Prevalência de constipação em adolescentes matriculados em escolas de São José
dos Campos, SP, e em seus pais
GASTROENTEROLOGIA PEDIÁTRICAPEDIATRIC GASTROENTEROLOGYINTRODUÇÃO
Constipação intestinal é um distúrbio que acomete indivíduos em qualquer
momento da vida, do recém-nascido(6) ao idoso(6, 22). Estudos realizados no
Brasil mostraram elevada prevalência de constipação em lactentes, pré-escolares
e escolares, com valores variando entre 17,5% e 36,5%(2, 16, 18, 20, 24).
A fisiopatologia da constipação é complexa e de etiologia multifatorial. Dentre
os fatores etiológicos destacam-se as práticas alimentares, círculo vicioso de
evacuação dolorosa gerando comportamento de retenção fecal, distúrbios da
motilidade intestinal e fatores constitucionais e hereditários(12, 13, 15, 17).
No entanto, pouco se sabe a respeito da influência dos fatores hereditários na
fisiopatologia da constipação, isto é, da relação de concordância de
constipação em filhos e seus pais.
Por sua vez, não foram encontrados estudos que avaliem exclusivamente a
prevalência de constipação em adolescentes que, em geral, são incluídos em
estudos realizados com adultos(1, 10).
Portanto, o objetivo deste estudo foi avaliar a prevalência de constipação em
adolescentes e em seus pais biológicos.
CASUÍSTICA E MÉTODOS
Neste estudo transversal, foi analisada uma amostra de conveniência de
adolescentes matriculados em escolas de São José dos Campos, cidade do interior
do Estado de São Paulo. Sua população é de, aproximadamente 500.000 habitantes,
possui 132 escolas da rede municipal, 87 escolas da rede estadual e 114 escolas
particulares regularizadas. Foram escolhidas cinco escolas (Escola Municipal de
Educação Infantil Professora Maria de Melo; Escola Estadual Major Aviador José
Mariotto Ferreira; Colégio Joseense; Colégio Anchieta e Colégio Olavo Bilac) em
que a direção se prontificou a colaborar na coleta de dados.
Participaram do estudo os alunos com idade entre 10 anos e 18 anos e seus
respectivos familiares (pai e mãe) que, voluntariamente, decidiram participar
da pesquisa. Foram distribuídos alguns questionários para alunos com faixa
etária de 9 anos e 9 messes e 18 anos e 7 meses. Um envelope lacrado foi-lhes
entregue na sala de aula, contendo três questionários (um para o aluno, outro
para a mãe e outro para o pai) e o termo de consentimento livre e esclarecido.
Não houve contato entre os pesquisadores e os alunos e/ou pais. Um professor ou
orientador pedagógico explicou o conteúdo do questionário, no que se refere ao
assunto abordado, o motivo e a importância da pesquisa, e esclareceu dúvidas
quanto ao seu preenchimento.
O questionário destinado ao aluno continha questões de múltipla escolha,
formuladas com linguagem simples e de fácil compreensão, que foram validadas em
estudo piloto prévio com adolescentes da mesma faixa etária. As questões
abordavam o hábito intestinal (freqüência das evacuações, dor ou dificuldade,
tempo gasto no ato da evacuação), características das fezes (consistência,
formato, presença de sangue), dor abdominal, complicações da constipação
(escape fecal, enurese, comportamento de retenção), presença de outras doenças
e uso de medicamentos. Idade, data de nascimento e sexo também foram dados
solicitados.
O questionário destinado ao pai e à mãe continha questões de múltipla escolha,
formuladas com linguagem simples e de fácil compreensão, que abordavam os
parâmetros abaixo citados para a definição de constipação segundo os critérios
de Roma II para adultos(23).
Constipação em adolescentes foi caracterizada pela eliminação de fezes com
consistência obrigatoriamente endurecida e ocorrência de, pelo menos, uma das
seguintes características: dor ou dificuldade para evacuar, escape fecal,
sangue. Fezes com formato de cíbalos ou em pelotas grandes e secas e intervalo
entre as evacuações maior ou igual a 3 dias foram considerados critérios que
isoladamente caracterizam constipação(2, 8).
Constipação em adultos foi caracterizada, segundo os critérios de Roma II(23),
pela presença de dois ou mais dos seguintes parâmetros, por no mínimo 12
semanas, não necessariamente consecutivas, nos 12 meses anteriores ao estudo:
esforço para evacuar, fezes endurecidas ou em cíbalos, sensação de evacuação
incompleta, sensação de obstrução ou bloqueio anorretal e manobras manuais para
facilitar a evacuação (parâmetros que devem estar presentes em mais de 25% das
evacuações) e/ou menos de três evacuações por semana.
Foram entregues nas escolas 2.500 questionários. Destes, 372 (14,9%) foram
devolvidos respondidos. As informações foram codificadas e armazenadas em um
banco de dados. A análise estatística foi realizada com o emprego do software
SigmaStat® for Windows 2.0. A concordância entre a presença de constipação nos
adolescentes e seus pais foi avaliada pelo coeficiente kappa que foi
interpretado de acordo com os limites propostos por LANDIS e KOCH(11): <0,00,
inadequada; 0,00 a 0,20, muito leve; 0,21 a 0,40, leve; 0,41 a 0,60, moderada;
0,61 a 0,80, substancial; 0,81 a 1,00, quase perfeita.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
Federal de São Paulo, tendo sido solicitado consentimento esclarecido por
escrito para os adolescentes e seus pais.
RESULTADOS
Dos 372 alunos, 23 (6,2%) não preencheram a informação sobre o sexo. Estes
questionários não foram considerados na análise dos resultados. Assim, dos 349
questionários analisados, 141 (40,4%) foram preenchidos por adolescentes do
sexo masculino e 208 (59,6%) do sexo feminino.
A idade máxima foi de 223 meses (18 anos e 7 meses) e a idade mínima de 117
meses (9 anos e 9 meses). A média (desvio-padrão) de idade em meses foi de 147
(18,4) meses, ou seja, 12 anos e 3 meses e a mediana foi igual a 142 meses (11
anos e 10 meses).
Dos 349 adolescentes, 78 apresentaram constipação, ou seja, a prevalência de
constipação na população estudada foi igual a 22,3%. A prevalência de
constipação foi maior entre as meninas (27,4%), do que entre os meninos
(14,9%), sendo a diferença estatisticamente significante (P = 0,025) (Tabela
1).
Em relação à faixa etária, a prevalência de constipação foi de 20,9% entre 9
anos e 9 meses e 14 anos, e 32,5% entre 14 e 18 anos e 7 meses. A diferença
entre os valores encontrados nas duas faixas etárias não foi estatisticamente
significante (P = 0,144), conforme os dados apresentados na Tabela_2.
Dos 349 pais, 274 (78,5%) responderam ao questionário, sendo encontrada
prevalência de constipação igual a 7,3% (20/274). Entre as mães, 322 (92,3%)
das 349 responderam ao questionário, sendo que 88 delas tinham constipação
(27,3%). A prevalência de constipação nos pais foi inferior à observada nas
mães, sendo a diferença estatisticamente significante (qui-quadrado, c2 =
38,69; P<0,001).
A Tabela_3 apresenta a relação de constipação no adolescente com a presença de
constipação na mãe. De acordo com o teste de McNemar, não se observou
discordância estatisticamente significante (P = 0,176) e o coeficiente kappa
mostrou concordância muito leve (kappa = 0,12). A Tabela_4 apresenta a relação
de constipação no adolescente com a sua presença no pai. De acordo com o teste
de McNemar, observou-se discordância estatisticamente significante (P <0,001) e
o coeficiente kappa mostrou concordância muito leve (kappa = 0,05).
DISCUSSÃO
A prevalência de constipação nos adolescentes (22,3%) estudados é alta e
encontra-se na faixa de valores encontrados em lactentes, pré-escolares e
escolares (17,5% a 36,5%) de várias regiões do Brasil(2, 16, 18, 20, 24). Vale
ressaltar que a faixa etária correspondente à adolescência não foi avaliada
especificamente em nenhum destes estudos realizados no Brasil. No realizado em
Porto Alegre(24) foi avaliada a prevalência de constipação em 1.005 crianças
com idade entre 0 e 12 anos. No entanto, não se informa a ocorrência de
constipação entre os 10 e 12 anos, sendo que nas 82 crianças com idade maior do
que 5 anos, a ocorrência de constipação foi igual a 22,5%. Nos demais estudos
(2, 16, 18, 20), foram analisadas crianças com idade inferior a 10 anos, o que
limita a comparação direta dos resultados desta série com adolescentes. Da
mesma forma, estudos estrangeiros(1, 10) que avaliaram adultos, incluindo na
faixa etária o período de adolescência, não informaram a prevalência de
constipação especificamente nesta faixa etária. Parcela da variabilidade nas
prevalências de constipação observada nos diferentes estudos, provavelmente,
relaciona-se a diferenças nas definições de constipação adotadas em vários
estudos. Neste estudo, foi adotada a definição proposta por um grupo de
pediatras-gastroenterologistas, com representantes de todos os continentes do
mundo. Destaca-se que a definição de constipação em crianças e adolescentes
continua sendo motivo de discussão na literatura(3, 8, 14, 19). Para os
adultos, foi utilizada a classificação de Roma II que, por exigir que se
informe a presença do sintoma por mais de 25% do período considerado,
provavelmente, seja mais difícil de ser obtida com fidelidade no período da
adolescência. Na definição utilizada no presente estudo prevaleceu o conceito
de hábito intestinal, no sentido de refletir as características mais freqüentes
das fezes e de eventuais manifestações associadas à evacuação (dor, esforço,
dificuldade).
Na presente série, constipação foi mais freqüente no sexo feminino (27,4%), do
que no masculino (14,9%). Este resultado mostra que na adolescência, o padrão
de distribuição por gênero obedece ao que se observa na idade adulta. Por outro
lado, antes dos 10 anos de idade, pode-se observar resultados conflitantes(16,
18, 20). Deve ser registrado que este estudo foi planejado para avaliar
adolescentes, ou seja, alunos com idade entre 10 e 20 anos. Entretanto, na
ocasião do trabalho de campo foram distribuídos alguns questionários para
alunos com idade entre 9 anos e 9 meses e 10 anos, cursando série em que
geralmente são matriculados alunos com mais de 10 anos. No momento da análise
dos resultados considerou-se desnecessário excluir estas informações. No que
ainda se refere à faixa etária, seria interessante a realização de estudo no
futuro, incluindo grande número de adolescentes, distribuídos dos 10 aos 20
anos, para verificar em qual momento da adolescência ocorreria aumento da
prevalência no sexo feminino, demonstrando a época a partir da qual a
constipação passa a predominar nesse sexo. Deve ser assinalado que entre os
progenitores dos adolescentes avaliados neste estudo, observou-se maior
prevalência de constipação nas mães (27,3%) do que nos pais (7,3%), confirmando
os achados de literatura que mostram que entre os adultos, constipação acomete
mais mulheres que homens(7, 10, 20). Vale ressaltar que são necessários estudos
prospectivos para verificar se a presença de constipação na adolescência tende
a permanecer na fase adulta, levando em conta que, no presente estudo, a
prevalência nas adultas do sexo feminino foi semelhante à das adolescentes,
enquanto que no sexo masculino foi maior nos adolescentes do que em seus pais.
Em relação à concomitância de constipação no adolescente e em seus respectivos
progenitores biológicos, observou-se ser muito leve entre constipação no
adolescente e na mãe (kappa = 0,12) e também muito leve entre constipação no
adolescente e no pai (kappa = 0,05). Este resultado confirma o caráter
multifatorial da constipação funcional, mostrando que outros fatores, além do
hereditário, participam de seu processo etiopatogênico. A discordância
estatisticamente significante revelada pelo teste de McNemar, entre os
adolescentes e seus pais, indica que a probabilidade de presença de constipação
no adolescente e ausência nos pais é maior do que a presença de constipação no
pai e ausência no adolescente. Este resultado, provavelmente, é conseqüência da
maior prevalência de constipação nos adolescentes.
No estudo de KEUZENKAMP-JANSEN et al.(9) realizado com pacientes adultos com
constipação, menciona-se que a ocorrência de antecedente familiar de
constipação é muito comum. Em estudo realizado no Brasil(24) foi observada
constipação em 9,9% dos pais e em 48,4% das mães de crianças com constipação;
no entanto, não foi informada sua ocorrência nos pais das crianças sem
constipação. Este aspecto foi avaliado em dois estudos realizados na Disciplina
de Gastroenterologia Pediátrica da Universidade Federal de São Paulo. Num deles
(17), envolvendo crianças com constipação atendidas em ambulatório
especializado, que foram comparadas com crianças sem constipação, constatou-se
antecedente materno positivo de constipação em 38,6% das mães de crianças com e
em 41,4% das mães de crianças sem constipação. Quanto aos pais, observou-se
tendência estatística (P = 0,06) de associação de constipação nos pais e seus
filhos(17). Em outro estudo realizado na Disciplina de Gastroenterologia
Pediátrica da Universidade Federal de São Paulo(4), constatou-se tendência de
maior proporção de antecedente de constipação entre as mães de crianças com
constipação. No presente estudo, utilizou-se o coeficiente kappa para avaliar a
intensidade da concordância de constipação em adolescentes e seus pais (Tabelas
3, 4). Observou-se que a concordância de constipação nos adolescentes foi muito
leve tanto com os pais, quanto com as mães. Conforme já mencionado, este
resultado sugere que o fator hereditário não tem grande participação na
etiopatogenia da constipação nos adolescentes estudados.
A alta prevalência de constipação e suas complicações fazem com que certos
autores a considerem como relevante problema de saúde pública(16, 18). Neste
sentido, é importante o reconhecimento precoce da constipação e a adoção de
medidas para seu controle, em função das conseqüências negativas associadas ao
diagnóstico tardio, que acarreta prejuízo financeiro por gerar tratamentos
prolongados e caros e, às vezes, hospitalizações por uso inapropriado de
laxantes que podem causar distúrbios hidroeletrolíticos. Não devem ser
esquecidas as repercussões no âmbito psicológico como a baixa auto-estima que
leva a problemas de relacionamento e socialização(21). Devem ser mencionadas,
ainda, as complicações orgânicas, como infecções do trato urinário, escape
fecal, dor abdominal crônica recurrente, sangramento retal, diverticulose,
trombose hemorroidária, fissura anal, prolapso retal, proctite e até, mais
raramente, o câncer de cólon(5, 13, 15).
Antes de finalizar, deve ser mencionado que no presente estudo o baixo índice
de resposta dos questionários (14,9%) foi um dado surpreendente. Não se
investigou as razões deste dado de maneira sistemática, mas possível explicação
é o fato de que nossa população não esteja habituada a participar de projetos
de pesquisa. Algumas famílias mencionaram preocupação de que as informações
fornecidas pudessem ser utilizadas com outras finalidades, apesar do contrário
ter sido informado no termo de consentimento. Outros aspectos também podem ter
contribuído para o baixo índice de retorno dos questionários como a natureza do
assunto abordado e a falta de disponibilidade de tempo por todos os componentes
da família para responderem-no.
Os resultados obtidos neste estudo são um alerta por mostrar elevada
prevalência de constipação em adolescentes. É importante que se desenvolvam
programas educacionais que estimulem os adolescentes a procurar orientação para
o controle da constipação, uma vez que o diagnóstico precoce e o tratamento
adequado podem reduzir o risco das complicações futuras da constipação,
especialmente as mudanças dietéticas e do estilo de vida.
Concluindo, constipação intestinal é um distúrbio funcional com alta
prevalência na adolescência. Não se constatou concordância relevante entre
constipação nos adolescentes e em seus progenitores.