Recidiva da ingesta alcoólica em pacientes candidatos a transplante hepático:
análise de fatores de risco
ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE
Recidiva da ingesta alcoólica em pacientes candidatos a transplante hepático.
Análise de fatores de risco
Relapse of alcohol consumption in liver transplant candidates. Risk factor
analysis
Andrea VieiraI; Ernani Geraldo RolimI; Armando De Capua JrII; Luiz Arnaldo
SzutanII
IClinica de Gastroenterologia do Departamento de Clínica Médica
IIÁrea de Hipertensão Portal e Fígado do Departamento de Cirurgia, Irmandade da
Santa Casa de Misericórdia de São Paulo/Faculdade de Ciências Médicas da Santa
Casa de São Paulo, SP
Correspondência
INTRODUÇÃO
A doença hepática é uma importante complicação provocada pelo álcool(21). A
expressão histológica reflete a instalação de lesões agudas, como a esteatose e
a hepatite alcoólica, ou crônicas, como a hepatite crônica ativa, esclerose da
veia centrolobular, cirrose e carcinoma hepatocelular(27). A cirrose é uma
significante causa de morbidade e mortalidade no mundo ocidental(11, 24, 34).
A abstinência tem importante papel em todas as formas de doença hepática
alcoólica(34), porém, quando a falência hepática se instala, o transplante de
fígado é aceito como terapia mais eficaz(2, 3, 13, 31, 33).
Entretanto, até 1985, pacientes com doença hepática avançada, cuja causa era o
álcool, raramente eram beneficiados pelo recurso terapêutico do transplante
hepático. O pessimismo em relação a este procedimento baseava-se na crença de
que os resultados do transplante eram inferiores aos obtidos em outras formas
de doenças hepáticas, aliado ao temor da recidiva do consumo alcoólico após o
transplante, resultando em dano sobre o enxerto(12).
Alguns autores acreditavam que as limitações do transplante, nesse tipo de
paciente, ocorriam não só pela presença da doença hepática, mas também pelo
comprometimento cerebral, miocardiopatia, deficiências vitamínicas múltiplas e
anormalidades da musculatura. O alto potencial de complicações, muitas vezes
pela não aderência ao uso das medicações imunossupressoras, associava-se a
esses motivos(35). Muitos centros relutavam em aceitar a idéia de transplantar
fígado em pacientes alcoólatras, considerando todos os fatores acima
comentados, como também o pequeno número de doadores e a opinião pública tão
adversa.
A partir de 1985, estudos realizados em diferentes centros encontraram índices
de sobrevida pós-transplante em pacientes com cirrose alcoólica semelhantes aos
obtidos em pacientes com doença hepática não relacionada ao álcool(3, 17, 19,
25, 28, 32, 33, 39).
Nos tempos atuais, a cirrose alcoólica tornou-se uma das mais comuns indicações
de transplante na Europa e América(9, 13, 24, 30, 36).
Entretanto, apesar de os resultados em termos de sobrevida no pós-transplante
em pacientes com cirrose alcoólica, se assemelharem aos encontrados nos
pacientes com outras doenças hepáticas, a possibilidade de recidiva do consumo
do álcool após transplante causa preocupação e ainda é objeto de controvérsia e
debate(5, 6, 16).
A necessidade de intervalo de abstinência pré-transplante tem sofrido
reavaliações, mas a maioria dos centros de transplante adota o mínimo de
abstinência de pelo menos 6 meses antes do transplante hepático(16, 31). Alguns
autores criticam este período como fator preditivo ruim de abstinência futura,
além de o considerarem um tempo arbitrário e punitivo para muitos pacientes
(1).Outros mostram que, quanto maior o período de abstinência no pré-
transplante, menor será a recidiva no pós-transplante(23).
De qualquer forma, a maioria dos estudos aponta para bons resultados e baixo
índice de recidiva se for realizada criteriosa seleção dos pacientes no pré-
transplante, incluindo avaliação multidisciplinar completa com a análise da
equipe de psicologia e/ou psiquiatria para a liberação dos pacientes, bem como
para minimizar a recurrência da doença(4).
OBJETIVO
Estudar a recidiva da ingesta alcoólica e eventuais fatores a ela relacionados,
em pacientes cirróticos alcoolistas, e que após rigorosa seleção foram
referidos para transplante hepático.
MÉTODO
Casuística
Em levantamento retrospectivo de prontuários médicos do serviço de arquivos
médicos da Santa Casa de São Paulo, no período de julho de 1995 a setembro de
2005, 97 pacientes foram selecionados com diagnóstico de cirrose listados para
transplante hepático.
Os pacientes incluídos eram adultos (idade maior ou igual a 18 anos). O
diagnóstico da cirrose alcoólica foi feito com base na história de consumo de
álcool, achados laboratoriais e clínicos compatíveis.
Foram excluídos aqueles que não tiveram período de abstinência alcoólica
superior ou igual a 6 meses, não tinham sido liberados pela equipe de
psicologia ou foram a óbito antes de completar a avaliação inicial.
Todos os pacientes foram avaliados por uma equipe multidisciplinar incluindo,
além dos hepatologistas e transplantadores, cardiologistas, pneumologistas,
psiquiatras e/ou psicólogos, nutricionistas e assistentes sociais.
MÉTODOS
Foram analisadas variáveis pré e pós-transplante.
Variáveis pré-transplante
Estudou-se a idade dos pacientes, no momento da inclusão na lista de espera
para transplante hepático, sexo, raça, a classificação de disfunção hepática
segundo Child-Pugh, presença concomitante de hepatite viral crônica e/ou
hepatocarcinoma, bem como outras doenças associadas.
Somente eram listados pacientes com Child-Pugh classe B ou C. A inclusão de
pacientes Child classe A ocorria mediante a presença de hepatocarcinoma.
Dados como tempo de abstinência alcoólica e tempo de etilismo também foram
coletados e calculados no momento de inclusão na lista. Outra variável
analisada foi a quantidade de ingesta alcoólica em gramas de etanol, por dia.
Variáveis pré e pós-transplante
Analisou-se o tempo de seguimento desde a inclusão na lista até o óbito, fim do
estudo, ou ainda até a recidiva alcoólica, momento em que o paciente era
retirado da lista.
A recidiva alcoólica foi definida como consumo de qualquer quantidade de
bebida. O diagnóstico da ingesta alcoólica baseava-se na coleta de informações
fornecidas pelo paciente e/ou familiares nas consultas de rotina, com a equipe
de transplante, psicologia e serviço social, descritas nos prontuários, bem
como por contato telefônico realizado com todos os pacientes e/ou familiares,
durante o estudo.
Análise estatística
Empregou-se, para análise dos dados, o programa estatístico SPSS (Statistical
Package for Social Sciences para Windows versão 10.0), observando níveis de
significância iguais ou inferiores a 5% (0,05).
Foi aplicado o teste exato de Fisher para as variáveis: sexo, raça, Child,
óbito, realização ou não de transplante hepático, em comparação com a recidiva
alcoólica.
Para a comparação tempo de abstinência alcoólica, tempo de etilismo e
quantidade em gramas de etanol/dia com recidiva, foi aplicado inicialmente o
teste t de Student, porém a variabilidade dos dados era muito elevada para este
teste, sendo portanto necessária a aplicação do teste de Mann-Whitney, que
também foi usado para a comparação idade e recidiva, bem como tempo de
abstinência e de etilismo, quantidade de ingesta em gramas de etanol/dia em
relação ao sexo.
RESULTADOS
Noventa e sete pacientes foram selecionados, porém sete foram excluídos por não
terem sido liberados pela equipe de psicologia (considerados não favoráveis ao
transplante) ou foram a óbito em poucos meses, sem terem a oportunidade de
serem avaliados por toda a equipe.
A maioria dos pacientes (93,3%) era de raça branca e a média das idades
encontrada foi de 47 anos (19 a 64 anos).
Em relação à cirrose hepática, em 52 pacientes o álcool era a única causa de
disfunção hepática, seguida da associação álcool e vírus C, em 31 casos e vírus
B, em 4 casos. Em um caso foram encontrados doença de Wilson, colangite
esclerosante primária e Caroli, respectivamente, associadas ao álcool.
O estádio da disfunção hepática, segundo a classificação de Child-Pugh foi:
classe A (5-6), em 2 (2,2%); B (7-9), em 54 (60%) e C (10-15), em 34 casos
(37,8%).
Em relação à quantidade de ingesta alcoólica em gramas de etanol/dia, coletada
no momento da inclusão na lista de espera para o transplante, a média observada
foi de 163,70. Não houve diferença estatisticamente significante dessa
variável, quando comparada ao sexo (P = 0,60).
A média do tempo de abstinência e de etilismo em meses, também calculados no
momento da entrada na lista de espera para o transplante hepático, foi de 30,9
e 242,3, respectivamente. Não se observou diferença dessas variáveis em relação
ao sexo.
A média do tempo de seguimento dos pacientes foi de 29,6 meses. É importante
lembrar que este tempo foi considerado como intervalo desde a inclusão na lista
até a recidiva, óbito ou final do estudo, se os dois primeiros não ocorressem.
A recidiva alcoólica encontrada foi de 18,9 (Tabela_1).
Dos seis pacientes da raça negra, somente um recidivou à ingesta alcoólica.
Assim, a relação raça e recidiva não teve diferença significante (P = 0,684).
Não houve diferença da média das idades dos pacientes que recidivaram à ingesta
alcoólica em relação àqueles que não recidivaram (P = 0,223).
A classificação de disfunção hepática, segundo Child- Pugh, quando comparada
com a recidiva, não mostrou significância estatística (P = 0,572). Para as
variáveis tempo de etilismo e quantidade de ingesta alcoólica em gramas de
etanol/dia, coletados no momento de inclusão na lista, quando comparadas com a
recidiva alcoólica, a diferença também não foi significante.
A comparação tempo de abstinência alcoólica, avaliado no momento da inclusão na
lista de espera, e recidiva da ingesta alcoólica, demonstrou resultados
estatisticamente significantes (Tabelas_2 e 3)
Durante o estudo, 17 pacientes foram submetidos ao transplante hepático.
Destes, 11,8% (dois pacientes) recidivaram com 1 e 28 meses após o transplante,
durante 29 e 33 meses de acompanhamento, respectivamente, e 88,2% se mantiveram
abstêmios. Porém, em relação à percentagem de pacientes que recidivaram no
total, 2,2% eram pacientes transplantados e 16,7% encontravam-se na lista de
espera. Esses pacientes que aguardavam o transplante recidivaram após um tempo
de seguimento que variou de 7 a 50,4 meses (média de 15,31). Comparando
pacientes transplantados e não-transplantados e recidiva da ingesta alcoólica,
não houve correlação significante.
DISCUSSÃO
A doença hepática alcoólica representa a segunda principal indicação de
transplante hepático na atualidade, sendo superada apenas pela hepatite C(7,
22).
Antes do advento do transplante, não existia terapia específica para a doença
hepática alcoólica, com exceção da abstinência alcoólica. Embora esta medida
seja o fundamento do tratamento da cirrose alcoólica, sabe-se que seu impacto
na sobrevivência de pacientes acometidos pela doença avançada é limitado.
Nestas circunstâncias, o transplante hepático é a única opção que oferece real
benefício em termos de sobrevida a longo prazo(29, 31).
A inclusão da cirrose alcoólica nos programas de transplante hepático sempre
sofreu resistência por parte da opinião pública e de segmentos da comunidade
médica. O principal argumento utilizado era a grande probabilidade de que
índices elevados de recidiva diminuíssem a sobrevida, quer pelo desenvolvimento
de lesões graves no enxerto associadas ao etanol, quer por outros problemas
médicos com uso inadequado de imunossupressores ou complicações associadas ao
alcoolismo crônico. Muitos estudos a respeito da recidiva de consumo de álcool
após o transplante hepático têm sido publicados na última década(7, 10, 14, 15,
17, 23, 25, 28, 32). A maioria dos trabalhos demonstra taxas de recidiva ao
redor de 12% a 50%(4, 5, 6, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 20, 28).
Na presente casuística as mulheres recidivaram mais que os homens. Este dado é
diferente dos achados da literatura que mostram que os homens, além de beberem
por muito mais tempo, recidivam a ingesta alcoólica com maior freqüência(4,
23).
DIMARTINI et al.(8), em estudo epidemiológico, demonstraram que mulheres podem
desenvolver cirrose com menor consumo de etanol ou ainda por um período de
etilismo menor que o dos homens. Desta forma, elas devem ser mais orientadas em
relação aos riscos do etanol e ao tratamento precoce para evitarem o
desenvolvimento da cirrose.
PAGEAUX et al.(28) descreveram que pacientes jovens têm mais probabilidade de
recidiva da ingesta alcoólica. Na amostra estudada, a idade não influenciou na
recidiva da ingesta alcoólica.
Notou-se neste estudo que o tempo de abstinência alcoólica influenciou a
recidiva subseqüente. Muitos trabalhos têm mostrado resultados semelhantes(10,
28). Segundo MALDONADO e KEEFFE(23), a maioria dos centros transplantadores
ainda acredita que são necessários 6 meses de abstinência pré-transplante.
Centros como King's College, Pittsburgh e Clinica Mayo demonstraram altas taxas
de recaída nos pacientes que não apresentavam 6 meses de abstinência: 34%, 43%
e 66%, respectivamente.
Seis meses de abstinência seriam suficientes para evitar a recidiva? No
trabalho em questão foi preciso mais do que 1 ano de abstinência para diminuir
as taxas de recidiva.
FOSTER et al.(11), avaliando 33 variáveis pré-transplante, concluíram que
somente 7 influenciavam na recidiva: idade do receptor no tempo de transplante,
história de co-morbidades associadas com abuso de drogas, convicção da
influência alcoólica, membros de centros de reabilitação, passagem pela polícia
antes do transplante por problemas relacionados ao álcool, número de irmãos
alcoolistas e tempo de abstinência pré-transplante. Após análise estatística,
notou-se que o período de abstinência pré-transplante muito curto é um
parâmetro pobremente sensível para predizer a abstinência subseqüente. Um
período longo é um parâmetro muito sensível, porém pouco específico. O melhor é
o período de 7 a 9 meses com sensibilidade de 61% a 84% e especificidade de 64%
a 68%.
Em contrapartida, muitos autores contra-indicam período fixo de abstinência
para a inclusão dos pacientes com cirrose alcoólica na lista de espera para
transplante. Questionam o aspecto ético de estipular um período arbitrário em
pacientes cuja morte pode ser o preço de uma espera significativa(5, 6, 17,
33). Outros estudos demonstram não haver relação entre a abstinência pré- e a
recidiva pós-transplante(4, 8, 9, 12).
Na seleção dos pacientes alcoolistas para transplante, o período de abstinência
pré-transplante, obviamente, não é o único parâmetro importante(37, 38). Uma
criteriosa avaliação pela equipe de psicologia e/ou psiquiatria é fundamental
para identificar pacientes, cujo risco da recaída é infinitamente superior ao
benefício do transplante hepático. Isso já foi descrito em outros estudos(7,
26, 28). Sem dúvida, a criteriosa avaliação realizada neste estudo garantiu uma
taxa de recidiva de somente 18,9%, quando comparada a de outros centros: 31%(4,
5), 32%(28), 37,8%(9) e 50%(11).
CONCLUSÕES
A análise dos dados obtidos na presente casuística de pacientes alcoolistas com
indicação para transplante hepático permite concluir que:
- A recidiva da ingesta alcoólica é baixa.
- Sexo feminino e tempo de abstinência inferior a 1 ano têm influência sobre a
recidiva da ingesta alcoólica.
AGRADECIMENTO
Agradecemos ao Núcleo de Apoio à Publicação da Faculdade de Ciências Médicas da
Santa Casa de São Paulo (NAP-SC) o suporte técnico-científico à publicação
deste manuscrito.