Formando o enfermeiro para o cuidado à saúde da família: um olhar sobre o
ensino de graduação
TRABALHOS ENCOMENDADOS
Formando o enfermeiro para o cuidado à saúde da família: um olhar sobre o
ensino de graduação1
Beatriz Regina Lara dos SantosI; Eliane Pinheiro de MoraesII; Gema Conte
PiccininII; Helena Victoria SagebinIII; Olga Rosária EidtIV; Regina Rigatto
WittV
IProfessora adjunta, doutora em Educação
IIProfessora assistente, mestre em Enfermagem
IIIProfessora adjunta, livre docente em Enfermagem em Saúde Comunitária
IVProfessora adjunta, doutora e livre docente em Enfermagem Pediátrica
VProfessora assistente, mestre em Saúde Pública
Universidade, enquanto fonte de produção de conhecimento e enquanto
responsável pela formação de profissionais de alto nível, pode
potencialmente afetar a qualidade e a direção do desenvolvimento em
que ela se insere. Buscar aperfeiçoar as atividades-fim parece-nos
compromisso inevitável daqueles que a constituem.
Marisa Japur
INTRODUÇÃO
Atualmente, no Brasil, considerar a família como foco do cuidado de Enfermagem
parece ser consenso, ao mesmo tempo que realizar tal cuidado tem constituído um
desafio para prática profissional. SegundoD'Espiney (1997), pelo caráter
prático da profissão, a formação profissional tem uma forte ligação com o
contexto de trabalho, assim, formar enfermeiros para o cuidado ao grupo
familiar, também, constitui outro desafio, que está relacionado a fatores
oriundos do contexto político e social brasileiro.
Entre tais fatores, destaca-se que a Educação de Enfermagem incorporou, por
muito tempo, a política vigente no país, enfatizando o ensino de especialidades
oriundas do modelo biomédico, priorizando, dessa forma, os aspectos práticos
centrados no hospital, na cura da doença do indivíduo, de maneira
descontextualizada. As ações de promoção à saúde e de prevenção de problemas
coletivos que afetam as famílias, por muitos anos, não foram valorizadas.
Apenas, na última década, a Educação em Enfermagem avançou, preconizando que
uma das finalidades do currículo é responder às necessidades de saúde da
população, através da atenção à clientela hospitalizada e a que vive
coletivamente. (Santos et al 1998).
No momento atual, os currículos dos cursos de graduação, conformeCanário(1997),
vivem mutações importantes. Tais modificações, originam-se de uma nova visão
paradigmática que enfatiza, na prestação de cuidados, a promoção da saúde
articulada com contextos sociais e ambientais.
Assim, no últimos anos, a literatura, os eventos e a produção científica,
oriunda dos programas de pós-graduação, mostram grupos organizados e
comprometidos com o desenvolvimento desta área, principalmente, após as VIII e
IX Conferências Nacionais de Saúde e a implantação em nível nacional do
Programa de Saúde da Família (PSF), como estratégia de implantação do Sistema
Único de Saúde (SUS).
Paralelamente, a Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), por meio do
Decreto que regulamenta a Lei do Exercício Profissional do Enfermeiro,
determina que o profissional enfermeiro, como integrante da equipe de saúde"
(...) participe em programas e atividades e educação sanitária, visando a
melhoria da saúde do indivíduo, da família e da população em geral (...)."
(ABEn 1987, p.26).
Mendes (1996), ao estudar as mudanças curriculares dos cursos de graduação em
Enfermagem, nas diversas universidades brasileiras da década de 70 a 90, aponta
o pioneirismo da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (EEUFRGS) ao inserir em seu currículo, no início da década de 80, uma
disciplina que enfatizava a assistência à família em nível de comunidade.
Destaca-se que tal iniciativa contrariava as políticas de saúde e educação
vigentesna época e, consequentemente, enfrentou resistências de várias ordens.
Atendendo uma solicitação da ABEn, como professores da área de Enfermagem de
Saúde Comunitária do curso de graduação EEUFRGS, que vivenciam, há mais de duas
décadas, o processo educativo na área de cuidado à saúde da família, tentamos
responder duas questões centrais desta temática:como a EEUFRGS tem constituído
o processo de formação do profissional enfermeiro para o cuidado a saúde da
família?, e, conforme nossa vivência,quais são os aspectos relevantes que devem
nortear um planejamento pedagógico para o ensino do cuidado a saúde da família?
Para tal, em um primeiro momento, busca-se traçar uma relação entre as
políticas de saúde adotadas no nosso país, no último século, e a educação de
enfermagem, a fim de auxiliar o desvelamento de alguns valores e atitudes que,
até hoje, dificultam o processo de formação de profissionais para o cuidado ao
grupo familiar, bem como a implantação de algumas políticas públicas de saúde.
Logo após, destaca-se a articulação da enfermagem na política de atenção à
saúde da família. A seguir, é relatada a experiência da EEUFRGS na formação de
enfermeiros para o cuidado a saúde da família, bem como são apontados alguns
princípios norteadores da dinâmica da atividade pedagógica inerente ao processo
relatado. Destaca-se que tais princípios são considerados essenciais, para o
estabelecimento de um projeto pedagógico para o ensino da atenção a saúde do
grupo familiar.
AS POLÍTICAS DE SAÚDE NO BRASIL E A EDUCAÇÃO EM ENFERMAGEM
No Brasil, as primeiras políticas de saúde aparecem como preocupação do governo
com a formação das cidades, a aglomeração das pessoas em precárias condições de
vida e a proliferação das doenças infecto-contagiosas. Como proposta da saúde
pública, o movimento sanitarista, vigente nas duas primeiras décadas deste
século, apresentou para a sociedade um projeto de intervenção o campanhista/
policial (Mehry apud Rizzotto, 1999). Embora as intervenções propostas tivessem
alguma eficiência, foram contestadas pela população, devido ao autoritarismo
empregado nas ações, como, por exemplo, na vacinação obrigatória e no
confinamento dos doentes.
Neste contexto, surgiu a enfermagem profissional na qual, segundoGermano
(1985), o currículo adotado, na época, priorizava as disciplinas vinculadas à
Saúde Pública, porém era exigido que as alunas trabalhassem em instituições
hospitalares.
Concomitantemente, a intenção inicial de formar profissionais que assumissem o
papel de educadores em saúde, não se concretizou por uma série de fatores.
Entre eles, destaca-se a forma como a enfermagem foi inserida na sociedade
brasileira, "de cima para baixo", causando estranheza a população e conseqüente
rejeição do trabalho educativo, pois esse era visto como uma forma de
interferência na privacidade e individualidade, que desconsiderava os limites
de assimilação e alcance das orientações, além de não propor mudanças
estruturais na sociedade (Rizzotto, 1999).
Ao mesmo tempo, surgia o paradigma da medicina clínica, cujo discurso era
individualistaprivatista exigindo outro espaço para se desenvolver, o hospital.
O currículo recomendado em 1949, paraGermano (1985), privilegia a área
preventiva, porém o mercado de trabalho privilegia a área hospitalar, para onde
os profissionais de enfermagem foram, paulatinamente, direcionados. Neste
espaço, o paciente tinha o direito de ser ouvido sobre as alternativas
terapêuticas e, até mesmo, decidir sobre os procedimento aos quais deveria se
submeter, sendo responsabilizado por sua saúde, uma vez que esta seria
alcançada a partir de uma mudança de comportamento do mesmo.
Na década de 40, o papel do profissional, como educador, é retomado com a
criação dos centros de saúde, nos quais a atenção era organizada em programas,
sendo, a educação sanitária, a base da ação e o poder coercitivo substituído
pela persuasão. Assim, origina-se a tendência contemporânea da organização no
campo da saúde sob a forma de programas de atenção individual, por exemplo os
Programas de Atenção Integral à Saúde da Criança, da Mulher, entre outros.
Nos anos 60, com o "Milagre Brasileiro", o entendimento da saúde como
assistência medica especializada, sofisticada, fragmentada e que privilegia a
internação hospitalar, favorece os negócios das indústrias farmacêuticas e de
equipamentos médico-hospitalares. A enfermagem caracteriza-se por valorizar a
organização dos serviços de saúde, a melhoria do ensino e a organização dos
princípios científicos que norteavam sua prática. Com isso, o profissional
distancia-se, cada vez mais, do paciente e procura assumir cargos
administrativos, relacionados à gerência das ações de enfermagem. As ações de
promoção à saúde e de prevenção dos problemas, que afetam as famílias e as
comunidades deixam de ser valorizadas.
SegundoGermano (1985), a área de enfermagem em saúde pública não era
configurada no currículo proposto em 1962, como disciplina obrigatória para o
currículo mínimo de graduação. Assim como a resolução nº 04/72 do CFE de 1968,
recomendava que o enfermeiro fosse formado, para dominar as técnicas avançadas
de saúde e acompanhar a sua evolução científica.
O desenvolvimento de medidas terapêuticas provoca uma mudança gradativa no
quadro nosológico com a diminuição das doenças transmissíveis e da mortalidade
infantil, o aumento da expectativa de vida e das doenças degenerativas.
Na década de 70, surgem os primeiros cursos de pós-graduação em enfermagem. Em
meio à crise do modelo curativista-privatista, as políticas de cuidados
primários à saúde estimulariam o autocuidado e a autonomia das comunidades.
As décadas de 80 e 90, caracterizam-se pela organização de trabalhadores e
entidades dos setores da saúde e educação. A VIII e IX Conferências Nacionais
de Saúde, propõem a adoção de modelos assistenciais mais condizentes com a
realidade sócio-econômico-cultural de nosso país, com ações que visualizem o
cliente, de forma integral, ultrapassando o modelo preventivo-curativo pelo
enfoque holístico, e a participação da população na organização e na gestão do
sistema de saúde (Santos, 1996).
O reconhecimento da saúde, como direito do cidadão e dever do Estado, é
incorporado à Constituição de 1988. A criação de canais de participação impõe
uma real democratização das relações entre profissionais e clientela. Em 1990,
a participação da comunidade no Sistema Único de Saúde é definida em lei e são
criados os Conselhos de Saúde.
Nesta mesma década, a portaria nº 1721 de 15 de dezembro de 1994, estabelece o
Currículo Mínimo de Enfermagem, cujos pressupostos foram: a conjuntura e o
contexto de saúde do país; a relação do processo de formação com o processo de
trabalho da enfermagem e do enfermeiro, com a finalidade de responder às
necessidades de saúde da população; a consonância da formação e da prática
profissional com os princípios oriundos da Atenção Primária à Saúde; a Lei do
Exercício Profissional; e a abordagem dos problemas individuais e coletivos de
saúde, através do método clínico e epidemiológico. Como estratégia de
desenvolvimento curricular, preconiza a teoria emanando da prática, inclui
atividades educativas, além das terapêuticas e administrativas e destaca que a
atenção de Enfermagem deve ser destinada à clientela hospitalizada, bem como a
que vive coletivamente, supondo-se que nesta, esteja incluída a família
(Santos, 1996).
Frente ao desafio de construir referenciais que orientem a formação do
enfermeiro para a saúde da família, deve-se considerar as diversidades
impressas pela política e prática de saúde na sociedade brasileira. Entre as
quais destacam-se:
- os padrões de comportamento da população, quando questiona o trabalho do
enfermeiro junto à família, principalmente, no espaço domiciliar, quanto por
parte do profissional que continua a reproduzir posturas moralizantes e
normatizadoras, herdadas do projeto campanhista/policial (Kaloustian, 1994);
- as políticas de fracionar os segmentos portadores de direitos, por exemplo a
criança, o adolescente, a mulher e o idoso, também fracionaram a família e, em
certas situações, o próprio indivíduo, nas suas diversas fases do
desenvolvimento e crescimento, acabando por embaçãr as demandas de justiça e
proteção do grupo familiar;
- a crise econômica do setor saúde, que gera dificuldades de acesso e qualidade
dos serviços públicos, impulsionando a venda de planos privados, inacessíveis
para a maior parte da população;
- o crescente distanciamento da família, imposta ao enfermeiro pelas políticas
de saúde que valorizaram a organização dos serviços de saúde, colocando-os em
cargos administrativos relacionados a gerência das ações de enfermagem;
- a dicotomia entre teoria e prática, na origem da formação do enfermeiro.
Este quadro apresenta o desafio de propor estratégias de formação de
enfermeiros para atuarem junto às famílias. Na atualidade, algumas estratégias
são propostas pelo PSF.
O PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMÍLIA (PSF) E A ENFERMAGEM
Diante da necessidade de agilizar a reforma do sistema de saúde, o Ministério
da Saúde concebeu, no final de 1993, o PSF, elegendo o núcleo familiar como
foco de suas ações. Tal iniciativa justifica-se à medida que este grupo
primário, origem de todos os outros, está presente, mesmo que de forma
indireta, em todas as instituições e na sociedade, condicionando e sendo por
ela condicionado. A família é, neste sistema, um sub-sistema decisório,
consumidor, parceiro.
Esta proposta, constituiu-se em uma alternativa para enfrentar os problemas na
implantação do SUS. As características deste sistema, proposto na constituição
de 1988 e consolidado na Lei Orgânica da Saúde de 1990, exige a organização de
serviços descentralizados, ágeis, democráticos em sua gestão, com novos tipos
de ações, capazes de atender as demandas da rápida transformação da estrutura
etária da população, a complexa evolução dos problemas de saúde e as
características regionais.
O Programa Saúde da Família, colocado como uma estratégia importante para
reorganização da atenção básica do SUS, tem o aspecto marcante de agilizar, de
forma efetiva, a descentralização de serviços baseados nas reais necessidades
da população, que se manifestam como prioridades e refletem problemas
concretos.
É no cotidiano, no concreto do espaço da família, que os profissionais do
sistema, em interação com estas, buscam a construção da saúde, priorizando
proteção, a promoção do auto-cuidado, a troca solidária, buscando, dessa
maneira, sair do modelo biomédico, dependente, centrado na doença. Vê-se,
assim, que a filosofia que perpassa é mais do que uma simples extensão de
serviços, pois enseja uma prática que oportunize crítica, mudanças, construção
de saber.
Garrido e Levcovitz (1998, p.3) concebem as unidades do PSF como uma"porta de
entrada do sistema", uma"reforma substitutiva" para reestruturar o modelo
assistencial.
As diretrizes operacionais, para implantação das unidades do PSF, determinam
que tenham uma clientela adstrita de 600 a 1000 famílias, com limite máximo de
4500 pessoas e recomenda que cada unidade conte com uma equipe composta de, no
mínimo, um médico generalista ou de família, um enfermeiro, auxiliares de
enfermagem e agentes comunitários de saúde (Brasil, 1994).
A reorientação do modelo, proposta no PSF, indica que a prestação de serviços
deve privilegiar a atenção primária, a integralização das ações, num território
definido, no espaço familiar, constituindo um verdadeiro desafio para todos os
profissionais de saúde.
No documento ministerial do PSF, estão definidas as atribuições da equipe e de
cada uma das categorias que a compõe (BRASIL, 1998). A análise do documento
permite afirmar que a proposta é de atenção à comunidade, uma vez que se propõe
a assistir a "todos os homens" e ao "homem total". Não o divide em curativo e
preventivo. A ênfase é a prevenção, por meio de ações educativas e a
democratização do saber.
O enfermeiro é um profissional, obrigatoriamente, integrante da equipe de
trabalho do PSF, tem explicitada atribuições em dois campos essenciais: na
unidade de saúde e na comunidade, prestando, permanentemente, cuidados e
promovendo aspectos de educação (BRASIL, 1998). Isto exige que esse
profissional, disponha de um repertório que lhe permita assumir múltiplos
papéis: de educador, prestador de cuidados, consultor, uma vez que está sujeito
a constantes solicitações e transformações da sua prática, inserida nas
constantes mudanças que ocorrem no seu espaço de trabalho.
Em 1998, o Ministério da Saúde solicitou às Universidades que incluíssem em
seus currículos de graduação a proposta e os princípios do PSF. Tal solicitação
foi uma tentativa de sensibilizar as instituições de ensino superior para a
capacitação de profissionais, principalmente, médicos e enfermeiros, para
atuarem nesta proposta de reorganização do sistema de saúde.
Para tornar tal sistema resolutivo, segundoSouza (1999), é imprescindível que
os currículos de graduação enfatizem: o trabalho em equipe; a competência
técnica; o reconhecimento da responsabilidade pelo território de atuação,
valorizando a cultura, os valores dos atores sociais e as situações de risco; a
capacitação para o processo de gerenciamento em saúde, observando a concepção
de Saúde Coletiva, subsidiado na análise do cotidiano como suporte para a ação
profissional que contribui para a melhoria da qualidade de vida da população.
A busca de um modelo de cuidado, que enfatiza a relação entre profissional e a
família, como estratégia para garantir uma cobertura eficiente da comunidade,
tem sido, há várias décadas, o norteador da educação em enfermagem comunitária
da EEUFRGS.
PIONERISMO NA FORMAÇÃO DE ENFERMEIROS PARA A SAÚDE DA FAMÍLIA
Ao longo da trajetória da EEUFRGS, inúmeros fatos fizeram com que esta
instituição se transformasse num marco para a formação de enfermeiros na área
de saúde da família.
Em pesquisa realizada porSantos (1996, p.197)2, vários professores de
enfermagem, dessa Escola, quando questionados sobre suas vivências no ensino de
práticas profissionais com famílias, declaram que"a preocupação com a área da
saúde da família era um aspecto presente desde o início da
EEUFRGS...seguramente, na área da saúde, no nosso meio, anossa escola foi uma
das primeiras instituições de ensino superior que valorizou a família como
unidade merecedora de atenção e, também, teve a preocupação de preparara
enfermeira para uma prática capaz de atenderas características ao longo de seu
ciclo de vida."
Tal depoimento, vai ao encontro do estabelecido como filosofia pela EEUFRGS, em
1971, "formar enfermeiros capazes de auto dirigir-se e ...proporcionar cuidados
integrais aos indivíduos, famílias e grupos".
Esta perspectiva filosófica tem determinado as trajetórias das atividades de
ensino, pesquisa e extensão, culminando com a organização do Núcleo de Estudos
e Pesquisa em Educação e Saúde na Família e Comunidade (NEESFAC), nesta
instituição.
As produções desse núcleo têm sido objeto de divulgação em eventos científicos
e periódicos, subsidiando a construção teórico prática das propostas
pedagógicas adotadas nas disciplinas da área de Enfermagem em Saúde
Comunitária.
O PROCESSO EDUCATIVO VIVENCIADO NO ENSINO DO CUIDADO DE ENFERMAGEM À FAMÍLIA
Da pesquisa inicialmente referida, trazemos à reflexão a experiência dos
professores que desenvolvem o processo educativo de cuidado à família no Curso
de Graduação de Enfermagem. Seguindo a orientação deAndré (1995), este processo
contempla as dimensões pedagógica, institucional e a sócio-político-cultural,
acrescidas da dimensão pessoal e profissional do professor.
As experiências próprias do professor, enquanto aluno e profissional, e a
gênese de ser professor e suas motivações para a área de prática profissional
com famílias, inserem-se no referido por Mosquera (1984), sobre o que é ser
docente. Esse renomado educador, afirma ser este, uma pessoa que possui uma
trajetória histórica determinada por suas experiências, ações e comportamentos.
E considera que cada professor imprime um significado próprio a sua profissão e
que, tal significado, está ligado ao seu processo de individualização, à sua
trajetória enquanto pessoa e profissional e à sua interação com a sociedade e
cultura.
As concepções dos professores ouvidos, enquanto pessoas e profissionais, acerca
do significado da família, o significado da família para o cuidado e o cuidado
à família são traduzidas por uns, de acordo comBoyd (1990), como um sistema de
membros que interatuam, ou seja, um sistema humano que está sempre aberto a
trocas e as mudanças, ao mesmo tempo que significa muito mais que a soma das
características e condições de cada um de seus membros.
Alguns professores, consideram a família como uma unidade biopsicossocial,
conforme o enfatizado porAkcerman (1982). Entre os vários relatos discorridos,
um refere que:"... entendo que a família é a base, é o centro da referência, o
primeiro núcleo psicossoal que as pessoas têm para conviver, para poder a
partir daí conviver na sua comunidade, no seu emprego, na sua escola ...".
Outros, enfatizam que a família é um sistema aberto que se apresenta na sua
organização moderna, ou seja, nuclear, muitas vezes, monoparentais ou extensas
e salientam que a família "...enquanto grupo tem funções que determinam os
papéis assumidos pelos diversos elementos..." Vários docentes consideram que
família é "...basicamente sentimento...cada grupo tem sua própria percepção
sobre família."
No entanto, a experiência de um outro professor traz que" (...) a família, nem
sempre é um lugar, um núcleo que recebe bem, que aconchega, que supre
necessidades." Acrescenta que às vezes entrevista uma aluna e esta diz "... não
querer ninguém, querer ficar sozinha, morar sozinha (...) parece que não existe
pai e nem mãe."
A criação desses espaços, para os alunos e professores olharem para as suas
trajetórias de vida e resgatarem o seu próprio processo vivenciado de família,
facilita a abertura necessária para entender o processo no outro.
Através do cotidiano, onde os professores experenciam o ensinar e cuidar, vem a
importância constatada de que valorizam e acreditam no cuidado à família, mas
reconhecem as dificuldades em executar tal cuidado. Consideram, também, a
família como cliente da enfermagem, porém salientam que prestar assistência à
saúde da família tem constituído um desafio para a formação e prática
profissional. Destacam que precisam aprender mais e recomendam a necessidade de
estabelecer estratégias para desenvolver o cuidado à família que extrapolem a
instituição hospitalar.
ParaElsen (1994, p. 69), a família constitui uma unidade de saúde para seus
componentes, apesar dos estudos que abordam as funções da família não
incluírem, " (...) de forma explícita, o cuidado à saúde de seus membros."
Entretanto, destaca que essa unidade nem sempre é eficiente no desempenho desse
papel e, apenas, é considerada saudável quando cuida da saúde de seus
componentes de forma adequada.
Ainda em referência a concepção do professor sobre o cuidado à família, os
docentes têm observado a necessidade e importância de atenção e orientação aos
membros do grupo familiar, à medida que, frequentemente, no âmbito do
domicílio, estes são os cuidadores naturais. Assumindo a responsabilidade do
processo de cuidado, na percepção dos professores, os cuidadores também podem
desenvolver problemas de saúde, principalmente, por estresse e desemprego, este
último ocasionado pela necessidade de permanecerem constantemente no domicílio.
Assim, configura-se um problema para a enfermagem intervir junto com suportes
adicionais interdisciplinares e da comunidade.
SegundoElsen (1994, p.72), sendo a família a unidade básica de saúde para seus
membros, instala-se para a Enfermagem o desafio de"cuidar de quem cuida." Tal
desafio, gera novas perspectivas tais como cuidar da família no local que essa
se encontra, seja ele ambulatório ou no próprio domicílio. Conforme um
professor desse estudo manifestou:" (...) cada membro da família devia
encontrar no profissional de saúde, na equipe de saúde, um espaço que ele possa
depositar suas angústias, aflições, problemas relacionadas com a doença
familiar, que mexe com a família toda."
A dimensão pedagógica está diretamente relacionada com a atividade de ensino
que o professor desenvolve, tanto em atividades teóricas como, também, em
teórico-práticas, que ocorrem em nível de comunidade. Sua organização abrange o
estabelecimento de: marcos norteadores, objetivos e conteúdos programáticos com
as experiências teórico práticas e o processo avaliativo.
A importância de contextualizar a família no ambiente humano, físico, político,
social e econômico que esta vive é enfatizada pelos professores:" (...)
primeiro eu acho importante que eles tenham uma visão de quem é a comunidade,
onde eles moram, se é pobre, rica, quem é que mora. Assim, os alunos vão ter
mais elementos para conhecer e cuidar da família, já conhecerão a comunidade".
Como princípio norteador do processo educativo, foi destacado a atitude do
aluno e professor compartilharem decisões com a família, portanto, realizando a
prática com a família e não para ou na família. O processo educativo deve ser
de forma participativa, derrubando o método de processo ensino verticalizado,
que não atende a necessidade de ensino dos alunos com as famílias e a
comunidade. Uma professora refere que "o nosso trabalho é muito mais com o
enfoque dentro, em conjunto, em comum acordo com a comunidade, dentro da
família. Participando com ela na identificação das necessidades, valorizando ao
máximo seus próprios recursos, ajudando na busca e utilização de recursos
institucionais."
A relevância de trabalhar em equipe é enfatizada, um professor aponta ser"...
importante trabalhar em equipe... relatar casos em equipe, discutir dúvidas e
condutas e solicitar apoio sempre que sentir necessidade. Geralmente, as
primeiras condutas são conversar, ouvir a família e fazer a aproximação ou
vínculo com esta. Não existe receita, tudo o que vai acontecer a posteoiri, nós
não sabemos. E, muitas vezes, nos sentimos impotentes."
Os docentes procuram, constantemente, aprimorar as relações humanas,
profissionais e institucionais que se desenvolvem no cotidiano da assistência à
família nos serviços de saúde. Essa possibilidade interativa, numa perspectiva
crítica, é possibilitada no convívio profissional entre os trabalhadores de
saúde, usuários do serviço, professores e alunos. Visualiza-se, então, a
necessidade do processo pedagógico alinhar-se ao modelo interdisciplinar.
Na concepção deFourrez apud Maggi(1999, p.21), a interdisciplinaridade "nasceu
da tomada de consciência de que a abordagem do mundo por meio de uma disciplina
particular é parcial, e por vezes, estreita." Daí a compreensão que uma questão
do cotidiano remeta a uma multicidade de enfoques no cuidado, para buscar a
solução de um problema concreto de saúde nas famílias ou na comunidade onde
vivem: violência familiar, desemprego, exclusão social, DST/SIDA, desnutrição,
internação domiciliar, não aderência aos programas específicos, às necessidades
próprias do ciclo vital da família e do indivíduo, entre outros relativos a
situação etária, cultural, socioeconómica, mental, sanitária e ambiental.
A importância de visualizar a família, como uma unidade de cuidado, é
expressada, freqüentemente, referindo que "o paciente não é sozinho, ele vem de
algum lugar e se trabalha a valorização das pessoas cuidadoras de quem
necessita o cuidado quer sejam as figuras parentais e/ou outros familiares."
Ao desenvolver, no processo educativo, a atenção ao grupo familiar, o cuidado é
citado pelos professores como "forte norteador desta atenção. A família, sendo
núcleo de saúde, responsável pelo cuidado de seus filhos e de todos os entes,
precisa ser cuidada". A partir deste enfoque, os professores preconizam que, na
atividade pedagógica, o cuidado à família seja desenvolvido a partir da
vivência do aluno com este grupo social, bem como que, tal cuidado, seja
sistematizado, por meio da utilização do Processo de Enfermagem, que auxiliará
a compreensão do processo de viver da própria família.
Outro marco norteador da atividade pedagógica é a comunicação interpessoal. Os
docentes acreditam que esta tem de ser vivenciada a cada instante e consideram
que o aluno, enquanto ser com responsabilidade e interessado," (...) tem suas
propostas que devem ser ouvidas, ele é um ser com capacidade de trazer
excelentes alternativas para as situações mais variadas em termos de cuidado."
Assim, os alunos experenciando a oportunidade de sentirem-se sujeitos no
próprio processo educativo, aprendem a considerar sujeitos o usuário dos
serviços de saúde e os outros profissionais da equipe.
No que se refere aos objetivos das atividades pedagógicas, os docentes
pretendem capacitar o aluno para a prestação do cuidado de enfermagem à família
como uma unidade; demonstrar capacidade de aplicar o processo de enfermagem ao
grupo familiar; compreender e reconhecer os múltiplos fatores que interatuam no
processo saúde-doença deste grupo; identificar a estrutura familiar adotada
pelos clientes; propor ações de enfermagem compatíveis com o grau de
dependência da família; e instrumentalizar a família para o autocuidado.
A dinâmica da atividade pedagógica, vivenciada pelos docentes com os alunos,
engloba vários temas que oferecem oportunidades para instrumentalizar o
processo educativo no cuidado à saúde da família. Entre estes temas, destacam-
se os relacionados as características do grupo familiar, a sistematização do
cuidado de enfermagem e a dinâmica das relações entre os componentes do núcleo
familiar, bem como entre a equipe de saúde e a família.
Na realidade, diante de sua amplitude, esses temas são articulados e
complementados no decorrer das vivências teórico-práticas dos professores e
alunos. Para tal, como estratégia metodológica, os professores adotam a
interdependência entre o processo educativo e os programas das instituições de
saúde em que as atividades pedagógicas são desenvolvidas, o que possibilita as
trocas constantes entre aqueles que ensinam, os que aprendem e os que
viabilizam o cuidado no cotidiano da prática profissional.
Como procedimentos nas atividades teóricas, os professores utilizam aula
expositiva dialogada, leitura, interpretação e discussão de textos, atividade
de reflexão em grupo a partir de questões norteadoras e questões vivenciais dos
alunos. Salientam que o procedimento que proporcionou maior interação entre o
professor e o grupo, foi a atividade de reflexão. Por exemplo, uma das
professoras solicitou que os alunos refletissem sobre duas questões:"O que é
família para você? " e"Você está feliz com a família que tem?"
Percebe-se que, desta forma, o professor contribui para que cada aluno exerçã o
pensamento reflexivo em relação à sua própria construção e acerca da construção
de seus colegas. Afastando, assim, a idéia de verdades e conceitos únicos e
aceitando a relatividade da questão, sendo reconhecida a variedade de elementos
que implicam na construção dessa conceituação.
Os momentos de diálogo e de troca de experiência, entre alunos e professores,
são considerados extremamente positivos para o exercício da intersubjetividade
no processo educativo. Acredita-se que a análise das situações vivenciadas por
todos sujeitos envolvidos em tal processo, os auxiliarão em situações futuras,
até mesmo em suas próprias famílias, principalmente, quando exercerem o papel
de cuidadores.
A partir dessas vivências, acredita-se que as atividades pedagógicas, pautadas
por um enfoque que construa o conhecimento a partir da realidade vivida pelos
próprios alunos, ao mesmo tempo que desperta o interesse, contribui para a
transferência do conhecimento construído para situações imprevisíveis, que
serão enfrentadas, por estes, na prática profissional.
No que se refere à metodologia utilizada pelos professores nas atividades
teórico-práticas, estas são sempre realizadas no âmbito da comunidade, em
subgrupos de alunos e converge para a utilização do processo de Enfermagem que,
conformeGeorge (1993, p.25), foi desenvolvido"... como um método específico de
aplicação de uma abordagem à prática de enfermagem."
Destaca-se que a prática não deve ser pré-determinada, mas sim construída ao
longo da relação profissional/cliente, no contexto desse trabalho, traduzida
para professor/aluno/cliente. Na experiência relatada, os professores
direcionam-se para o conhecimento oriundo do pensamento reflexivo, que para
Garcia (1992), constitui um fator determinante da prática de ensino. E,
paraSchön (1992), é derivação da ação prática e, portanto, é tácito, pessoal e
não sistematizado, experimental, não fixo, sujeito à mudança através da
dialética entre a teoria e a prática.
Assim, na dinâmica da ação educativa, os professores procuram relacionar a
fundamentação teórica, legal e metodológica do exercício profissional,
englobando situações de cuidado à família em seu domicílio, unidades
sanitárias, comunidades e ambulatórios. Essa aproximação com o desenvolvimento
do papel profissional, inserindo o aluno no contexto sócio político sanitário e
cultural em que vivem as famílias, possibilita a abertura, envolvimento e
compromisso do aluno e professor para considerar a saúde da família na sua
totalidade, bem como espera-se que proporcione transformações significativas,
no sentido ético e bioético, que deve embasar toda a relação profissional.
Os momentos de discussão de fatos vivenciados no dia a dia, segundo os
docentes, aproxima muito mais o grupo de alunos e professores. O professor
contribui para o desvelamento da realidade, por parte dos alunos, à medida que
acrescenta elementos de sua vivência, como profissional da área.
A inclusão de seminários, contando com relatos de profissionais que trabalham
em programas de atenção à família e a visita as instituições que desenvolvem
práticas com famílias, também, são destacadas pelos docentes. Esses, consideram
inquestionável a repercussão da realização da visita domiciliar e consulta de
enfermagem para aprendizagem dos alunos, pois nestas atividades é que ocorre a
abordagem com as famílias e, consequentemente, a ação educativa de como cuidar
com a família.
A capacitação profissional, incluindo a pesquisa, é considerada, pelos
professores, como um fator que acresce significativamente o processo educativo.
Um professor referiu "ter utilizado bastante da minha vivência, por ocasião da
dissertação de mestrado ... eu procuro, agora, trabalhar com este enfoque,
porque todos os alunos necessitam de uma instrumentalização para conseguir
vivenciar esta situação de dor e dificuldade que a possibilidade de perda da
criança, como os familiares também... eu acho que muito daquilo que a gente
evidencia na pesquisa qualitativa vai nos dando suporte para também trabalhar
esses fenômenos junto com os alunos."
SegundoMoraes (1999), quando a pesquisa em sala de aula é compreendida e
assumida de forma adequada pode trazer muitas vantagens, pois permite aos
participantes "... um melhor conhecimento de si mesmos e do mundo,
estabelecendo relações significativas entre conhecimento que já têm e novos
conhecimentos investigados."
Entre as dificuldades sentidas por professores, encontra-se a de visualizar o
cliente, indivíduo, ou família, como um todo, porque o enfoque dominante, tanto
nas instituições de saúde como nas instituições formadoras de profissionais de
saúde, ainda é biomédico e curativo. Assim, o distanciamento do enfoque
holístico na formação, não fornece, muitas vezes, a esses alunos, a compreensão
profunda dos problemas humanos.
Outra dificuldade no desenvolvimento da atividade teórico-prática, relacionada
por alguns professores, é associada às condições apresentadas pelos alunos.
Dois aspectos são aqui considerados. A aceitação dos alunos a esta prática
apresenta particularidades, algumas delas decorrentes do próprio perfil pessoal
do aluno: "...tem os que chegam ávidos para conhecer, exercitar; e tem os que
chegam céticos e com os estudos descobrem o enorme campo de trabalho que
oferece a prática com famílias".
Também, a falta de motivação dos alunos refere-se ao fato de nas visitas
domiciliares haver "grande dificuldade de entrar na casa das pessoas. È o
ambiente, porque em uma instituição as pessoas chegam despidas do cotidiano,
(...) o cotidiano tem um peso muito forte (...) que a gente sente no
domicilio".
As formas de avaliar a prática acadêmica, a fim de melhora-lá, necessitam além
das já conhecidas determinações regimentais, oferecer uma ampla oportunidade de
analisar o que se faz, comparando os resultados alcançados com os objetivos
constituídos e como percorreu-se o caminho.
Na percepção dos professores o processo de avaliação é participativo, inclue
autoavaliação e analise do desempenho dos alunos em atividades propostas, tais
como seminários e estudo de caso.
O trabalho conjunto professor/aluno/família, decorrente das atividades
pedagógicas, propricia o crescimento mútuo, a valorização do processo vivencial
e a humanização da ação educativa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ensinar a promoção, recuperação e manutenção da saúde na família, a fim de
promover saúde para cada um de seus membros e da família como unidade, é um
processo complexo e, nesse sentido, reconhece-se que os próprios estágios
familiares, gerando múltiplas necessidades, demandam constante interação com
diversos profissionais interdisciplinares e instituições.
Aprende-se, então, que o apoio teórico a interdisciplinariedade, o conhecimento
e o confronto das situações e condições vivenciais, bem como das relações
familiares habituais e em crises contextualizam e fundamentam as intervenções e
atividades de enfermagem determinantes aos processos educativo e assistencial,
colaboradores à apredizagem acadêmica e a melhoria das necessidades do grupo
familiar.
É portanto na prática com a disciplina deEnfermagem na Comunidade que a
assistência à família torna-se um contínuo acadêmico-assistencial, justamente
por ocorrer no espaço que a família experencia a complexidade do seu viver, que
é uma resultante de sua configuração, estrutura, organização, funções papéis,
estilo de vida, crenças, valores, mitos, riscos, rede de apoio intra familiar e
comunitária e o grau de competência para cumprir seus compromissos.
A leitura da vivência dos professores, leva-nos a pensar que a Educação de
Enfermagem na área de Prática Profissional com famílias, encontra-se em um
estado de arte, que tenta não incorporar o conhecimento oriundo do modelo
biomédico e da educação tradicional, pois busca, gradativamente, o entendimento
da vivência dos sujeitos do processo educativo, o conhecimento proveniente da
análise de situações vivenciadas na prática, assim como a humanização de suas
ações.