As atuais políticas de saúde: os riscos do desmonte neoliberal
TRABALHOS ENCOMENDADOS
As atuais políticas de saúde: os riscos do desmonte neoliberal
Laura Tavares Soares
Enfermeira, Sanitarista, Doutora em Economia do Setor Público na área de
Política Social pela UNICAMP Professora da UFRJ; Assessora do Laboratório de
Políticas Públicas da UERJ;. Autora dos livros "Ajuste Neoliberal e Desajuste
Social na América Latina" e "Os Custos Sociais do Ajuste Neoliberal na América
Latina"
INTRODUÇÃO
A chamada área social - com destaque para a área da saúde - constitui-se hoje
no terreno mais conflitivo e exposto da nossa sociedade, na medida em que é
particularmente sensível às condições econômicas de restrição financeira
impostas pelas políticas de ajuste neoliberal.
Estamos diante de uma situação social e de saúde onde a superposição de antigos
e novos problemas configura um quadro de uma enorme perversidade e
complexidade. A este quadro se agrega, ainda, uma situação de desmonte do
Estado brasileiro, o que tem levado a uma crescente desresponsabilização do
governo federal das suas atribuições no terreno social.
As políticas de ajuste, determinadas em âmbito federal, têm trazido enormes
limitações para as unidades da federação - em particular os municípios - no que
diz respeito às respectivas capacidades de intervenção e de resposta frente às
crescentes demandas sociais e de saúde. Isto tem gerado grandes iniqüidades,
aprofundando ainda mais o quadro de desigualdade social.
As políticas sociais e de saúde perderam sua dimensão integradora, tanto no
âmbito nacional como no âmbito regional/estadual, caindo numa visão focalista
onde olocal é privilegiado como o único espaço capaz de dar respostas
supostamente mais "eficientes" e acordes às necessidades da população (não por
acaso reduzida hoje a "comunidade"). Retrocedemos a uma visão "comunitária"
onde aspessoas e as famílias passam a ser as responsáveis últimas por sua saúde
e bem estar. Por trás de um falso e importado conceito de"empowerment" está o
abandono por parte do Estado de seu papel ativo e determinante nas condições de
vida da população, particularmente quando parcelas majoritárias e crescentes da
mesma estão na mais absoluta pobreza.
Este é o contexto onde se desenrola a atual Política de Saúde hoje no Brasil, o
qual não pode ser ignorado sob pena de cairmos no reducionismo de soluções
tecnocráticas para o setor saúde e na aceitação acrítica de programas federais
verticais e autoritários travestidos de "inovadores" e "modernos".
A PROPOSTA DE REFORMA DO ESTADO NO CONTEXTO NEOLIBERAL
As chamadas "reformas constitucionais" vêm sendo perpetradas no Brasil desde o
início da década de 90, sob o argumento de que a Constituição Cidadã de 1988
seria o principal empecilho ao processo de "modernização" e "abertura" do país.
No entanto, é no governo FHC que se completa o projeto mais acabado (e
neoliberal) de "Reforma do Estado".
Em primeiro lugar gostaríamos de chamar a atenção para alguns aspectos
preliminares ao debate em torno da atual reforma administrativa proposta pelo
Executivo, tais como:
- As utilizações que têm sido feitas pelo governo federal, devidamente
sustentadas pela mídia, do termo REFORMA, emprestando-lhe um caráter "mágico e
infalível" na solução de todos os problemas nacionais.
- A necessidade de definir melhor, com mais clareza, qual é o ESTADO objeto da
Reforma e que aspectos precisam ser reformados; não sendo possível, dessa
forma, impor uma receita padrão de reforma, assumindo, portanto, que existem
diferentes possibilidades e propostas de REFORMA (em contraposição à "via
única");
- Qual é o DIAGNÓSTICO no qual se baseia a reforma e quais as suas propostas de
resolução dos problemas - falsas premissas levando a falsas soluções (o exo.
claro disto é a culpabilização dos funcionários públicos por uma série de
problemas no aparelho de Estado, o que tem focalizado as propostas da reforma
exclusivamente em cima do funcionalismo).
- A não existência de uma REFORMA "NEUTRA", que seja adequada e boa para todo o
país - ou seja, toda reforma atende a determinados interesses - este é sem
dúvida um aspecto central na discussão e trata da questão política da Reforma:
qual é o projeto político que está por trás da Reforma do Estado, amparado por
quem.
- Quais as perspectivas e os possíveis resultados da Reforma ? Esta é uma
grande interrogação, com algumas possibilidades de previsão.
A primeira observação a ser ressaltada da análise dos documentos da reforma é a
sua conotação meramente "administrativa", não se constituindo em uma verdadeira
Reforma do Estado, não tocando sequer em problemas de fundo como o padrão de
financiamento do Estado, a sua capacidade em minimizar as profundas
desigualdades sociais e econômicas do país através de políticas de distribuição
de renda e equalização do acesso a serviços públicos essenciais, etc, etc. A
estratégia central da reforma em questão resume-se à substituição da
"administração burocrática" pela "administração gerencial".
Por outro lado, a criação de um Ministério MARE - Ministério de Administração e
Reforma do Estado - para reformar o próprio Estado lembra o Ministério da
Desburocratização, gerando uma nova burocracia para reformar-se a si própria ou
para desburocratizar-se a si própria.
O primeiro documento do MARE foi o Plano Diretor de 1995, documento "mãe" a
partir do qual são gerados todos os demais. As premissas aí apontadas
demonstram de forma clara o diagnóstico no qual se baseiam as propostas. A
causalidade do agravamento da crise fiscal e da inflação é totalmente atribuída
à presença do Estado no setor produtivo. Dessa forma, a Reforma do Estado passa
a ser apenas um instrumento para "consolidar a estabilização e assegurar o
crescimento sustentado da economia".
Para implementar-se uma administração "de caráter gerencial" que permita
"formas modernas" de gestão, basta apenas, segundo o documento supracitado,
"flexibilizar" a estabilidade e os regimes jurídicos dos servidores,
acrescentando, em seguida, também como "essencial" que as aposentadorias dos
servidores ocorram em "idade razoável" e proporcionais ao tempo de
contribuição.
A teoria do "desvio" do Estado de suas funções perpassa todo o documento. Dessa
forma, o Estado ao "desviar-se" passa a não dar conta da "sobrecarga de
demandas", particularmente as sociais, gerando uma "ingovernabilidade"1 e
configurando uma "crise do Estado". O eixo de determinação aqui se inverte: é
essa incapacidade do Estado em processar a sobrecarga de demandas que gera a
desordem e a desaceleração econômica. Esta tese é muito semelhante àquela
difundida nos anos 70 nos países desenvolvidos pelos conservadores de que era a
crise do"Welfare State" que levava à crise econômica.
A definição do que seja aCrise do Estado daí derivada é completamente diferente
da que apresentamos anteriormente2. Os aspectos constituintes dessa crise
definidos pelo MARE são: 1 - o aspecto fiscal, entendido como perda de
"poupança" pública (financiamento e endividamento são termos que sequer são
mencionados); 2 - o esgotamento da "estratégia estatizante" (?) de intervenção
do Estado, centrando fogo, mais uma vez, na crise do "Estado de Bem Estar
Social"; e 3 - a forma "burocrática" de administrar o Estado.
Em decorrência desse diagnóstico da Crise, o MARE coloca como "inadiáveis" os
seguintes pontos: ajustamento fiscal (note-se que não se trata de umareforma
fiscal no sentido mais amplo, a qual, por sinal, está "adiada"sine die);
reformas econômicas "orientadas para o mercado" que, supostamente, garantiriam
a "concorrência interna" e condições para o "enfrentamento da competição
internacional" (!); reforma da previdência social, a qual tem como propósito
fundamental "retirar privilégios" cortando, na prática, benefícios e gastos;
reforma do aparelho de Estado com vistas a aumentar a "governança".
O movimento básico para corrigir as "distorções" ou os "desvios" do Estado é a
transferência para o setor privado daquelas atividades que podem ser
"controladas pelo mercado". Isto é feito através daprivatização de todas as
estatais (sem nenhum tipo de distinção entre elas nem uma caracterização das
mesmas enquanto papel estratégico do Estado no desenvolvimento nacional) e
dadescentralizaçãoda execução de serviços (sociais) de educação, saúde, cultura
e pesquisa científica a um setor "público não-estatal". Este setor emerge do
documento do MARE sem que se defina claramente como ele é constituído e quais
serão as regras (se é que elas existirão) para o seu funcionamento e,
principalmente, para o seu financiamento. O único critério mencionado é o fato
da Instituição ser considerada como de "utilidade pública", critério este que,
como sabemos, tem sido alvo de todo tipo de corrupção e clientelismo, incluindo
aí entidades como a "Golden Cross" e clubes de futebol, entre outras pérolas.
Esse movimento mais geral se traduz em três dimensões de intervenção: a
INSTITUCIONAL - LEGAL, onde se trata de remover os obstáculos legais/
constitucionais, superando a "rigidez" (aqui a palavra chave é FLEXIBILIZAR); a
dimensão CULTURAL (trata-se de superar a "cultura burocrática"), e a GERENCIAL,
considerada a "dimensão-chave" da reforma administrativa.
Na dimensãoInstitucional -Legal estão previstas as Emendas Constitucionais. A
primeira é sobre o Capítulo da Administração Pública, ondetodas as mudanças são
dirigidas aosservidores públicos - "flexibilizando" as relações de trabalho e
as regras de aposentadoria por um lado, e tornando mais "rígidas" as limitações
salariais e proventos das aposentadorias (aqui, ao contrário dos direitos, não
há problema em tornar as regras mais "rígidas"). Uma segunda estabelece a
"autonomia" entre os três Poderes no que diz respeito à organização
administrativa e fixação dos vencimentos de seus servidores, ou seja, o fim da
isonomia. AEmenda da Previdência é considerada como estratégica nessa dimensão.
Quanto à Legislação Infra-Constitucional, esta também se encontra, na quase
totalidade, dirigida aos servidores.
A segunda dimensão é a chamadadimensão cultural, que inclui a transição para
uma administração pública gerencial sem nenhuma outra definição mais precisa.
Na terceira e última dimensão, referente àgestão é onde se encontram as
propostas mais concretas e desenvolvidas. São três projetos em curso:Avaliação
Estrutural, Agências Autônomas e Organizações Sociais
AAvaliação Estrutural operaria horizontalmente, extinguindo, privatizando e
descentralizando (transferindo para o tal setor "publico não estatal") órgãos
públicos.
As chamadasAgências Autônomas operariam de forma vertical, transformando
Autarquias e Fundações em Agências Autônomas, com o propósito de "modernizar a
gestão", estabelecendo uma "seleção prévia" e a criação de "laboratórios de
experimentação".
A estratégia mais adiantada é a dasOrganizações Sociais, que também operariam
verticalmente, descentralizando serviços considerados comonão-exclusivos do
Estado partindo do pressuposto que esses serviços serão mais "eficientemente"
realizados se,mantendo o financiamento do Estado, forem executados pelo
talsetor público não-estatal.
AsOrganizações Sociais (O. S.) definidas como "entidades de direito privado
que, por iniciativa do Poder Executivo, obtém autorização legislativa para
celebrarcontrato de gestão com esse poder, e assim ter direito àdotação
orçamentária". Elas terão autonomia financeira e administrativa, respeitadas as
condições descritas em lei como, por exemplo, a composição de seus conselhos de
administração. Além dos recursos orçamentários, podem obter outros ingressos
através de prestação de serviços, doações, legados, financiamentos, etc.
Essa suposta "autonomia" financeira e administrativa, pode implicar em sua
total subordinação a interesses privados locais, comprometidos ou não com a
entidade que passa a denominar-se O.S. O supostocontrole social sobre a mesma
dar-se-ia através do chamadoConselho de Administração o qual, muito
provavelmente, ficará comprometido com os interesses acima mencionados.
Na realidade, a definição de uma maior "parceria" com a sociedade enfatiza que
esta última deverá financiar uma parte menor,mas significativa, dos custos dos
serviços prestados. No caso de serviços sociais essenciais, como o são os
hospitais (ver "prioridades" abaixo), isto provocará, de saída, uma dualização
da clientela - discriminando entre aqueles que podem e os que não podem pagar -
e dos serviços prestados - de maior ou menor qualidade dependendo do poder de
compra do usuário. Elimina-se, com essa proposta, o princípio da
UNIVERSALIDADE, previsto (ainda) na Constituição, onde todo e qualquer cidadão
tem o DIREITO de ter acesso a serviços sociais básicos, no caso de saúde, de
boa qualidade e em todos os níveis de complexidade.
A transformação dos serviços não-exclusivos estatais em O.S. se dará de forma
"voluntária" a partir "da iniciativa dos respectivos ministros, através de
umPrograma Nacional de Publicização.Terão "prioridade" oshospitais, as
universidades e escolas técnicas, os centros de pesquisa, as bibliotecas e os
museus. Esse caminho "voluntário" de criação de Organizações Sociais, a
critério dos ministros, aumenta ainda mais o extenso rol de dúvidas e
incertezas acerca desse processo de "Reforma do Estado". Por esse caminho ficam
abolidos os critérios de planejamento e equalização de serviços sociais
essenciais cujo acesso se tornará ainda mais desigual. Também a transparência
desse processo fica prejudicada e a "iniciativa dos ministros" muito
provavelmente será a de proteger seus apadrinhados em seus respectivos estados
e municípios.
Essas estratégias de "Reforma do Estado" estão inseridas em um movimento mais
geral em direção a um suposto setor público não-estatal (também chamado de
"Terceiro Setor") que se responsabilizaria pela execução dos serviços que não
envolvessem o exercício do "poder de Estado", mas que deveriam ser subsidiados
pelo Estado, como é o caso dos serviços de educação, saúde, cultura e pesquisa
científica. Esse processo, chamado de"publicização", na realidade não é uma
"criação" do MARE. Ele se inclui em todas as propostas de reforma decorrentes
da implementação dos chamados Ajustes Estruturais. No entanto, mesmos naqueles
países onde já existia uma certa tradição na participação de entidades não-
estatais na prestação de serviços sociais, esse modelo vem sendo criticado na
medida em que não está dando conta de compensar a forte retração dos
respectivos Estados tanto no financiamento como na gestão dos serviços
públicos. O maior exemplo disso é os Estados Unidos onde amplos setores da
população encontram-se marginalizados do acesso a serviços sociais básicos,
sejam eles estatais ou não.
POLÍTICA DE SAÚDE NO CONTEXTO NEOLIBERAL: IMPLICAÇÕES E PROBLEMAS
O FINANCIAMENTO DO SETOR SAÚDE
Ao contrário do que muitos afirmam, a política de saúde não está imune ao
contexto neoliberal que vem sendo imposto em nosso país na última década. A
mais evidente das restrições tem sido a financeira, que vem reduzindo de forma
sistemática o gastoper capita em saúde no Brasil, cujo patamar encontra-se
abaixo de países latino americanos mais pobres que o nosso.
Os escassos recursos têm sido mal distribuidos, sem respeitar a heterogeneidade
regional e as reais necessidades da população. Acreditar que dez reaisper
capita ano (correspondentes ao mal chamado PAB) são suficientes para dar uma
atenção básica integral e de qualidade à população é uma afronta! O alto custo
e a assistência hospitalar de má qualidade e de baixa resolutividade continuam
consumindo a maior parte dos recursos. O financiamento calcado na mera produção
de serviços impede, de forma definitiva, a solução das chamadas "distorções" do
sistema. O repasse de recursos tem imposto aos estados e, sobretudo, aos
municípios, uma "camisa de força" que os obriga a cumprir com uma infinidade de
portarias ministeriais, cujas fórmulas tecnocráticas impõem um padrão
uniformepara realidades políticas, administrativas, financeiras e sociais
totalmente diversas.
Na realidade, houve uma brutal reconcentração de recursos e de poder nas mãos
do governo federal, totalmente contrária ao ideário do SUS na sua matriz
originária. Abandonou-se por completo a concepção - prevista na Constituição de
1988 - de Seguridade Social, que preconizava um orçamento único e com
diversidade de fontes de financiamento para os seus componentes de Saúde,
Assistência e Previdência Social. Ao restringir o fiananciamento do Setor Saúde
apenas aos recursos fiscais, ele ficou à mercê da política de ajuste fiscal
cada dia mais restritiva, lançando mão de recursos aleatórios, como a CPMF, de
caráter contingencial e que sequer vem sendo integralmente destinada ao setor.
Os parcos investimentos feitos pelo governo federal (diga-se de passagem,
exclusivamente destinados a reequipar, parcialmente, a rede hospitalar já
existente) dependem de empréstimos externos (principalmente do Banco Mundial),
os quais, além de eventuais, aumentam ainda mais a dívida do nosso país, que já
não é pequena, como todos sabem.
FINANCIAMENTO DO SETOR SAÚDE - A PEC DE SET. DE 2000
A recém promulgada PEC da Saúde é mais um exemplo da capacidade de distorcer
propostas antes defendidas pela esquerda e setores progressistas e transformá-
las em estratégias convenientes para o projeto neoliberal. Mais uma vez, sob a
aparência de que os recursos para a saúde aumentarão, e concedendo de forma
distorcida uma aspiração de vinculação de recursos, o governo federal perpetra
mais uma "reengenharia", reduzindo sua obrigação e repassando para os estados e
municípios a responsabilidade maior no financiamento do setor saúde.
Do ponto de vista da União, aumentar em 5% o montante investido no setor em
relação ao ano passado (1999), corrigindo para os anos seguintes pela variação
do PIB nominal, não só não significa nenhum avanço no sentido de resolver a
insuficiência de recursos para a saúde, como se trata de um enorme retrocesso
com relação à Constituição de 1988 e à PEC original dos deputados Eduardo Jorge
e Waldir Pires, pelas seguintes razões:
- A PEC atual não define a origem dos recursos no âmbito federal, eliminando de
vez a vinculação de recursos da Seguridade Social para a Saúde, na medida em
que os recursos investidos no setor desde 1993 são apenas de origem fiscal.
- A ameaça de extinção total das Contribuições pelas propostas em pauta para a
Reforma Tributária confirma a destruição da concepção original de Seguridade
Social no financiamento eqüitativo da Saúde, Previdência e Assistência Social.
- O patamar de recursos sobre o qual será corrigido em 5% é sabidamente
insuficiente para a saúde. Além de manter esse patamar baixo, o acréscimo de um
PIB nominal em franco descenso da recessão econômica tampouco representa nenhum
cenário animador.
- Os mecanismos de transferência e de aplicação dos recursos por parte do
governo federal mantêm as mesmas distorções já apontadas.
Do ponto de vista dos estados, a PEC implica em uma pequena elevação da sua
participação.
Este acréscimo, no entanto, provavelmente não compensará, de um lado, a
provável retração de alguns municípios que já destinam mais do que está
previsto na PEC; e, de outro, a diminuição dos recursos federais pela retirada
das contribuições. Além disso, mais uma vez impõe-se uma camisa de força
uniforme como se todos os estados tivessem iguais condições de aplicar pelo
menos 7% de suas receitas de impostos e transferências constitucionais,
ignorando a retração econômica que afeta a principal fonte de receita dos
estados - o ICMS - isso sem falar no crescente processo de endividamento dos
estados. Nesse sentido, não foi estabelecido nenhum tipo de compensação
Finalmente, do ponto de vista dos municípios, a vinculação de 7% até 15% não
provocará nenhum aumento de recursos para a saúde: boa parte dos municípios
brasileiros já contribui, em média, com 15% de suas receitas de impostos e
transferências3. Ou seja, provavelmente a Lei de Responsabilidade Fiscal
afetará o nível do gasto municipal já alcançado na área da saúde, na medida em
que o corte de despesas ocorrerá certamente junto às chamadas "despesas
comprimíveis".
Por outro lado, é totalmente desconsiderada a enorme heterogeneidade entre os
municípios brasileiros na sua capacidade de arrecadação, sobretudo no que diz
respeito à suposta "compensação" concedida aos municípios para criar o IPTU
"progressivo", fonte que para os municípios pobres não representa absolutamente
nada. Ou seja, confirma-se, de forma recorrente, a nossa tese de que a
desigualdade entre os municípios será mantida, possivelmente ampliando a
iniqüidade do ponto de vista da oferta de serviços de saúde em qualidade e
quantidade. Finalmente, a definição do gasto em saúde do ponto de vista da
atenção básica e os mecanismos de repasse permanecem inalterados com essa
"nova" PEC.
A DESCENTRALIZAÇÃO OU A MUNICIPALIZAÇÃO A QUALQUER CUSTO
A descentralização na década de 90 segue-se ao desmonte dos programas sociais
federais iniciado em 1989. No decorrer da década, ela assume uma face
neoliberal, condizente com a política e a ideologia dominantes, totalmente
contrária ao preconizado pela Constituição de 1988.
Tem sido um processo atabalhoado, marcado por um contexto de ajuste recessivo
das contas públicas, repassando de forma acelerada encargos e responsabilidades
diretamente para os municípios, muitos dos quais incompatíveis com as suas
distintas realidades e possibilidades.
Esse processo tem apresentado os seguintes problemas:
- A descentralização de encargos não é acompanhada de forma equivalente pela
descentralização de recursos em quantidade e qualidade, com fluxos irregulares,
e sem respeitar as reais necessidades de saúde bem como as heterogêneas
capacidades de intervenção das Prefeituras e órgãos municipais.
- Essa descentralização tem provocado o desmonte de estruturas/equipamentos
sociais federais e/ou estaduais pré-existentes, sem que as prefeituras sejam
capazes de mantê-los ou substituí-los por algo equivalente.
- O processo de descentralização não tem levado em conta a complexidade dos
problemas sociais em determinadas regiões (como por exemplo as metropolitanas)
cuja dimensão é supramunicipal e exige uma intervenção articulada e regional.
- As iniqüidades regionais têm aumentado com o processo de descentralização
entendido apenas como "municipalização", na medida em que tem provocado a
fragmentação das ações e a diminuição da sua efetividade.
Osestados têm sido práticamente ignorados nessa descentralização/
municipalização enquanto agentes responsáveis pelaimplementação de políticas
regionais, limitando-se a um papel meramente formal de repassadores de
recursos. É preciso resgatar a capacidade dos estados enquanto unidades da
federação que devem (re) assumir uma responsabilidade estratégica na condução
das políticas públicas de saúde no âmbito estadual/regional.
Trata-se de uma municipalização a qualquer preço, totalmente distinta daquela
proposta pelo SUDS nos anos 80 e consagrada na Constituição de 1988, que previa
uma autonomia real das unidades federada, baseada em um esquema de
financiamento e repasse de recursos compatível com o gradual repasse de
encargos, bem como na responsabilidade compartilhada entre os três níveis de
governo.
É preciso olhar para o processoreal de municipalização que hoje está se dando
no SUS, face ao contexto restritivo do ajuste e diante das propostas de reforma
do Estado dirigidas à privatização e à focalização dos serviços públicos para
os "pobres".
A atual política de saúde, não por acaso, centra seu foco de atenção no âmbito
municipal/local, impondo padrões de atuação não condizentes com a enorme
heterogeneidade deste país, e totalmente distantes das possibilidades reais dos
municípios de darem resposta aos crescentes problemas de saúde com os quais se
defrontam.
A PRIVATIZAÇÃO E AS "INOVAÇÕES GERENCIAIS"
A privatização da saúde no Brasil tem várias faces: algumas mais explícitas
outras, em sua maioria, ocultas ou travestidas de "modernização gerencial". Uma
de suas faces mais perversas é o próprio financiamento do setor, que privilegia
velhos e novos "atores" no cenário da prestação privada de serviços de saúde:
os hospitais e clínicas particulares conveniadas com o SUS e os seguros
privados de saúde.
O primeiro grupo, ainda que de forma declinante, dado o irrisório preço pago
pelas AIHS, ainda consome parte importante dos recursos destinados ao SUS, com
a agravante de ser o responsável pelas famosas "distorções" e "desvios" de
recursos, principalmente no âmbito local, já que são as Prefeituras as
responsáveis pelo pagamento das internações hospitalares no seu território. Ao
contrário do que reza a "cartilha", os governos locais têm se mostrado tão
corruptos quanto os demais níveis de governo e igualmente imunes ao controle
social supostamente exercido pelos Conselhos Municipais de Saúde, muitas vezes
manipulados pelos respectivos prefeitos e/ou secretários municipais de saúde.
O segundo grupo - os seguros privados de saúde - se constitui no "setor
emergente", expressão máxima da mercantilização da saúde. Trata-se de um setor
duplamente beneficiado. De um lado pela política de desmonte do SUS que
"expulsa" clientela potencial para esses seguros: ou seja, com a sua política,
o governo federal assegura um patamar de demanda para esses seguros. De outro,
ele é privilegiado por um financiamento direto e indireto através de subsídios
e isenções fiscais, o que tem representado um enorme desvio de recursos
públicos para esse setor, abertamente lucrativo, em detrimento do SUS.
Cabe apenas lembrar que esse privilegiamento tem limitações sérias, de natureza
estrutural e financeira, já demonstradas em países onde se privatizou por
completo o setor saúde (como é o caso do Chile). Nos países latinos americanos,
e o nosso não foge à regra, as possibilidades de expansão da demanda dos
seguros privados é limitada à própria renda, particularmente da classe média, a
qual, inclusive, vem empobrecendo a olhos vistos. Ou seja, esse setor tem um
potencial de cobertura máxima em torno de 30% da população. Isto significa que
os restantes 70% (os mais empobrecidos) continuarão dependendo do sistema
público, cada dia mais desmontado e desfinanciado. Por outro lado, a capacidade
de financiamento público desse setor também t:em um limite, já que representa
um custo muito elevado para os cofres públicos.
Finalmente, acrescente-se que o poder regulatório por parte do poder público
sobre os seguros privados tem se mostrado extremamente limitado: é do
conhecimento de todos as inúmeras restrições feitas por esse setor a
determinadas clientelas e patologias que não dão lucro, sem falar na baixa
qualidade da assistência prestada pelos serviços médicos contratados pelas
companhias seguradoras, os quais são péssimamente remunerados, mais uma vez, em
função dos lucros absurdos auferidos por essas empresas.
Outra face tão perversa quanto, mas talvez mais "camuflada", tem sido a
privatização "por dentro" do setor público. É a introdução da lógica mercantil
no interior dos serviços públicos, aonde se privilegia a "microeconomia" do
custo/benefício em detrimento da qualidade. São os "modismos" gerenciais, como
a "qualidade total" e outras bobagens, que, entre outras coisas, provocam a
eliminação do servidor público através da "flexibilização" e da
"desregulamentação", gerando um total descompromisso do serviço com a população
atendida. As formas assumidas por essa "modernidade gerencial" são variadas,
sendo as mais conhecidas as chamadas "cooperativas".
Esta é uma estratégia já explicitada na mal chamada "Reforma do Estado", que
transforma órgãos públicos estatais em agências privadas denominadas de
"Organizações Sociais", eufemismo que representa o descompromisso do Estado com
a saúde da população, entregando-a nas mãos de agentes privados os quais,
obviamente, são devidamente alavancados por recursos públicos. Em nome da
"liberdade de escolha", essas agências podem, se quiserem, cobrar do pobre
usuário que estará pagando duplamente: através dos impostos e do pagamento
direto pelos serviços.
Aqui cabe chamar a atenção para o fato de que, lamentavelmente, essa estratégia
da cobrança direta - preconizada em inúmeros documentos do Banco Mundial - já
está sendo amplamente utilizada na maioria dos países latino americanos. Isto
significa que ainda temos muito que defender em nosso país: o SUS ainda é o
único sistema público universal da América Latina, e, apesar das suas
restrições e problemas, continua sendo a única alternativa que resta à parcela
majoritária da nossa população.
OS ATUAIS "MODELOS ASSISTENCIAIS" EM SAÚDE: AVANÇO OU RETROCESSO?
Para finalizar, não se pode deixar de analisar e criticar os atuais Programas
Federais de Saúde, com o devido destaque para oPACS (Programa de Agentes
Comunitários de Saúde) o>PSF (Programa de Saúde da Família). Estes programas
têm sido o "carro-chefe" daquilo que vem sendo denominado de "reversão do
modelo assistencia".Do meu ponto de vista esta "reversão" tem sido para pior
pelas seguintes razões:
- Em primeiro lugar, são programas verticais, impostos de cima para baixo pelo
Ministério da Saúde, totalmente normatizados no nível central, e bancados por
"incentivos" financeiros no repasse de recursos, obrigando, na prática, a sua
adoção por parte dos Municípios.
São programas que desconsideram totalmente a enorme heterogeneidade entre os
municípios na oferta de serviços de saúde - a maioria dos quais sequer possui
uma rede regionalizada e hierarquizada que garanta o acesso universal a todos
os níveis de atenção - o que limita o atendimento dado por esses programas a
uma simples "porta de entrada", sem resolutividade e sem "porta de saída".
- Desconsideram, ainda, o também heterogêneo e complexo quadro epidemiológico
brasileiro que demanda serviços de saúde em todos os níveis de complexidade: os
"pobres" hoje estão morrendo de acidentes e violências, câncer, doenças
cardiovasculares, problemas cuja resolução vai muito além da capacidade de um
agente de saúde.
- Finalmente, e trazendo um problema que é muito caro à Enfermagem Brasileira,
esses programas, na prática, têm substituído profissionais qualificados por
pessoas sem qualificação, com uma remuneração praticamente simbólica, com
contratos de trabalho precários, sob o falso argumento de que esses agentes
estariam mais "próximos" da comunidade. Quem conhece a realidade e trabalha
nesses programas sabe das inúmeras distorções que essa falsa premissa tem
provocado, como os mecanismos de cooptação e o clientelismo nas contratações,
somando-se as já mencionadas limitações desses agentes na resolução dos
problemas de saúde da população.
Cabe, portanto, retomar a defesa do SUS, resgatando seus princípios
constitucionais de universalidade, integralidade e acesso igualitário a todos
os níveis de complexidade do sistema, garantindo a qualidade da atenção por
equipes profissionais qualificadas e com condições de trabalho. Isto não é
pouco, face ao explícito e implícito processo de desmonte que o nosso sistema
de saúde vem sofrendo.
1 Que o MARE chama de problema de "governança" na medida em que sua capacidade
de implementar as políticas públicas serial
2 Ver Crise do Estado Desenvolvimentista com base nas análises feitas por José
Luis Fiori
.
3 Ver levantamento do MS feito em 1998 junto a 1.500 municípios (SIOPS -
Sistema de Informações sobre o Orçamento Público em Saúde).