p53 na prática clínica: sim ou não?
EDITORIAL
p53 na prática clínica: sim ou não?
p53 in clinical contexts: yes or not?
Nas últimas décadas ocorreu uma verdadeira revolução no conhecimento do câncer
humano. A Biologia Molecular propiciou o entendimento de determinados aspectos
da carcinogênese antes não elucidados, assim como se reconheceu a natureza
gênica dessa doença.
O câncer colorretal origina-se de células normais que expostas a várias
agressões genotóxicas, resultam no acúmulo de mutações ou fenômenos epigênicos
em poucos, porém importantes, genes que favorecem à célula, a proliferação
clonal e a imortalização. Esta cascata de mutações foi extensivamente estudada
e correlaciona-se precisamente com a progressão da neoplasia, sendo o p53 um
dos genes alterados mais prevalentes nesta neoplasia(17).
O gene p53 foi identificado há mais de duas décadas; desde então, o
conhecimento sobre sua função, os mecanismos envolvidos em sua regulação, os
efeitos de sua inativação, a participação e ativação de outros genes, a
associação com fenótipo e a utilização na terapia gênica não cessam e,
portanto, a literatura afim é vasta(3); até janeiro de 2006 pode-se verificar a
citação de 38.402 artigos científicos no PubMed usando-se o critério "p53 or
TP53"; 2492 sobre "p53 or TP53" e câncer colorretal e 271 somente sobre câncer
retal e "p53 or TP53".
O gene supressor de tumor, p53, está localizado no cromossomo 17p, codifica uma
proteína nuclear de 53 kD e é o gene mais comumente envolvido na carcinogênese
humana(1, 4). Os exons 5 a 8 são os que sofrem maior número de mutações, já que
compreendem regiões altamente conservadas durante a evolução dos vertebrados,
sugerindo alto grau de importância funcional. A proteína p53 normal tem efeito
inibitório na proliferação e na transformação celular, mantendo as células em
repouso na fase G1 do ciclo celular(1).
As mutações do p53 aparecem em etapas específicas durante a transformação
maligna(4, 17). Mutações do gene p53 geralmente coincidem com o aparecimento de
carcinoma in situ, como por exemplo: de cólon, trato digestório alto, mama e
bexiga. Em alguns casos, a alteração do p53 coincide com a emergência de
tumores biologicamente agressivos e a perda da diferenciação celular, como
tumor anaplásico de Wilms, tumor de tireóide, glioma maligno ou anaplásico,
melanoma metastático e invasivo, e câncer de próstata(4, 17).
Nos tumores colorretais, perda de alelo e mutação no gene p53 ocorre em mais de
60% dos casos. Além disto, a proteína é detectada em 30% dos adenomas e em 40%
a 60% dos adenomas com displasia de alto grau(9, 15).
Neste número dos ARQUIVOS de GASTROENTEROLOGIA publicam-se duas contribuições
relevantes para o entendimento da participação do p53 no contexto clínico de
pacientes com câncer colorretal. No primeiro, LIMA et al.(7), relatam a
experiência da Universidade Federal de São Paulo quanto à avaliação de
polimorfismo do códon 72 do gene p53 em 100 pacientes com câncer colorretal e
100 indivíduos sem câncer, pareados quanto ao sexo e idade, e alguns fatores de
risco, como por exemplo o tabagismo e o etilismo. Os autores não conseguiram
demonstrar associação com risco aumentado de câncer e o polimorfismo estudado,
entretanto os doentes em estádio mais avançado apresentaram genótipo homozigoto
em maior prevalência. No segundo estudo, JURACH et al.(6), da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, reportam dados de 83 pacientes com câncer do reto
tratados em Porto Alegre e submetidos a análise imunoistoquímica do p53. A
imunoexpressão do p53 associou-se com o estádio, histologia e recurrência.
Ademais, a imunoexpressão do p53 revelou ser fator prognóstico independente
nesse grupo de pacientes.
Relatos recentes sugerem que polimorfismo do gene p53, que resulta na
substituição de prolina por arginina na posição do códon 72 desse gene, aumenta
o risco para transformação maligna do adenoma para o adenocarcinoma(8), assim
como permite o aparecimento mais precoce de tumores em indivíduos com câncer
colorretal hereditário não-polipóide(5). Em indivíduos com câncer colorretal
esporádico no Brasil o polimorfismo mencionado não se associou a risco
aumentado de câncer(7), como evidenciaram outros autores(16).
Como demonstrado na pesquisa de JURACH et al.(6), a imunoexpressão de p53 pode
ter valor prognóstico em pacientes com câncer retal, pois maior índice de
detecção da proteína tem sido demonstrado em tumores com maior envolvimento
linfonodal, como também a sobrevivência de 5 anos é menor nos casos com tumor
positivo para p53, quando comparada aos casos negativos(10). A detecção de
mutação do p53 e a perda de alelo representam marcadores de prognóstico
desfavorável(10, 12, 14), todavia a utilidade da imunoistoquímica ainda é
duvidosa e apresenta resultados conflitantes(2, 9, 11, 13). Apesar disso,
geralmente ocorre forte associação entre imunoexpressão do p53 e análise gênica
nos tumores retais, havendo falhas ao redor de 10% a 20% dos casos(18).
A interpretação da demonstração imunoistoquímica da proteína p53 é baseada na
premissa de que o p53 selvagem tem meia-vida curta, não sendo detectável(1). As
mutações do p53 tornam a proteína mais estável e, portanto, detectável.
Contudo, coloração positiva para p53 não implica, necessariamente, em mutação,
desde que a degradação reduzida e o ambiente celular alterado podem,
similarmente, tornar a proteína p53 selvagem detectável(3, 18). Da mesma
maneira, a ausência de coloração pode ocorrer em casos de deleção do gene,
falência de transcrição ou de mutação não estável; todas as referidas situações
podem estar associadas com perda de função do p53(3, 18).
Esses resultados conflitantes ora apresentados, sugerem que estudos
prospectivos com maior número de pacientes, seguimento longo (maior do que 5
anos), tratamento uniforme e metodologia de detecção das alterações bem
padronizada talvez possam esclarecer definitivamente a importância desse gene
na evolução dos pacientes.
Vários marcadores moleculares promissores têm sido identificados para os
tumores colorretais; entretanto, até o momento permanecem no plano
experimental, principalmente em virtude da variabilidade nos métodos de
detecção empregados. A maioria dos estudos de marcadores moleculares apresenta
pequeno número de casos, com campo de ação limitado e às vezes com informações
contraditórias. Adicionalmente, a maioria das investigações não discrimina
entre tumores localizados no reto daqueles localizados no restante do cólon.
Por exemplo, o p53 tem sido avaliado através de perda da heterozigose,
imunoistoquímica e detecção de mutações pelo seqüenciamento direto. Mesmo
através de um único método, os resultados podem variar consideravelmente,
acarretando numa interpretação extremamente difícil dos dados.
Com o enorme volume de informações sobre Biologia Molecular do câncer, espera-
se que se possa utilizá-las para melhor prevenção, diagnóstico precoce,
tratamento e seguimento dos doentes. É iminente vermos os aspectos moleculares
e gênicos serem incorporados na prática clínica diária. Devemos, neste momento,
desenhar ensaios clínicos com algumas variáveis moleculares de prognóstico, com
número adequado de pacientes, em tempo razoável, sem subestimar dados clínicos
de relevância usando padrões definidos de eficácia.
Parece razoável buscar a estratégia de selecionar pacientes em melhores e
piores respondedores a algum tipo de tratamento padronizado, e então avaliar um
painel de marcadores moleculares com presumível valor prognóstico ou valor
preditivo. A verificação de que a imunoexpressão do p53 se associa a pior
prognóstico seja quanto ao índice de recidiva de doença, ou quanto ao índice de
menor sobrevivência, abre perspectivas para linha de pesquisa que poderá
proporcionar progresso científico. A inclusão desses marcadores no conjunto de
procedimentos em amostras de biopsia, em conjunto com o cuidadoso estádio
anatomopatológico nos espécimes cirúrgicos, pode permitir a confecção de
algoritmos, que poderão auxiliar no planejamento terapêutico e nas medidas de
vigilância evolutiva de pacientes com adenocarcinoma colorretal.
Por enquanto, esses exames ainda não podem ser recomendados para uso clínico
para escolha individualizada de tratamento, apesar de prover melhor informação
para o entendimento da patogênese e ser usado em protocolos terapêuticos. A
realização e publicação de estudos cuidadosamente planejados, randômicos e com
número suficiente de pacientes poderão confirmar o potencial uso do p53, assim
como de outros marcadores em futuro breve.
Ulysses Ribeiro Jr.*
Adriana Vaz Safatle-Ribeiro*