Discordância de apresentação da doença celíaca em gêmeos monozigóticos
GASTROENTEROLOGIA PEDIÁTRICA PEDIATRIC GASTROENTEROLOGY
Discordância de apresentação da doença celíaca em gêmeos monozigóticos
Magda BahiaI; Francisco José PennaI; Dora Mendez Del CASTILLOII; Marina
Guimarães Corrê HassegawaIII; Aline Cristina VieiraIII; Vanessa Ribeiro
OrlandoIII
IServiço de Gastroenterologia Pediátrica, Faculdade de Medicina, Universidade
Federal de Minas Gerais (FM-UFMG)
IINúcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico, (FM-UFMG)
IIIFaculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte,
MG, Brasil
Correspondence
INTRODUÇÃO
A predisposição genética para a doença celíaca (DC) é conhecida desde 1970,
quando Gardiner et al.(5) e Stokes et al.(24) demonstraram aumento da sua
incidência em familiares dos doentes. Em 2002, Karell et al.(9) descreveram
concordância superior a 70% em gêmeos monozigóticos e incidência de 10% a 15%
entre parentes de primeiro grau. Book et al.(1) relataram prevalência de DC de
21,3% em parentes de gêmeos com a doença.
Atualmente, sabe-se que a patogênese da DC está relacionada a fatores
genéticos. Todos os pacientes com DC confirmados por biopsia possuem os alelos
HLA DQ, que codificam os heterodímeros HLA DQ2 e HLA DQ8. O HLA DQ2 é formado
pelos alelos HLA DQB1*02 e HLA DQA1*05 e está presente em 90%-95% dos pacientes
com DC, embora pequeno número desses pacientes apresente apenas um dos alelos.
O heterodímero HLA DQ8 é encontrado nos 5%-10% dos pacientes restantes e é
formado pelos alelos DQB1*0302 e DQA1*03(8). Os HLA DQ2 e DQ8 são expressos
pelas células apresentadoras de antígenos, responsáveis pela interação entre a
gliadina, presente no glúten, com receptores das células T(12,13, 20, 21),
desencadeando o processo inflamatório na lâmina própria e formação dos
anticorpos antigliadina, antiendomísio e antitransglutaminase tecidual.
Estudos estimam que cerca de 10% dos parentes de primeiro grau de pacientes com
DC também apresentam a doença. Quando atinge pacientes gêmeos idênticos, a DC
afeta apenas um dos irmãos em 25% das vezes, acometendo ambos em 75% das
ocasiões(1). A susceptibilidade à DC envolve a combinação de fatores genéticos
e ambientais, e mecanismos imunológicos(8).
Este trabalho reporta casos de dois pares de gêmeos monozigóticos confirmados
por estudo genético(21), discordantes para DC, em acompanhamento no Hospital
das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte,
MG, no setor de Gastroenterologia Pediátrica.
Pacientes
Primeiro par de gêmeos:
Os gêmeos A1 e A2, 2 anos e 4 meses, apresentavam à primeira consulta, queixa
de diarreia crônica e ganho de peso inadequado. A1 com 9,170 kg e A2 com 10,090
kg.
Segundo par de gêmeos:
Os gêmeos B1 e B2 apresentavam à primeira consulta 1 ano e 7 meses. B1 com
9,700 kg e 82 cm, apresentava quadro de diarreia crônica, distensão abdominal e
baixo peso. O gêmeo B2, com 14,800 kg e 98 cm, não apresentava queixas
gastrointestinais.
MÉTODOS
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de
Minas Gerais e desenvolvido no Laboratório de Pesquisa da Pós-Graduação em
Ciência da Saúde da Criança e do Adolescente da Faculdade de Medicina da UFMG,
com prévio esclarecimento e consentimento dos envolvidos e de seus pais no
estudo (ETIC 036/01).
As biopsias jejunais foram realizadas por via oral, utilizando-se cápsula de
Carey. O material obtido era aberto em papel de filtro e fixado em formol a
10%. As lâminas foram coradas por H-E e PAS, e posteriormente, analisadas em
sessões anatomoclínicas.
A determinação dos anticorpos IgG e IgA antigliadina foi realizada pela técnica
de ELISA e a determinação dos anticorpos IgA antiendomísio pela técnica de
imunofluorescência indireta, tendo como substrato, o cordão umbilical. Não
foram utilizados kits comerciais para realização dos exames.
Para confirmar a monozigose do par de gêmeos A e B foi realizado estudo
genético através de amplificação por PCR e posterior tipagem de 15 e 14 loci de
microssatélites do tipo STR (short tandem repeats), respectivamente, comumente
utilizados em identificação humana, conforme Mayr et al.(15).
RESULTADOS
Gêmeo A1:
1ª biopsia jejunal (19/4/90) - 2 anos e 4 meses:mucosa da transição duodeno-
jejunal com vilosidades hipotróficas, criptas alongadas, havendo em certos
locais apenas esboço de vilosidades. Enterócitos cilíndricos, com certo grau de
hipotrofia, moderado aumento da celularidade na lâmina própria, por
mononucleares e presença de 57 linfócitos intraepiteliais por 100 enterócitos.
Conclusão: hipotrofia vilositária acentuada e difusa.
2ª biopsia jejunal (29/5/91) - 3 anos e 5 meses:em dieta isenta de glúten há 1
ano: mucosa jejunal com vilosidades ora afiladas ora alargadas e discretamente
hipotróficas; relação vilosidade-cripta é 3:1, discreto aumento da celularidade
na lâmina própria, enterócitos cilíndricos e borda em escova evidente na
maioria das regiões. Presença de 28 linfócitos intraepiteliais por 100
enterócitos. Melhora do quadro morfológico quando comparado à biopsia 1.
Conclusão: biopsia jejunal com hipotrofia vilositária discreta.
3ª biopsia jejunal (6/11/91) - 3 anos e 11 meses:desencadeamento após 6 meses
em dieta com glúten: mucosa jejunal com vilosidades hipotróficas e alargadas,
relação vilosidade-cripta é 1:1, enterócitos cilíndricos, lâmina própria com
moderado aumento da celularidade, principalmente por mononucleares, além de
edema e congestão. Presença de 59 linfócitos intraepiteliais por 100
enterócitos. Piora do quadro morfológico quando comparado à 2ª biopsia.
Conclusão: hipotrofia vilositária moderada a grave.
Não foi realizada determinação dos marcadores sorológicos no momento do
diagnóstico nem durante o desencadeamento. Durante o acompanhamento do paciente
A1 em dieta isenta de glúten, foram feitos oito exames para determinação de
anticorpos IgG e IgA antigliadina e IgA antiendomísio e todos os resultados
foram negativos.
Gêmeo A2:
1ª biopsia jejunal (19/5/92) - 4 anos e 5 meses: mucosa jejunal com vilosidades
alargadas, borda em escova evidente. Aumento discreto de celularidade da lâmina
própria. Relação vilosidade cripta de 1:1. Conclusão: hipotrofia vilositária
moderada.
Devido à ausência de celularidade aumentada de lâmina própria e ausência de
linfócitos intraepiteliais, o paciente não foi considerado como tendo DC, sendo
submetido posteriormente a novas biopsias jejunais.
2ª biopsia jejunal (4/7/96) - 8 anos e 7 meses:em dieta com glúten: mucosa
apresentando áreas com vilosidades altas, relação vilosidade-cripta de 3 a 4:1,
enterócitos cilíndricos e orla em escova evidente na maior parte do fragmento.
Aumento focal de linfócitos intra-epiteliais e edema discreto da lâmina
própria. Em uma parte do fragmento, a mucosa é delgada, tem artefatos de
inclusão e mostra algumas vilosidades em ponte. Conclusão: mucosa jejunal com
alterações inespecíficas.
3ª biopsia jejunal (15/7/97) - 9 anos e 7 meses: em dieta com glúten: mucosa
jejunal com vilosidades alongadas, relação vilosidade-cripta de 3 a 2:1,
enterócitos cilíndricos, alguns tendendo a cubóides com orla em escova evidente
e irregular. Presença de 38 linfócitos intra-epiteliais por 100 enterócitos.
Infiltrado intraepitelial focal e edema e discreto aumento da celularidade da
lâmina própria às custas de mononucleares. Em relação à biopsia 2, nota-se
discreta piora do padrão morfológico. Conclusão: biopsia jejunal com alterações
discretas e inespecíficas.
4ª biopsia jejunal (22/8/07) - 19 anos e 8 meses: em dieta com glúten: mucosa
duodenal com arquitetura, relevo vilositário e revestimento epitelial
preservados. A celularidade da lâmina própria é a habitual. Conclusão: mucosa
duodenal sem alterações histopatológicas relevantes.
A sorologia para antigliadina IgA e IgG, em A2, foi negativa em nove exames,
realizados durante o acompanhamento. Foram feitos sete exames para determinação
de anticorpos IgA antiendomísio, que também foram negativos.
Os genótipos obtidos foram idênticos, conforme Tabela_1.
Gêmeo B1
1ª biopsia jejunal (31/3/92) - 1 ano e 7 meses: mucosa jejunal com acentuada
hipotrofia das vilosidades, por vezes com seu completo desaparecimento e
inversão da relação vilosidade cripta, notam-se alongamento das criptas e
esboço de vilosidades em algumas áreas. Enterócitos cúbicos, sem borda em
escova evidente na maior parte do material. Lâmina própria com moderado aumento
de celularidade às custas de mononucleares. Conclusão: hipotrofia vilositária
acentuada e difusa.
2ª biopsia jejunal (22/9/94) - 4 anos e 1 mês: em dieta isenta de glúten há 2
anos: mucosa jejunal com vilosidades alongadas, relação vilosidade cripta de 3
a 2:1. Enterócitos colunares, orla em escova contínua. Lâmina própria com
discreto edema e aumento da celularidade às custas de mononucleares. Nítida
melhora do quadro morfológico em comparação com a biopsia 1. Conclusão: biopsia
jejunal com alterações discretas e inespecíficas.
3ª biopsia jejunal (4/4/95) - 4 anos e 7 meses: desencadeamento após 7 meses em
dieta com glúten: mucosa jejunal com vilosidades achatadas; inversão da relação
vilosidade cripta, enterócitos colunares ou cúbicos e borda em escova
descontínua, discreto aumento da celularidade com infiltrado inflamatório
mononuclear, moderado aumento de linfócitos intraepiteliais. Nítida piora
morfológica em comparação à biopsia anterior. Conclusão: hipotrofia vilositária
acentuada e difusa.
Foram realizadas as determinações de anticorpos IgG e IgA antigliadina que
apresentaram resultados positivos no momento da primeira biopsia.
Posteriormente, foram realizadas as determinações de IgA antiendomísio e de IgA
antitransglutaminase tecidual, ambas com resultados positivos. Foi confirmada
DC em B1.
Gêmeo B2
1ª biopsia jejunal (4/10/94) - 4 anos e 1 mês:mucosa jejunal apresentando
vilosidades altas, digitiformes, com relação vilosidade cripta de 3 a 4:1.
Enterócitos cilíndricos, orla em escova evidente. Aumento discreto da
celularidade por mononucleares, um folículo linfóide. Conclusão: biopsia
jejunal com alterações discretas e inespecíficas.
2ª biopsia jejunal (15/5/95)- 4 anos e 9 meses: em dieta com glúten: mucosa
jejunal com vilosidades alongadas, às vezes fundidas, com relação vilosidade
cripta de 4 a 3:1. Enterócitos colunares, orla em escova contínua. Linfócitos
intraepiteliais dentro dos limites de normalidade. Lâmina própria com discreto
edema e folículo linfóide. Conclusão: biopsia jejunal dentro do limite da
normalidade.
4ª biopsia jejunal (9/1/97) - 6 anos e 4 meses:em dieta com glúten: mucosa
jejunal apresentando vilosidades altas, digitiformes, com relação vilosidade
cripta de 3 a 4:1. Enterócitos cilíndricos, orla em escova evidente. Presença
de 20 linfócitos intraepiteliais por 100 enterócitos. Conclusão: biopsia
jejunal dentro dos limites da normalidade.
A determinação de anticorpos classe IgG e IgA antigliadina foram realizadas 3
vezes com todos os resultados negativos e a dos anticorpos classe IgA
antiendomísio foram realizadas em duas ocasiões, com resultados negativos.
Os genótipos obtidos foram idênticos, conforme Tabela_2.
DISCUSSÃO
Poucos estudos foram realizados em nosso país para avaliação de incidência de
DC em familiares dos pacientes com a enteropatia. Utyama et al.(26,
27)relataram presença de anticorpos antiendomísio em 18 de 115 familiares de
primeiro grau dos pacientes. Dos 18, apenas 7 foram submetidos a biopsia
jejunal, tendo um deles apresentado alterações histológicas compatíveis com a
doença. No serviço onde foi realizado o presente estudo, Penna et al.(17)em
1979, relataram caso de um par de gêmeos, monozigóticos, concordantes para a
DC. Estes pacientes são acompanhados até o momento, sendo que um deles segue
dieta isenta de glúten e o outro fez dieta até a idade de 10 anos. O que seguia
a dieta apresentou 5 cm a mais na estatura final em relação ao irmão que não
segue a dieta. No Rio Grande do Norte, Galvão et al.(4), diagnosticaram 20
casos de DC onde, até 1978, esta causa de má absorção não havia sido relatada.
Nesse trabalho, observaram que o aspecto étnico teve influência na existência
da doença, uma vez que houve maior miscigenação do europeu que do africano com
os indígenas locais.
A importância da investigação em familiares se deve ao fato de que os
indivíduos com a doença, sintomática ou assintomática(7, 10, 14), se não
tratados de forma adequada, com dieta isenta de glúten, podem apresentar
incidência aumentada de doenças malignas e outras complicações como
osteoporose, infertilidade, linfoma intestinal(6), baixa estatura(16, 18, 23),
anemia ferropriva(19), dentre outras. Os marcadores sorológicos têm tido
importante papel no reconhecimento desses casos.
Pela análise e acompanhamento dos dois pares de gêmeos monozigóticos,
discordantes quanto à apresentação clínica da DC, observa-se que, apesar da
concordância superior a 70% para a DC(9), a sensibilidade ao glúten apresentada
por cada indivíduo é diferente, mesmo sendo geneticamente idênticos.
Assim, nos pares de gêmeos deste estudo, um dos indivíduos manifestou sintomas
e o outro, durante todo o período de acompanhamento, não apresentou sintomas
nem marcadores sorológicos positivos. As alterações nas biopsias jejunais de A2
e B2 eram inespecíficas, sem infiltrado linfoplasmocitário importante ou
presença de linfócitos intraepiteliais aumentados. A2 apresentou em uma biopsia
linfócitos intraepiteliais aumentados, mas de forma focal.
Deste modo, tanto fatores genéticos quanto ambientais, ainda não elucidados,
parecem contribuir para a determinação de fenótipos distintos nestes
indivíduos, sugerindo assim, que a DC seja um distúrbio poligênico, no qual a
presença de outros loci, que não o HLA, tenham parcela importante na
penetrância e desencadeamento do quadro(11).
Assim, todas as pessoas consideradas de risco como os familiares dos pacientes
com DC, pacientes com diabetesmellitus insulino-dependente(22, 25), trissomia
do cromossoma 21(2), baixa estatura monossintomática(16, 18, 23), deficiência
de IgA(3), devem ser investigadas através de sorologia específica para DC e, se
positiva, submetidas a biopsia de intestino delgado.