitorização cardiopulmonar, não necessita de acesso venoso, pode reduzir
significativamente os custos e o tempo de recuperação e pode permitir a
realização do exame em pacientes que não poderiam ser submetidos a técnica sem
sedação devido à presença de co-morbidades(5).
Na presente série, foi utilizada a associação de analgésico meperidina com
sedativo benzodiazepínico em baixas doses para a maioria dos doentes, o que
ocasionou alteração do nível de consciência e do padrão respiratório em 11
casos (0,42%), com conseqüente interrupção do exame. No entanto, em nenhum dos
casos houve morbidade adicional ao paciente. A opção pela utilização de
analgesia é explicada pela presença de aprendizes realizando os exames, ainda
que supervisionados, em instituição de ensino.
A colonoscopia é um procedimento operador-dependente. De acordo com a revisão
colonoscópica nacional no Reino Unido(3), a intubação do ceco foi relata em
77,1% dos casos. Guias atuais e a literatura mundial sugerem que
colonoscopistas treinados devem ter taxa de intubação do ceco de, pelo menos,
90% (26). No presente estudo, a intubação cecal se deu em 93,95% dos casos.
Resultados semelhantes foram obtidos em estudos feitos por THOMAS-GIBSON et al.
(29) e SIEG et al.(27) que obtiveram taxas de intubação cecal de 93% e 97%,
respectivamente. As colonoscopias eram feitas por cirurgiões, clínicos,
treinandos experimentados e endoscopistas especializados com taxas de 98%, 92%,
94% e 98%, respectivamente, demonstrando variação de padrão segundo o grau de
experiência do endoscopista(29). Neste estudo, os exames foram praticados ou
supervisionados por cirurgiões especializados em colonoscopia do Serviço de
Coloproctologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), onde os treinandos eram residentes de 4º
ano de cirurgia do aparelho digestivo.
Algumas condições, como lesões obstrutivas, constrições, aderências, irradiação
pélvica e doença diverticular estão associadas a dificuldades técnicas e exames
menos sensíveis(7, 8, 12). Nestas situações, o intestino grosso pode ser
avaliado através do enema opaco, mesmo que este não seja elucidativo para certa
parcela dos doentes, é alternativa diagnóstica freqüente(21). Nova tentativa
colonoscópica para estes casos deve ser baseada nas condições clínicas e no
motivo pelo qual o exame não pôde ser completado. Tal conduta é embasada na
constatação de que parte dos doentes em que não foi possível terminar o exame
já foi submetida a colonoscopia completa pregressa(30). Assim, para todos os
doentes que tiveram preparo intestinal inadequado, a realização de novo exame
torna-se uma alternativa interessante. A utilização de colonoscópios
pediátricos(2, 14) ou até de radioscopia(14, 16), sugeridos por alguns autores,
pode aumentar a chance de transposição do ceco em pacientes selecionados.
As Tabelas_4 e 5 fazem análise comparativa entre alguns serviços de
colonoscopia, inclusive o do HC-FMUSP, para situar-se em relação à literatura
mundial. A Tabela_4 analisa as percentagens de intubação cecal, colonoscopia
normal, principais indicações e diagnósticos, enquanto a Tabela_5 compara as
complicações relacionadas ao procedimento do ponto de vista diagnóstico e
terapêutico.
Tendo em vista os mais de 20 anos de experiência do Serviço de Colonoscopia da
Disciplina de Coloproctologia da Faculdade de Medicina da USP, é possível
concluir que:
* A fibrocolonoscopia nesse Serviço mostrou ser procedimento seguro, eficaz
e com baixa morbidade e mortalidade nula, no diagnóstico e tratamento de
afecções do intestino grosso.
* As complicações da colonoscopia tiveram natureza transitória e ocorreram,
para a presente casuística, relacionadas à sedação e preparo necessários
para a realização do exame.
* Os pólipos foram o diagnóstico mais freqüente, da mesma forma que na
literatura mundial, o que reforça a alta prevalência dessa patologia e
destaca a possibilidade terapêutica definitiva na maioria dos casos.
* A polipectomia endoscópica foi executada com sucesso e sem complicações,
sendo consagrada como método terapêutico neste Serviço.
* A colonoscopia pode ser realizada por residentes em hospital-escola com
supervisão direta de médicos treinados, com baixos índices de morbidade.