Peritonite bacteriana espontânea: impacto das mudanças da microbiologia
ARTIGO ORIGINALORIGINAL ARTICLE
Peritonite bacteriana espontânea: impacto das mudanças da microbiologia
Spontaneous bacterial peritonitis: impact of microbiological changes
Paulo Roberto Lerias de AlmeidaI; Nutianne Schneider CamargoII; Maximilhano
ArenzII; Cristiane Valle TovoII; Bruno GalperimII; Paulo BeharIII
IServiço de Medicina Interna, Hospital Nossa Senhora da Conceição, Porto
Alegre, RS
IIServiço de Gastroenterologia, Hospital Nossa Senhora da Conceição, Porto
Alegre, RS
IIIComissão de Controle de Infecção Hospitalar, Hospital Nossa Senhora da
Conceição, Porto Alegre, RS
Correspondência
INTRODUÇÃO
A peritonite bacteriana espontânea (PBE) é definida como a infecção do líquido
de ascite em pacientes com cirrose, na ausência de foco abdominal aparente de
infecção(8). Provavelmente se origina da passagem de bactérias do lúmen
intestinal para a circulação sistêmica e, então, para o líquido de ascite(10).
A colonização do mesmo durante episódios de bacteremia é, atualmente, hipótese
também aceita para a patogênese da PBE(4).
Sua prevalência em pacientes cirróticos com ascite, por ocasião da admissão
hospitalar, varia entre 10% e 30%(4). Já o risco de desenvolvimento de PBE
durante a internação varia de 20% a 60%(5), sendo a mortalidade de 20% a 40%.
Falha no tratamento ocorre em 10%, acarretando mau prognóstico, com mortalidade
hospitalar de 50% a 80%(9). A probabilidade de recurrência de PBE é de 43% em 6
meses, sendo que a sobrevida em 2 anos após o desenvolvimento da mesma é de
apenas 50%(8).
Em relação ao diagnóstico microbiológico, a cultura do líquido de ascite
mostra-se negativa em mais de 60% dos casos, quando do uso de técnicas
convencionais, mesmo na presença de manifestações clínicas sugestivas. O
emprego de frascos de hemocultura para inoculação do material coletado
possibilita aumento para até 90% na chance de obter cultura positiva(9).
Mais de 60% dos episódios de PBE são causados por bactérias gram-negativas
entéricas. Os germes mais comuns isolados são Escherichia coli e Klebsiella
pneumoniae. Os germes gram-positivos estão presentes em 25% dos episódios de
PBE, sendo as espécies estreptocócicas as mais freqüentemente isoladas(11).
Entretanto, durante a última década, considerável mudança na epidemiologia dos
germes causadores de PBE tem ocorrido. Essa alteração tem sido atribuída ao
aumento da sobrevida, ao aumento do número de procedimentos invasivos e ao uso
prolongado de antibióticos para descontaminação intestinal(5).
Assim, as alterações das características microbiológicas relatadas nos últimos
anos podem ser de impacto na escolha do tratamento empírico.
Os objetivos do presente estudo foram avaliar as mudanças na epidemiologia e
nas taxas de resistência bacteriana dos germes causadores de PBE no transcorrer
de um período de 7 anos em um hospital geral.
MÉTODOS
A população avaliada constitui-se de pacientes hospitalizados no Hospital Nossa
Senhora da Conceição (HNSC), a maior dentre as quatro unidades hospitalares
pertencentes ao complexo denominado Grupo Hospitalar Conceição, Porto Alegre,
RS, o qual está vinculado ao Ministério da Saúde e que conta com 1 800 leitos.
Dentre estes, 830 estão na unidade do presente estudo - HNSC, que apresenta
média mensal de internações de 2 440 pacientes, sendo 100% dos serviços
voltados para atendimentos aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Trata-
se, pois, de instituição de referência para casos de maior complexidade, com
usuários de baixo nível socioeconômico-cultural.
Foram avaliados, retrospectivamente, todos os casos de pacientes cirróticos com
PBE em que a cultura do líquido de ascite foi positiva, sendo estudados dois
períodos: 1997-1998 e 2002-2003. Foram verificados os microorganismos mais
freqüentes e a sensibilidade in vitro aos antibióticos, assim como a presença
ou ausência de quimioprofilaxia. Em ambos os períodos estudados a identificação
das amostras bacterianas e o teste de susceptibilidade aos antimicrobianos
foram realizados pelo teste automatizado Microscan® (Dade Behring, WalkAway-
96).
O teste qui-quadrado foi utilizado para comparar as proporções entre os
microrganismos gram-positivos e gram-negativos nos dois períodos avaliados,
através da utilização do Programa Epi-Info(3).
RESULTADOS
No primeiro período (1997-1998) houve 33 casos, sendo 3 (9,09%) de infecções
polimicrobianas. As bactérias mais freqüentes foram E. coli em 13 (36,11%),
estafilococos coagulase-negativos em 6 (16,16%), K. pneumoniae em 5 (13,88%),
S. aureus em 4 (11,11%) e E. faecalis com 3 casos (8,33%).
No segundo período (2002-2003), com 43 casos sendo 2 (4,65%) polimicrobianos,
os germes mais freqüentes foram estafilococos coagulase-negativos em 16 casos
(35,55%), S. aureus em 8 casos (17,77%), E coli em 7 (15,55%) e K. pneumoniae
em 3 (6,66%).
O número total de bacilos gram-negativos foi de 20 (55,6%) e de 16 (35,6%) no
primeiro e no segundo período do estudo, respectivamente; o número de gram-
positivos foi de 16 (44,4%) e 29 (64,4%). A comparação das proporções nos dois
períodos, pelo teste do qui-quadrado, mostrou forte tendência de mudança
epidemiológica, mas sem diferença estatisticamente significante (P = 0,07),
tanto em relação à prevalência dos gram-negativos, quanto em relação à dos
gram-positivos.
Nenhum paciente fazia uso de profilaxia para PBE.
Outros germes identificados estão descritos na Tabela_1.
No que diz respeito às taxas de resistência bacteriana, seu espectro completo
nos dois períodos analisados está demonstrado no Quadro_1.
Em relação às taxas de resistência bacteriana, observou-se que a prevalência de
S. aureus meticilino-resistentes (MRSA) aumentou de 25% para 75% entre os dois
períodos, o que implica nos mesmos níveis de resistência para com outros
antibióticos ß-lactâmicos como cefalosporinas de I e III geração e imipeném.
Taxas de resistência algo menores, da ordem de 50%, fez-se presente para com
ciprofloxacina e sulfametoxazol-trimetoprim no segundo período, taxas estas
duplicadas em relação ao primeiro período. Tão somente a droga vancomicina
manteve-se 100% ativa contra S. aureus e S. epidermidis no decorrer dos
períodos analisados.
Já o E. faecalis, outro coco gram-positivo com alguma freqüência na PBE,
manteve-se 100% sensível aos antibióticos testados.
No que diz respeito aos germes gram-negativos, um cenário menos sombrio se
configura em relação à E. coli, cuja resistência antimicrobiana migrou, tão
somente, de 0 para 16% em relação às cefalosporinas de 3ª geração e à
ciprofloxacina. Não obstante, a K. pneumoniae apresentou taxas de resistência
da ordem de 66% para estes antibióticos no segundo período, três vezes superior
àquelas apresentadas no primeiro período, mantendo sensibilidade total apenas
ao imipeném.
DISCUSSÃO
Infecções bacterianas são problemas clínicos importantes em pacientes com
cirrose descompensada. Podem estar presentes na admissão ou desenvolver-se
durante a hospitalização em 20% a 60% dos pacientes(5). Ao mesmo tempo, são
causas comuns de morte.
Durante a última década, a prática na hepatologia mudou consideravelmente e
isto pode ter influenciado na epidemiologia das infecções bacterianas em
hepatopatas. O tratamento de pacientes cirróticos com complicações graves em
unidades de terapia intensiva difundiu-se, particularmente com a ampliação dos
programas de transplante hepático e procedimentos invasivos usados neste
cenário(4). Da mesma forma, novos tratamentos invasivos foram desenvolvidos e
são amplamente usados para complicações específicas da cirrose, incluindo
ligadura elástica de varizes esofágicas, TIPS e embolização arterial ou ablação
percutânea do carcinoma hepatocelular. Esses procedimentos podem, também, estar
associados com infecções(12).
Finalmente, a descontaminação intestinal seletiva (DIS) com norfloxacina, que
foi introduzida em 1987, é agora largamente usada na profilaxia primária e
secundária de PBE, bem como na prevenção da bacteremia espontânea em
cirróticos. A DIS contínua é conduta estabelecida (nível de evidência 1) em
pacientes que já apresentaram PBE, em pacientes hospitalizados que apresentem
menos de 1 g/dL de proteína no líquido de ascite e deve ser utilizada também,
por período de 7 dias, em pacientes com sangramento do trato gastrointestinal
(5, 11). Assim, a profilaxia da PBE está centrada na chamada DIS através do uso
de quimioterápicos que diminuem seletivamente a proporção de bacilos gram-
negativos aeróbicos da flora intestinal, pois esses germes seriam os maiores
responsáveis pelas infecções em cirróticos. As drogas usadas são norfloxacina,
ciprofloxacina e sulfametoxazol-trimetoprim.
Todos esses fatores podem ter influenciado na mudança etiológica e na
resistência antimicrobiana dos germes causadores de PBE em cirróticos(4, 5, 9).
Essa mudança no perfil dos pacientes e dos patógenos deve ser cuidadosamente
acompanhada, pois tem implicância direta na escolha empírica dos
antimicrobianos.
Assim, outro problema emergente de relevância tem sido as infecções causadas
por bacilos gram-negativos resistentes às quinolonas(12). Estudo recente(5)
demonstrou que 26% de todos os episódios de PBE foram causados por bacilos
gram-negativos resistentes às quinolonas, com taxas variáveis na dependência do
uso prévio de quimioprofilaxia com norfloxacina: 50% entre aqueles que a
praticavam, contra 16% em relação àqueles que não faziam uso desta estratégia.
Também a quimioprofilaxia prolongada com norfloxacina esteve igualmente
associada com altas taxas (44%) de PBE causadas por gram-negativos resistentes
à sulfametoxazol-trimetoprim, sugerindo que este antibiótico não seja uma
alternativa à norfloxacina(5). Neste mesmo estudo, afortunadamente as cepas de
E. coli resistentes às quinolonas mantiveram-se sensíveis às cefalosporinas de
terceira geração(5).
No presente estudo, observou-se que, no decorrer dos períodos analisados, tanto
a ciprofloxacina quanto as cefalosporinas de terceira geração mantiveram boa
atividade antimicrobiana sobre alguns gram-negativos, como E. coli, que se
mostrou resistente apenas em 14% da amostra do segundo período. Ressalte-se,
porém, que nenhum dos pacientes da amostra vinha em uso profilático de
norfloxacina. Todavia, já em relação às amostras de Klebsiella sp., gram-
negativos prevalentes na PBE também nesta casuística, chama a atenção o
desenvolvimento de resistência antimicrobiana da ordem de 66% para os
antibióticos acima citados.
Houve também, na presente análise, forte tendência ao aumento de casos de PBE
por cocos gram-positivos, sendo relevantes os estafilococos coagulase-negativos
e S. aureus, apesar de nenhum dos pacientes ter feito uso de antibióticos
profiláticos antes da ocorrência de PBE. De importância mais notória, seu
perfil de resistência acusou aumentos de 25% para 50%-75% para com todas as
drogas testadas, incluindo-se as cefalosporinas de terceira geração, à exceção
da vancomicina.
Observação também importante é a de que, no primeiro período analisado, S.
aureus foi a bactéria mais identificada no total das culturas realizadas em
toda a Instituição(6), tendo S. epidermidis ocupado o sexto lugar; a taxa de
MRSA foi de 61% e a de S. epidermidis meticilino-resistente (MRSE) de 66%. No
segundo período estudado, S. aureus passou para o segundo lugar e o S.
epidermidis manteve sua posição, sendo que as taxas de resistência à meticilina
foram semelhantes ao período anterior(6). Quando se observam as taxas de
prevalência e de resistência desses microrganismos especificamente para PBE,
verifica-se exatamente o oposto. Isto sugere a existência de causas
particulares para esse cenário clínico específico de PBE, a serem buscadas.
A tendência da participação cada vez maior de cocos gram-positivos,
principalmente estafilococos, nas infecções bacterianas graves de cirróticos
hospitalizados, não apenas sob a forma de PBE mas também e especialmente sob a
forma de bacteremias em geral, foi ressaltada em relato recente do Clube
Internacional de Ascite(12). Em pacientes que recebiam profilaxia para PBE,
essa observação era mais notável e, particularmente interessante, bacteremias
foram inteiramente devidas a bactérias gram-positivas(1). Em outro estudo, 53%
da totalidade de infecções bacterianas em cirróticos hospitalizados foram
devidas a cocos gram-positivos e, se a infecção fora caracterizada como
nosocomial, esse índice subia para 59%(1). Pacientes manejados em UTI e aqueles
submetidos a procedimentos invasivos apresentaram taxas mais elevadas de
infecções por cocos gram-positivos (77% vs. 48%, P <0,001 e 58% vs. 40%, P
<0,02, respectivamente)(5).
Talvez de maior relevância seja a observação do estudo francês de CAMPILLO et
al.(2). Dentre 200 pacientes cirróticos hospitalizados com mais de 300
infecções documentadas, 93% foram caracterizadas como nosocomiais e cerca de 2/
3 causadas por patógenos gram-positivos. As taxas de mortalidade foram
significativamente superiores naqueles com infecções nosocomiais comparado aos
com infecções comunitárias (P = 0,0255) e nos com infecções estafilocócicas
comparados às infecções por outras bactérias (P <0,001).
A natureza da doença subjacente à infecção nestes pacientes ' cirrose
descompensada ', condição imunossupressora, associada à gravidade dos pacientes
atendidos no hospital do estudo, a maior proporção de pacientes tratados em
UTI, ao maior número de procedimentos invasivos e ao eventual tempo prolongado
de hospitalização, constituem-se em possíveis fatores de risco para infecções
por estafilococos.
A valorização e significância clínica de espécies de estafilococos coagulase-
negativos obtidas nos mais diversos materiais biológicos continua aumentando à
medida que as estratégias diagnósticas e terapêuticas levam a uma proporção
crescente de procedimentos invasivos(7). Pacientes hospitalizados
imunocomprometidos constituem a população mais vulnerável a esses tipos de
patógenos. Todavia, identificá-los como agentes etiológicos ou flora
contaminante segue como forte desafio: presença de quadro clínico infeccioso,
cultura positiva e ausência de outro microorganismo identificável devem levar à
consideração se esse patógeno é ou não agente etiológico(7).
Portanto, este estudo sugere iminente inclusão de antibiótico eficaz contra
gram-positivos, principalmente S. aureus, ou seja, um glicopeptídio como
vancomicina, no tratamento empírico da PBE, no hospital estudado, em futuro
próximo. O momento preciso dessa mudança de padrão de conduta terapêutica
deverá ser orientado pela vigilância epidemiológica local. Casos específicos de
pacientes que apresentem fatores de risco para infecção por estafilococos,
entretanto, podem considerar o uso imediato de um glicopeptídio.