Qualidade de vida do doador após transplante hepático intervivos
ARTIGO ORIGINALORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
Com a expressiva melhora dos resultados do transplante hepático nas últimas
décadas, número elevado de pacientes com hepatopatia crônica e aguda passou a
procurar os serviços de transplante(10, 18, 26). Conseqüentemente, o tempo em
lista de espera e a mortalidade de pacientes aguardando este procedimento
aumentaram exponencialmente nos últimos anos(21, 26). A escassez de doadores
cadavéricos estimulou a realização de transplante hepático intervivos,
inicialmente em crianças e posteriormente em adultos(6, 7, 20). Desde o
primeiro transplante hepático intervivos, realizado por RAIA et al.(20) na
Universidade de São Paulo em 1989, o número desse tipo de transplante vem
crescendo em vários países. No Brasil, o número de transplante hepático
intervivos aumentou de 6 em 1997 para 177 em 2003(21).
No transplante intervivos, é essencial a preservação da saúde do doador. Este
sempre é pessoa saudável, sem problemas médicos significantes(19). Para o
sucesso do programa de transplante intervivos é fundamental que as complicações
dos doadores sejam mínimas e que a mortalidade seja nula ou muito próxima a
ela. Além do mais, o transplante deve alterar muito pouco a qualidade de vida
do doador, permitindo rapidamente o retorno completo a todas atividades usuais
(12, 24). A qualidade de vida do doador após o transplante hepático intervivos
ainda não foi avaliada no nosso meio. O objetivo do presente estudo foi avaliar
a qualidade de vida do doador após este tipo de transplante no Hospital de
Clínicas da Universidade Federal do Paraná e no Hospital Nossa Senhora das
Graças, Curitiba, PR.
MÉTODOS
De um total de 300 transplantes hepáticos realizados no Hospital de Clínicas da
Universidade Federal do Paraná e Hospital Nossa Senhora das Graças, Curitiba,
PR, pela mesma equipe médica, 51 foram transplantes realizados com doadores
vivos. Foram excluídos do presente estudo os doadores com seguimento pós-
operatório menor do que 6 meses e os que não quiseram participar do estudo.
Todos os doadores foram submetidos a avaliação médica completa para excluir
doenças significantes. Doenças transmissíveis foram excluídas através de exames
laboratoriais padronizados. Ressonância magnética e arteriografia foram
realizadas para determinar o tamanho volumétrico do fígado e estudar a anatomia
das vias biliares, artéria hepática e da veia porta e hepáticas. Biopsia
hepática foi realizada para determinar a presença de esteatose hepática somente
nos indivíduos com índice de massa corpórea superior a 30 kg/m2 ou com exame de
imagem sugestivo dessa condição. Os vários aspectos da doação, inclusive de
evolução pós-operatória foram completamente esclarecidos por, pelo menos, três
membros da equipe médica (um cirurgião, um hepatologista e um médico residente)
em datas diferentes. Os doadores foram submetidos a avaliação psicológica e
social. Após obtenção de consentimento informado, foi obtida autorização do
Ministério Público de todos pacientes. Para os doadores não aparentados do
receptor, foi obtida autorização judicial, em conformidade com a legislação
brasileira atual.
Os doadores responderam completamente a um questionário pessoalmente ou via
ligação telefônica a um entrevistador. O questionário continha 28 perguntas
abordando os vários aspectos da doação: avaliação e cuidados pré-operatórios e
evolução e complicações pós-operatórias (Figura_1). As perguntas avaliavam
aspectos orgânicos, psicológicos e sociais. As alterações orgânicas e
psicossociais atribuídas pelo paciente à doação foram registradas. Opiniões dos
doadores sobre a orientação e esclarecimento pré e pós-operatórios e sobre
doação de órgãos foram consideradas. O entrevistador era um médico com formação
completa em cirurgia do sistema digestório e em transplante de órgãos, que não
tinha participado dos transplantes e nos cuidados dos pacientes. O protocolo de
estudo computadorizado também foi revisado para se obter dados demográficos e
clínicos dos doadores.
Os dados foram analisados estatisticamente usando o programa JMP, versão 501
(SAS Institute, EUA). As variáveis foram analisadas através do teste Qui-
quadrado. Os valores foram expressos em média ± desvio padrão e intervalo de
confiança de 95% (IC 95%). Foram considerados estatisticamente significativos
valores de P menores ou iguais a 0,05 (5%).
RESULTADOS
Dos 51 doadores, 37 foram incluídos no estudo. Os dados demográficos desses
doadores são mostrados na Tabela_1. A maioria dos doadores (n = 32; 86%) era
parente de primeiro ou segundo grau do receptor. Todos os quatro doadores não-
familiares (11%) eram indivíduos que participavam ativamente de atividades
religiosas. Seis doadores foram submetidos a excisão do segmento lateral
esquerdo (segmento II e III) e 31 do lobo hepático direito (segmentos V a
VIII). O tempo médio de afastamento das atividades normais no pré-operatório
foi de 9 dias (IC 95% de 6 a 26 dias) e pós-operatório foi de 87 dias (IC 95%
de 70 a 164 dias). A duração média de internação foi de 6 dias (IC 95% de 4 a
13 dias). O seguimento médio dos doadores foi de 1,88 ± 1,46 ano (IC 95% de 1,6
e 2,8 anos).
A sobrevida dos receptores foi de 77% em 1 ano e de 70% em 3 anos e 5 anos,
determinada pela curva de Kaplan-Meier.
A principal motivação para a doação foi salvar a vida do receptor em 22 (59%),
vontade de ajudar o receptor em 5 (14%), diminuir o sofrimento do receptor em 4
(11%), vínculo familiar com o receptor em 3 (8%) e outros motivos em 3 (8%).
Apenas três doadores (8%) referiram que o esclarecimento pré-doação foi
insuficiente. Esses doadores mencionaram que gostariam de ter tido mais
informações sobre os resultados do transplante, dois deles sobre os riscos da
doação e um sobre a dor e sofrimento pós-operatório.
Todos referiram que foram bem esclarecidos sobre o caráter voluntário da doação
e nenhum sentiu qualquer forma de pressão para realizá-la. Apenas um (2%)
mencionou que não doaria novamente. Este foi o único paciente que apresentou
complicações pós-operatórias graves, insuficiência de múltiplos órgãos e
sistemas secundários à úlcera duodenal perfurada. Dois (5%) não recomendariam a
doação intervivos. Todos eram favoráveis e recomendariam a doação de órgãos
post mortem.
Os doadores atribuíram nota média de 8 ± 2 (IC 95% de 7 a 8,6) para a avaliação
geral do pós-operatório em escala de 0 a 10, sendo 0 o pior e 10 o melhor.
Quanto ao sofrimento pós-operatório, os doadores atribuíram nota de 7 ± 2,3 (IC
95% de 6 a 7,7) em escala de 0 a 10, sendo 0 o menor e 10 o maior.
Em relação à expectativa pré-operatória, a evolução e recuperação pós-
operatórias foram piores do que o esperado para 19 (51%) dos doadores, melhores
para 15 (41%) e iguais ao esperado para 3 (8%). Quanto à dor pós-operatória, 22
(59%) tiveram mais dor do que o esperado, 9 (24%) menos e 6 (16%) igual ao
esperado.
O retorno ao trabalho e ou às atividades escolares ocorreu em menos de 2 meses
para 14 (38%), 2 a 3 meses para 7 (19%), de 3 a 6 meses para 7 (19%) e após 6
meses para 8 (22%). Somente um doador (3%) com 10 meses de pós-operatório ainda
não retornou ao trabalho. Este foi o único doador que apresentou complicação
pós-operatória grave.
Quanto ao suporte financeiro para ajudar a custear os gastos durante o período
de avaliação pré-operatória e o período de recuperação pós-operatória, 5 (14%)
receberam auxílio da família, 4 (11%) diretamente do receptor, 4 (11%) do INSS,
4 (11%) do empregador, 7 (19%) de outras fontes e 13 (35%) não receberam
auxílio. O total de 21 doadores (57%) referiu perda financeira com a doação
devido a gastos com medicamentos, exames, transporte ou perda de rendimentos.
A maioria dos doadores (n = 33; 89%) não observou modificação ou limitação na
sua vida. Dos quatro (11%) pacientes que referiram modificação ou limitação,
dois (5%) relatavam limitação física, um (3%) intolerância alimentar e um (3%)
piora do relacionamento com o marido. Modificação ou limitação do aspecto
psicológico foi relatada por seis (16%) doadores.
O relacionamento com o receptor não modificou em 20 (55%) doadores, melhorou em
14 (39%), piorou em apenas 1 (3%) e não pode ser avaliado em 2 (5%), por morte
precoce do receptor.
O aspecto mais negativo da doação foi a dor para 16 (43%) doadores, cicatriz
cirúrgica para 6 (16%), o mal resultado para o receptor em 4 (11%), medo e
estresse para 1 (2,7%) e seqüela para o doador em 1 (2,7%). Nove (24%) não
relataram nenhum aspecto negativo. O aspecto mais positivo foi a recuperação do
receptor em 19 (51%) dos casos, sensação de ter ajudado em 12 (32%), melhora da
auto-estima em 3 (8%) e melhora do relacionamento com o receptor em 1 (2,7%).
Dois pacientes negaram qualquer aspecto positivo da doação.
As complicações pós-operatórias estão evidenciadas na Tabela_2. As complicações
mais freqüentes foram de menor relevância e resolveram com o tratamento
clínico. Náuseas e vômitos foram de curta duração, geralmente menos do que 24
horas, na maioria dos doadores.
A complicação mais grave foi a de um doador que apresentou úlcera duodenal
perfurada no 3º dia de pós-operatório. Apesar do paciente ter sido operado com
poucas horas de evolução da complicação, evoluiu com septicemia e insuficiência
de múltiplos órgãos e sistemas. Este doador recebeu alta hospitalar após 2
meses de internação hospitalar, com hemiparesia secundária à isquemia cerebral.
Outro doador apresentou trombose da veia porta, complicação potencialmente
grave, possivelmente devido à anomalia congênita de trifurcação e não
bifurcação deste vaso. O paciente teve boa evolução, sem nenhuma outra
intercorrência. Ultra-sonografia com Doppler colorido realizada no 3º mês de
pós-operatório evidenciou recanalização da veia.
DISCUSSÃO
O número de transplante de órgãos com doadores vivos aumentou expressivamente
nos últimos anos(5, 17, 22 ,27). Dados dos Estados Unidos, Europa e Ásia
evidenciam que quase todos doadores ficaram satisfeitos com a decisão de terem
doado parte do fígado e apresentaram excelente recuperação, retornando as suas
atividades normais sem restrições e sem seqüelas em poucos meses após o
transplante(12, 24). O presente estudo mostrou resultados similares. A maioria
dos doadores retornou a todas as suas atividades, inclusive de trabalho e
escolares, em menos de 3 meses do transplante. Entretanto, dois quintos dos
pacientes desta série retornaram as atividades normais somente 3 meses após a
doação. Este dado é importante no preparo de potenciais doadores, que devem ser
orientados sobre a possibilidade de um período de recuperação prolongado.
A quase totalidade dos pacientes desta casuística ficou satisfeita com o
esclarecimento pré-operatório sobre todo processo de doação, inclusive sobre as
informações sobre dor, complicações e evolução pós-operatórias. Quesito de
fundamental importância ética se refere ao caráter voluntário da doação. Em
serviços onde o presente trabalho foi desenvolvido, este ponto foi enfatizado
por vários membros da equipe durante o processo de avaliação pré-operatória.
Esclareceu-se que qualquer forma de pressão, inclusive psicológica, como
insinuações do tipo "se você não doar, fulano (o receptor) vai morrer", deveria
ser comunicado à equipe. Todos pacientes referiram ter sido bem esclarecidos
sobre o caráter voluntário da doação e nenhum se sentiu pressionado ou coagido
a fazê-lo.
No presente estudo, como em vários outros da literatura internacional, a
maioria dos doadores era parentes dos receptores, principalmente de primeiro
grau(1, 4, 16, 23). Este dado tem importância na orientação do receptor. A
possibilidade de um amigo ser doador é pequena. Na experiência dos autores
deste estudo, os poucos doadores não aparentados foram pessoas amigas do
receptor, que freqüentemente participavam de reuniões e cultos da sua religião
e cuja motivação para doação era salvar a vida, ajudar ou aliviar o sofrimento
do paciente.
Apesar da ressecção hepática para doação ser procedimento de grande porte,
necessitando incisão ampla, a quase totalidade dos doadores avaliou
positivamente o pós-operatório. Entretanto, a maioria referiu que a dor foi
pior do que antecipado antes do procedimento. TROTTER et al.(24)também
relataram que 2/3 dos seus doadores tiveram maior dor pós-operatória do que
eles tinham antecipado. Esses autores observaram, também, que a dor pós-
operatória no receptor é menor do que no doador. Algumas explicações têm sido
propostas para justificar a maior percepção dolorosa pós-operatória nos
doadores. Primeiro, enquanto que a hepatectomia no doador é realizada em
indivíduos sadios, a operação no receptor é freqüentemente feita em pacientes
com sofrimento e dor crônica que, na maioria das vezes, já foram submetidos a
vários procedimentos prévios(23, 25). Além do mais, psicologicamente, o
receptor tem consciência que a operação é a sua única esperança de vida,
enquanto que para o doador, o procedimento é uma opção. Segundo, o corticóide
administrado no receptor no período perioperatório pode ter algum efeito
benéfico: ele reduz a dor através da diminuição da produção de prostaglandinas,
redução da bradicinina tissular e diminuição da liberação de neuropeptídios das
terminações nervosas(3, 15). Finalmente, é possível que a explicação da equipe
de transplante para alguns doadores sobre a intensidade da dor pós-operatória
tenha sido insuficiente ou incompleta.
Exceto um, os demais doadores referiram que seriam doadores intervivos
novamente. A mudança de opinião desse único doador provavelmente foi devida à
ocorrência de sofrimento intenso e de complicações graves no seu pós-operatório
imediato. Este paciente apresentou insuficiência de múltiplos órgãos e
sistemas, secundária à úlcera péptica perfurada, necessitando internação
prolongada na UTI, com risco de morte. Entretanto, todos, inclusive esse
doador, eram favoráveis à doação post mortem.
A maioria dos doadores não apresentou modificações ou limitações na sua vida
após o procedimento. Entretanto, poucos referiram alterações físicas ou
psicológicas, como intolerância alimentar ou piora do relacionamento com o
receptor. Essas alterações são inespecíficas e difíceis de se correlacionar com
a doação.
Apesar da maioria dos doadores desta série ter obtido suporte financeiro para
ajudar a custear as despesas durante o processo de doação, mais da metade teve
perdas financeiras com despesas para compra de medicamentos, realização de
exames complementares, transporte ou perda de rendimentos pela ausência no
trabalho. No Brasil, os custos médicos de avaliação dos doadores são totalmente
cobertos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ou por alguns convênios, mas as
despesas indiretas e as com medicamentos não-hospitalares não o são. Esta perda
financeira pode ser fator limitante importante para obtenção de doadores para
receptores carentes, principalmente para os que residem distante dos centros
transplantadores pelos custos elevados com transporte e hospedagem durante o
processo de avaliação e de recuperação pós-operatória.
Alguns autores descrevem que a hepatectomia para doação do fígado para
transplante hepático é operação simples e pode ser realizada com pouco tempo de
internação hospitalar, com taxas de complicações mínimas(9, 13, 14, 28).
Entretanto, para realização deste procedimento é necessária equipe
multidisciplinar com grande experiência em transplante hepático e hepatectomias
(1, 8). Além do mais, o procedimento é associado com significante morbidade,
inclusive com vários óbitos relatados na literatura(2, 6, 8, 11). Na
experiência, complicações menores, como febre, atelectasia pulmonar e infecção
de ferida operatória, foram comuns. Um dos pacientes apresentou risco de morte
devido a complicações graves. A possibilidade de complicações potencialmente
fatais deve ser claramente explicada aos potenciais doadores.
CONCLUSÕES
A qualidade de vida não muda após a doação. A quase totalidade dos doadores
apresenta boa recuperação e retorna completamente as suas atividades normais
poucos meses após a doação. O aspecto mais negativo da doação é a dor pós-
operatória. Complicações pós-operatórias menores são freqüentes e complicações
potencialmente fatais podem ocorrer.