Níveis plasmáticos de taurina e de seus precursores em pacientes com câncer de
esôfago
ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE
Níveis plasmáticos de taurina e de seus precursores em pacientes com câncer de
esôfago
Plasma taurine levels in patients with esophagus cancer
Vânia Cristina Lamônica-GarciaI; Flávia Andréa MarinI; Mauro Masson LercoII;
Fernando MoretoIII; Maria Aparecida Coelho Arruda HenryII; Roberto Carlos
BuriniIV
IPrograma de Pós-graduação em Bases Gerais da Cirurgia
IIDepartamento de Cirurgia e Ortopedia
IIIPrograma de Pós-graduação em Patologia
IVDepartamento de Saúde Publica e Centro de Metabolismo em Exercício e
Nutrição, Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista, Botucatu, SP
Correspondência
INTRODUÇÃO
O câncer de esôfago (CE) é uma doença cuja resultante desnutrição protéico-
energética constitui um dos principais fatores de risco, devido à diminuição da
ingestão de alimentos e às alterações metabólicas promovidas pelo crescimento
tumoral. Tal enfermidade é mais freqüente em pessoas do sexo masculino, com
idade acima de 50 anos, e está intimamente relacionada ao consumo excessivo de
álcool e tabaco(4).
Tendo em vista que o CE se constitui em doença de prognóstico desfavorável, com
grandes implicações metabólico-nutricionais, é de grande importância entender
sua patogênese e desenvolver estratégias para a prevenção e melhoria da
sobrevivência de pacientes acometidos desse mal.
Há evidências de que a regulação de citocinas pró-inflamatórias e a estimulação
de citocinas antiinflamatórias poderiam favorecer uma resolução mais eficiente
da resposta inflamatória em pacientes com CE, prevenindo o aparecimento de
complicações e melhorando sua sobrevivência. Esses benefícios podem estar
relacionados com as ações da taurina(1, 8, 19).
Existem poucos trabalhos estudando os níveis de taurina plasmática em humanos
com câncer, principalmente com neoplasias malignas de esôfago(8, 31).
A taurina é um aminoácido livre, abundante no meio intracelular, proveniente do
metabolismo da metionina, sendo indispensável para felinos e condicionalmente
indispensável em humanos. Isso porque seus níveis plasmáticos diminuem em
determinadas situações de estresse metabólico como sepse, traumas e cirurgias.
Curiosamente, esse aminoácido não é incorporado a outras proteínas por não ter
o RNA mensageiro específico(24).
A síntese desse aminoácido ocorre por derivação da metionina e cisteína,
portanto sem recomendações estabelecidas (RDA -Recommended Daily Allowance)
para humanos(11).
Suas funções principais são osmorregulação, modulação do cálcio iônico,
estabilização da membrana plasmática, detoxificação dos ácidos biliares,
desenvolvimento do sistema nervoso central e da retina, neurotransmissor
inibitório, imunomodulação e atividade antioxidante, diminuição da formação do
ácido hipocloroso (HOCl-) na eclosão fagocitária e, também, possível modulação
das citocinas pró-inflamatórias(22, 23, 24).
A mieloperoxidase (MPO) é uma enzima liberada dos neutrófilos durante a eclosão
respiratória no processo inflamatório(25); sua combinação com peróxido de
hidrogênio (H2O2), proveniente da ação do superóxido, e o cloro (Cl-) formam o
HOCl-, agente bactericida altamente deletério. No entanto, sua toxicidade não é
restrita às membranas bacterianas, danificando também as células do hospedeiro
(26). Os leucócitos, quando ativados, utilizam o sistema MPO-H2O2-Cl-,
juntamente com a taurina, para formar taurocloramina, composto de menor
citotoxicidade do que o HOCl-. Assim, a taurina tem papel importante na
preservação da integridade dos leucócitos pela competição pelo HOCl-(22, 25).
Trabalhos in vitro(5, 18, 21, 25) mostram que as concentrações de taurina, nos
neutrófilos, linfócitos e leucócitos, são extremamente altas. Há evidências de
que essas concentrações ocorram em virtude de possível modulação da função
imune, pela preservação da habilidade fagocítica dos neutrófilos, por meio da
interação com a enzima MPO(22, 23). Não foram encontrados trabalhos similares
in vivo, em humanos.
Considerando o exposto, este estudo se propôs a estudar o metabolismo da
taurina em pacientes com CE.
MÉTODO
Foram triados 36 indivíduos, sendo 16 pacientes com CE (grupo 1 - G1) e 20
indivíduos controle (grupo 2 - G2), no período de janeiro a dezembro de 2004. O
G1 foi composto por duas mulheres e 14 homens com média de idade de 59,7 ± 9,9
(43-73) anos, com diagnóstico de CE admitidos na enfermaria da gastrocirurgia
do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu - Universidade
Estadual Paulista - UNESP, Botucatu, SP. Para o grupo controle (G2) foram
selecionados 10 mulheres e 10 homens, voluntários, não-fumantes, não-
alcoólatras, não-consumidores de suplementos nutricionais, sem história prévia
de neoplasias, com idade média de 37,2 ± 9,8 (27-65) anos. Todos os
participantes foram informados sobre os procedimentos da pesquisa e assinaram o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido aprovado pelo Comitê de Ética em
Pesquisa local. Após o diagnóstico de CE e estádio de acordo com a
classificação dos tumores malignos TNM (International Union Against Cancer -
UICC,1987), foi realizada avaliação do estado nutricional (bioquímica e
antropométrica) e colhido sangue para análise dos aminoácidos sulfurados
(taurina, cisteína e homocisteína) pelo método de Cromatografia Líquida de Alta
Eficiência (HPLC)(10, 27), antes de qualquer intervenção clínica ou
nutricional. O método consistiu na avaliação clínica por meio de endoscopia e
biopsia da lesão esofágica. Após a confirmação de neoplasia maligna, procedeu-
se à broncoscopia e tomografia tóraco-abdominal para se efetuar o estádio. A
caracterização nutricional envolveu aspectos antropométricos e bioquímicos. A
avaliação antropométrica foi composta pela percentagem de perda de peso (%PP),
índice de massa corporal (IMC), percentagem de gordura corporal (%GC) e
circunferência muscular do braço (CMB). A avaliação bioquímica constou de
contagem total de linfócitos (CTL), albumina plasmática, glicemia, hematócrito,
hemoglobina, colesterol total e frações, triglicerídios e aminotransferases.
Foram considerados valores normais para taurina plasmática os compreendidos
entre 25-100 µmol/L(11); para homocisteína entre 5-15 µmol/L(28) e, para
cisteína, consideraram-se aceitáveis os valores entre 110,4-229,6 µmol/L(16).
Os dados foram analisados por meio do teste t de Student e correlação de
Pearson.
RESULTADOS
No G1 houve predominância da raça branca, sexo masculino, maior freqüência de
etilistas e tabagistas. A localização mais freqüente do tumor foi no terço
superior e o tipo histológico predominante foi carcinoma espinocelular. A
maioria dos pacientes, no momento do diagnóstico, apresentava estádio IV. A
sobrevida foi em média de 7,8 ± 5,5 meses, sendo que 56,2% sobreviveram mais de
6 meses após o diagnóstico de câncer. As intervenções terapêuticas mais
freqüentes realizadas após o diagnóstico e estádio foram as ostomias -
jejunostomia (n = 6) e gastrostomia (n = 3) - nove pacientes (50%) e cinco
(27,7%) foram submetidos a radioterapia e quatro (22,2%) sofreram
esofagectomia/gastroplastia.
A avaliação antropométrica evidenciou que os pacientes estavam em processos de
desnutrição, visto que 87,5% deles apresentaram %PP acima de 10%, bem como, 75%
mostraram CMB abaixo dos padrões de normalidade e em 52,3% a %GC abaixo dos
valores esperados. No entanto, o IMC sugeriu eutrofia em 62,5% dos pacientes.
No grupo G2 houve maior freqüência de indivíduos com excesso de peso, com
aumento de adiposidade corpórea e redução da massa muscular nas mulheres.
A distribuição dos valores das dosagens plasmáticas dos aminoácidos sulfurados
dos grupos de estudo e controle podem ser observados na Tabela_1.
![](/img/revistas/ag/v45n3/a06tab01.jpg)
Houve diferença estatística (P<0,05) entre as variáveis: CTL, hemoglobina,
colesterol total, HDL-colesterol, albumina, aminotransferases (AST e ALT) e os
aminoácidos sulfurados taurina, cisteína e homocisteína (Tabela_2).
Adicionalmente, observou-se que os pacientes que sobreviveram mais que 6 meses,
apresentaram concentrações de taurina maiores que nos pacientes que
sobreviveram menos que 6 meses (167,5 ± 75,2 µmol/L e 67,1 ± 29,5 µmol/L,
respectivamente).
A taurina e os demais aminoácidos sulfurados não se correlacionaram com nenhuma
das variáveis (bioquímicas e antropométricas) no grupo controle. No grupo de
pacientes com câncer de esôfago, no entanto, houve correlação significativa
positiva entre a taurina e a CTL (r = 0,50 e P = 0,03) (Figura_1), assim como
entre a taurina e a sobrevivência (r = 0,71 e P = 0,0001) (Figura_2).
[/img/revistas/ag/v45n3/a06fig01.jpg]
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DISCUSSÃO
No geral, a amostra estudada mostrou-se semelhantes às de outros estudos, com a
maioria dos pacientes do sexo masculino, predomínio da raça branca, idade
superior a 50 anos, uso freqüente de tabaco e álcool, predomínio do tipo
histológico carcinoma espinocelular e estádios III e IV(4, 6, 7, 14, 15, 29).
No momento do diagnóstico a maioria dos pacientes relatou ingestão de pequenas
quantidades de líquidos ou alimentos pastosos ou, então, não ingeriam nenhum
tipo de alimentos, devido à disfagia rapidamente progressiva. Esse fator pode
ocasionar deficiência de folato e elevação de homocisteína(32).
O período de sobrevivência dos pacientes foi semelhante ao observado na
literatura, em que 56,2% sobreviveram acima de 6 meses(17). A literatura sugere
que a possível explicação para o baixo índice de sobrevivência pode ser o
estado avançado da doença, bem como a debilidade orgânica desses pacientes, no
momento do diagnóstico. O baixo nível sociocultural da população analisada
contribui, de maneira importante, para o diagnóstico tardio e mau prognóstico
dessa doença(9).
No presente estudo, a anamnese nutricional mostrou que esses pacientes
apresentavam comprometidos, embora o IMC tenha sugerido eutrofia ou sobrepeso
na maioria dos indivíduos.
Por outro lado, o valor médio reduzido e a prevalência de hipoalbuminemia
observada nesses pacientes podem indicar mau prognóstico para os mesmos. No
entanto, FONSECA et al.(7), analisando o resultado da derivação esôfago-
gástrica em 24 pacientes com câncer avançado de esôfago, observaram que os
valores da albumina plasmática não foram significantemente diferentes entre os
pacientes com ou sem complicações pós-cirúrgicas.
A literatura sugere existir relação entre a alteração linfocitométrica com o
aumento da mortalidade de pacientes cirúrgicos(2, 9). No presente estudo, não
houve correlação estatística da sobrevivência pós-operatória com os níveis de
linfócitos totais. Adicionalmente, a maioria dos pacientes não apresentou
alterações significativas da CTL, em relação ao grupo controle. Resultado
semelhante foi relatado por BELGHITTI et al.(2), que estudaram 75 pacientes com
câncer de esôfago. Esses autores observaram que a metade de seus pacientes não
apresentou evidências de imunodeficiência mensurada por meio da contagem total
de linfócitos.
Neste trabalho, o número de células do sistema imune (leucócitos, neutrófilos e
linfócitos) mostrou-se dentro dos padrões de referência para pessoas normais
mas, nos pacientes a CTL correlacionou-se positivamente com a taurina,
sugerindo maior participação do sistema imune. Isso permite especular que a
maior concentração de taurina no plasma desses pacientes poderia ser devido a
maior necessidade orgânica para manutenção do sistema de defesa.
O grupo G2 apresentou concentrações plasmáticas dos aminoácidos sulfurados
(taurina, cisteína e homocisteína), equivalentes às encontradas na literatura
com referência para pessoas sadias(8, 13, 30). A homocisteína foi elevada no
grupo G1 e significativamente diferente do grupo G2. A hiperhomocisteinemia
pode estar refletindo possível deficiência vitamínica, visto que esses
pacientes no momento do diagnóstico, relatavam privação alimentar devido à
disfagia, além de ser comum a incidência de hipovitaminose (B12, folato e B6)
em consumidores de álcool(3, 20, 30). Embora haja evidências na literatura de
que o aumento progressivo de homocisteína no plasma ocorra com a idade,
principalmente em homens, essa alteração poderia ser devido ao declínio
fisiológico na função renal e à diminuição da disponibilidade de vitaminas
hidrossolúveis como folato, B6 e B12(32).
Os níveis de taurina no grupo G1 mostraram-se elevados em relação ao grupo G2
(P<0,05). Esse resultado poderia ser atribuído à mobilização desse aminoácido
dos tecidos de maior capacidade de síntese e estoque, como fígado e músculo,
para outros compartimentos como sistema nervoso central(8). A elevação de
taurina no plasma também pode ser decorrente da insuficiência renal, visto que
os rins são os órgãos responsáveis pelo equilíbrio sulfurado no homem(26);
todavia, na presente casuística, a avaliação da função renal foi considerada
satisfatória em todos os pacientes.
Outra possibilidade para o acúmulo plasmático de taurina seria sua menor
excreção como taurocolato, que não foi avaliado neste estudo. Esse mecanismo
justificaria o aumento plasmático desse aminoácido pela sua menor conjugação
com ácidos biliares(12).
Nesta série houve elevação dos níveis plasmáticos de taurina e correlação
positiva da taurina com a sobrevida dos pacientes. Conforme o mencionado, a
taurina participa efetivamente na preservação do fagócito e, portanto, na
defesa do hospedeiro. Adicionalmente, correlacionou-se positivamente com
linfócitos, também associados à defesa celular do hospedeiro. É sabida a
importância da imunocompetência no prognóstico pós-operatório desses pacientes.
Assim, de alguma forma ainda não esclarecida, a taurina elevada estaria
associada a mecanismos de preservação e ao fortalecimento da imunocompetência
de pacientes com esse tipo de câncer.
CONCLUSÕES
Assim, pacientes com CE em estágio avançado, mostraram elevações dos níveis
plasmáticos de taurina e homocisteína e redução nos de cisteína e albumina. Os
dois últimos são dependentes da ingestão protéica (total e de metionina) e
estado pró-inflamatório e pró-oxidante.
Mesmo com a redução do precursor (cisteína) a taurinemia esteve elevada e
associou-se positivamente com a contagem total de linfócitos e a sobrevida pós-
operatória dos pacientes.
Desdobramentos futuros
Especula-se a importância do papel imunoprotetor da taurina na preservação da
integridade dos fagócitos e na imunocompetência do hospedeiro contra o tumor.
Acredita-se que as alterações observadas no padrão de aminoácidos sulfurados
desses pacientes possam ser sanadas com adequação protéico-sulfurado de
metionina ou suplementos dietéticos de N-acetilcisteína e, principalmente, com
vitaminas hidrossolúveis do complexo B (B2, B6, B12e ácido fólico).