Doação de órgãos e bioética: construindo uma interface
PESQUISA
Doação de órgãos e bioética: construindo uma interface
Organ donation and bioethics: building an interface
La donación de órganos y la bioética: construyendo una interfaz
Kely Cristina de AlmeidaI; Anaclara F. V. TippleII;Maria Márcia BachionII;
Giulena Rosa LeiteI; Marcelo MedeirosII
IEnfermeira, Especialista em Enfermagem em Nefrologia
IIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor da Faculdade de Enfermagem da
Universidade Federal de Goiás, E-mail: anaclara@fen.ufg.br
1 Introdução
Enquanto muitas pessoas esperam, anos a fio, por um órgão para que suas vidas
sejam salvas, milhares de outras morrem, todos os anos, prematuramente, em
acidentes ou fatalidades. Muitos órgãos sadios poderiam ser retirados e
implantados naqueles que sofrem à espera de um transplante.
A questão da doação de órgãos no Brasil atualmente transcorre de forma ainda
pouco esclarecida à população, cheia de mitos, tabus e mal entendidos. Até
mesmo a equipe de saúde não está suficientemente esclarecida. O tema envolve
questões sócio-culturais, econômicas, afetivas, técnicas e éticas que merecem
discussão e pesquisa.
Em 1997 foi aprovada pelo Congresso Nacional a Lei nº 9434, que trata da
remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e
tratamento(1). Esta lei estabelecia que a autorização para doação de órgãos era
permitida em casos de não haver a expressão não doador de órgãos e tecidos na
Carteira de Identidade Civil ou na Carteira Nacional de Habilitação. A
manifestação da vontade declarada nos documentos referidos poderia ser
reformulada a qualquer momento, registrando-se a nova declaração de vontade.
Esta Lei foi regulamentada pelo Decreto 2268 de 30 de junho de 1997 (2) e a
partir do dia 01/01/98 começou a vigorar no país, iniciando então, por parte do
governo federal, campanhas de esclarecimento à sociedade através da mídia. As
oportunidades de discussão e avaliação de dados da opinião pública foram
tímidas. O objetivo das campanhas foi de informar que todo brasileiro maior de
21 anos era em potencial um doador de órgão e tecidos, a menos que tivesse
registrado na Carteira de Identidade Civil (RG) ou Carteira Nacional de
Habilitação (CNH) a expressão do desejo contrário, ou seja, declarar sua opção
de não-doador.
A doação voluntária vislumbra o ato de doar como uma ação altruísta, positiva e
solidária originada na vontade expressa do indivíduo ou da família, o que traz
reconhecimento social. Destacamos o exercício da autonomia motivando a
beneficência social, ou seja, a possibilidade de fazer benefício ao próximo.
Goldim (3) considerou que a lei 9434/97 trouxe uma modificação significativa no
poder de decisão do indivíduo.
A incerteza da população quanto ao destino dos órgãos e ao conceito de morte
encefálica no caso de doador cadáver, gerou um clima negativo para a doação o
que acreditamos ser fator impeditivo à mesma, explicando então, o grande número
de pessoas que após a divulgação da nova lei, registraram em seus documentos
ser não-doador de órgão e tecidos.
Em outubro de 1998 a Medida Provisória nº1718 (4) acrescentou ao artigo 4º da
Lei 9434 um novo parágrafo que estabeleceu que na ausência de manifestação de
vontade da pessoa, colocando-se como potencial doador, o pai, a mãe, o filho ou
o cônjuge poderia manifestar-se contrariamente à doação, devendo esta decisão
ser acatada elas equipes de transplante e remoção.
A partir de 23 de março de 2001 entrou em vigor a Lei nº 10211 (5), que alterou
dispositivos da Lei nº 9434. A nova lei estabeleceu que as manifestações de
vontade relativas à doação de órgãos, constantes na Carteira de Identidade
Civil e da Carteira Nacional de Habilitação não teriam validade a partir de
dezembro de 2000.
A doação de órgãos envolve questões complexas e delicadas e a Bioética
constitui importante referencial na busca de compreendê-las.
A Bioética, de caráter eminentemente multidisciplinar, compreende "o estudo
sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e dos cuidados da
saúde, na medida em que esta conduta é examinada à luz dos valores e princípios
morais" (6: 191).
O objetivo geral da Bioética é a busca de benefício e da garantia da
integridade do ser humano, tendo como fio condutor o princípio básico da defesa
da dignidade humana (7). Assim, serve de campo para refletir e discutir
questões auxiliando as pessoas a tomarem decisões.
Ser doador ou não de órgão(s) depende dos valores morais e culturais de cada
indivíduo e população, além do conhecimento do assunto para o exercício pleno
da autonomia.
A Bioética pode ser compreendida à luz de vários modelos. O mais difundido no
Brasil e que fundamentou inclusive as normas para a realização de pesquisas com
seres humanos no país é o Modelo de Princípios que adota quatro pilares
explicativos: a autonomia, a beneficência, a não maleficência e a justiça (8).
A beneficência é um dos princípios mais conhecidos e em uma definição mais
simplista significa não causar dano. Certos benefícios justificam alguns danos,
mas não qualquer tipo de dano. Diante desta afirmação, beneficência significa a
obrigação de garantir o bem-estar do indivíduo e de desenvolver informação para
tornar mais fácil, no futuro dar essa garantia (9).
O princípio da justiça exige que a distribuição de danos e benefícios seja
justa, em nome da justiça é que toda atenção, todo cuidado e todo sistema de
saúde devem ser justos. É o princípio da justiça que garante a distribuição
justa, eqüitativa e universal dos benefícios dos serviços de saúde (9).
O termo autonomia, de acordo com sua origem grega significa autogoverno
referindo-se ao grau de poder da pessoa de tomar decisões que afetem sua vida,
sua integridade físico-psíquica, suas relações sociais. A pessoa autônoma é
aquela que delibera e escolhe seus planos, sendo ainda, capaz de agir com base
nessas deliberações (10-13).
A autonomia refere-se ao indivíduo e sua capacidade de decisão, como também
exige da sociedade o respeito a essa decisão. Entendemos que para decidir sobre
alguma coisa, são necessários adequados entendimento e conhecimento do assunto
para que o processo de análise seja realizado de forma mais inteirada da
realidade reduzindo-se os erros advindos de uma conduta ou atitude insensata, o
que muitas vezes é irreversível.
Acreditamos que estes princípios podem servir de base para refletir todos os
comportamentos humanos. Nesse sentido, propomos um estudo sobre transplantes de
órgãos, tomando como referencial teórico os princípios anteriormente citados.
Esta questão, entre outras na área da saúde, envolve controvérsias e discussões
(14). A partir dos anos sessenta, entre outras causas, em virtude dos
movimentos de defesa dos direito fundamentais da cidadania e, especificamente,
dos reivindicativos do direito à saúde e humanização dos serviços de saúde,
vem-se ampliando a consciência por parte dos indivíduos de sua condição de
agentes morais autônomos, desejosos de estabelecer com os profissionais de
saúde relações onde ambas as partes mutuamente se necessitam e se respeitam
(15).
O aparecimento dos transplantes serviu para modificar o próprio conceito de
morte, que até então era aceita como um fenômeno cardíaco e após o seu
surgimento, houve que se aceitar como o término legal da vida, a morte
encefálica.
Uma pesquisa realizada pela Data Folha, divulgada pelo Jornal Folha de São
Paulo informa que "entrevistados 1049 moradores da cidade de São Paulo, a
maioria da população doaria os seus órgãos para transplantes após a morte,
independente do nível de escolaridade. Além disso, os entrevistados dariam
autorização para remoção de órgãos de familiares mortos"(6:191).
A pesquisa mencionada mostrou que não há uma rigidez na postura das famílias
frente à autorização para o transplante. O que, então, faz com que seja ainda
tão pequeno o número de pessoas que tenham se declarado doadoras em seus
documentos de identificação? Por que as pessoas não se posicionam efetivamente
como doadoras de órgãos?
2 Objetivos
Considerando que a informação é condição imprescindível à tomada de decisão,
estabelecemos para este estudo três objetivos:
a - Identificar a atitude de graduandos de enfermagem sobre a doação de órgãos.
b - Identificar o conhecimento de graduandos de enfermagem sobre a legislação
acerca de doação de órgãos no Brasil.
c - Analisar a atitude e o conhecimento dos alunos de graduação em Enfermagem
sobre a doação de órgãos sob o ponto de vista da bioética.
3 Percurso metodológico
Escolhemos adotar neste estudo a abordagem qualitativa, que trabalha com "o
universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores, e atitudes o
que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos
fenômenos que não podem ser reduzidos á operacionalizações de variáveis"(16:
21).
O estudo foi desenvolvido na Universidade Federal de Goiás e na Universidade
Católica de Goiás, sendo as duas Universidades que oferecem curso de graduação
em Enfermagem na cidade de Goiânia, estado de Goiás.
Foram abordados alunos do último ano/período do curso de graduação de
Enfermagem. A população foi escolhida levando em conta que seriam, em breve,
profissionais de saúde, portanto, presumivelmente detentores de conhecimento
suficiente para utilizar sua autonomia com relação à doação de órgãos.
Após serem convidados e esclarecidos sobre a pesquisa, 45 alunos aceitaram
participar, através da assinatura do termo de consentimento livre e
esclarecido.
O projeto de pesquisa foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Bioética da Santa
Casa de Misericórdia de Goiânia (GO).
A coleta de dados foi realizada no período de julho a dezembro de 2000,
utilizando um questionário previamente validado quanto ao seu conteúdo por dois
professores da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Goiás e por
um enfermeiro com atuação na área de bioética da Santa Casa de Misericórdia de
Goiânia.
Os alunos foram reunidos em sala de aula e então procedemos à leitura do termo
de consentimento, prestando esclarecimentos devidos e assegurando o anonimato.
A resposta ao questionário foi considerada como aceite à participação na
pesquisa.
A análise quantitativa pautou-se em procedimentos de estatística descritiva e a
análise qualitativa foi realizada sob o critério de categorização,(17) a qual
se constituiu em uma operação de classificação de elementos constitutivos de um
conjunto, por diferenciação e, seguidamente, por reagrupamento segundo
critérios previamente definidos. Além disso, foram utilizados os marcos
referenciais da bioética.
Visando o anonimato dos participantes da pesquisa, codificamos cada resposta ao
questionário da seguinte forma: Aluno 1 = A1; Aluno 2 = A2, e assim por diante.
4 Resultados, análise e discussão
Dos 45 sujeitos que participaram do estudo, 93,3% eram mulheres, com idade
média maior ou igual a 21 anos (95,5%).
Após leitura exaustiva das repostas dos questionários aplicados, percebemos que
havia elementos que se apresentavam com freqüência, o que permitiu-nos reuni-
los em categorias com o objetivo de melhor entendimento/aprofundamento do tema
abordado.
As categorias levantadas foram: manutenção da vida, não confiabilidade e
desinformação.
4.1 Manutenção da vida
Quando questionamos sobre a autorização para doação de órgãos 35 (77,7%)
entrevistados autorizariam a doação, justificando que a faria por desejo de
ajudar a manter a vida, o que pode ser claramente observado em respostas como:
Doaria para ajudar a salvar uma vida. (A1, A14, A15, A22, A23, A26,
A29).
Para ajudar o meu próximo(A7, A11, A12, A17, A19, A30, A33, A36).
Daria a chance de alguém continuar com melhor qualidade de vida
através de um órgão meu(A32).
Humanismo, consideração à vida(A2).
Considero importante para outras pessoas que vivem o sofrimento de
esperar uma doação(A16, A24).
Trata-se de uma questão de solidariedade, amor ao próximo.(A10, A
41).
Acho que doar um órgão é doar vida. Todos têm direito à vida.(A8, A
27, A28).
Estes resultados corroboram com outros achados(18) que apontam entre os motivos
que levam estudantes a serem favoráveis a doação de órgãos, o desejo de
continuar a vida do outro; desejo de dar qualidade de vida aos que necessitam
de um transplante. Somam-se a estes a concepção do corpo enquanto matéria, que,
após a morte, não contém mais a essência daquele que o habitava, sendo para
este último inútil, contudo, podendo servir para outros que ainda estão vivos;
com a possibilidade de reaproveitamento de órgãos.
Prolongar a vida de uma pessoa e ou melhorar sua qualidade de vida, evitar a
dor e o sofrimento, são motivos os quais fazem com que as pessoas que
participaram de outro estudo (19) se coloquem numa atitude favorável à doação
de órgãos. Cada uma destas ações é universalmente reconhecida como atos de alto
valor de solidariedade na sociedade moderna e ocidental (19) .
A bioética inclui, também, uma valorização do feminino, no que diz respeito ao
tomar cuidado dos outros (9) e uma vez que a população estudada é
predominantemente feminina 42 (93,3%), torna-se relevante para o momento. As
mulheres têm uma noção de moralidade que é diferente da maioria dos homens,
percebem mais a responsabilidade para com os outros, a importância das relações
e da solicitude (9) .
Resta saber até que ponto essa solidariedade é suficiente para levar o
indivíduo à doação de órgãos uma vez que, quando se olha o número de pessoas na
lista de espera, aptos a receber transplante, verifica-se que a quantidade de
transplantes ainda é insuficiente para atender a demanda.
4.2 Não confiabilidade
Dentre os entrevistados 10 (22,2%) não autorizariam a doação e justificam suas
respostas com a dificuldade em garantir a confirmação de morte encefálica ou
por não acreditarem no cumprimento da lei de doação de órgãos, a qual, para
alguns está obscura.
Porque temo pela falta de atenção à minha vida, pelos médicos no caso
de eu correr riscos (A25)
Porque acredito que as pessoas ainda não são honestas o bastante,
para ter os órgãos de outras em suas mãos(A43)
Não confio nos profissionais responsáveis pela retirada dos órgãos
(A39)
É um assunto complexo! Quem iria garantir que eu realmente estaria
morta?(A38)
Devido à corrupção no Brasil(A37)
Em não acreditar no sistema(A35)
As leis ainda não são claras quanto a isso, além do que, colocou
obrigatoriedade e eu sou contra(A34)
Porque não confio na lei para tal procedimento(A40)
Em outro estudo(19) também foi encontrada entre os sujeitos a desconfiança no
procedimento, que origina desacordo com a doação de órgãos e transplantes. E
ainda há razões para a não doação reportam-se a aspectos bioéticos, como o
receio da morte premeditada, além de críticas ao sistema de saúde brasileiro e
à lei de transplantes(18).
O fato de a autonomia admitir graus como já foi destacado anteriormente, nos
remete a reflexão sobre a condição em que a autonomia está reduzida, o que
configura situação de vulnerabilidade. "devemos voltar nossa atenção para as
opções sócio-estruturais que interferem na produção da vida e da saúde e acabam
por repercutir e determinar as dimensões circunscritas das relações" (12:20). A
vulnerabilidade pode ser abordada em três planos interdependentes: a
vulnerabilidade individual, a vulnerabilidade social e a vulnerabilidade
programática. A vulnerabilidade programática envolve, entre outros aspectos,
aspectos relacionados à implementação das normas e diretrizes regulamentadoras
da ética e o acompanhamento e informações do sujeito sobre estas.
A vulnerabilidade social inclui a pobreza, as desigualdades sociais,
o acesso às ações e serviços de saúde e educação, o respeito às
diferenças culturais e religiosas, a marginalização de grupos em
particular, as relações de gênero e com as lideranças dos grupos e
coletividades (12:21).
A equipe de saúde aborda com o mesmo cuidado e respeito à dignidade todos
usuários do serviço e seus familiares, independente de sua cor, sexo, condição
social?
Sendo o Brasil um país de grandes desigualdades, que produz excluídos e
marginalizados, não podemos esperar que o respeito à dignidade da vida humana
seja suficiente para que o cidadão sinta-se seguro e protegido.
4.3 Desinformação
Quando questionamos os graduandos se conheciam a legislação sobre doação de
órgãos no Brasil, 29 (64,5%) responderam que não.
Tenho ainda muitas dúvidas, contudo já pude lê-la, mas não discuti-la
(A3)
Não conheço o tramite legal para os fins da doação(A5)
Não me arriscaria a comentar. Sabemos apenas de informações, nada
oficial. Nunca tive acesso às informações oficiais(A21)
Eu conheço a atual lei por comentário de outras pessoas por isso me
considero sem conhecimento nessa área(A22)
Os 16 (35,5%) alunos que responderam afirmativamente quanto ao conhecimento da
lei, mencionaram apenas alguns aspectos da legislação, como, por exemplo:
Colocar se aceita doar ou não na carteira de identidade(A42)
É proibida a venda de órgãos, deve-se respeitar uma lista de espera,
não deve haver privilegiados, a doação é livre e esclarecida, a
família tem o poder de decisão (A8)
Existiam aqueles que tinham interpretação errônea da legislação, como pode ser
visto na fala a seguir:
Sei que quem não quer doar tem que colocar no documento, e que quem
não escreve nada é obrigatoriamente um doador, e isso é um absurdo
(A34)
O exercício da autonomia está intimamente ligado ao conhecimento sobre
determinado assunto e quem não tem esse conhecimento não detém a capacidade de
escolha(20). Este pressuposto é corroborado pela noção de vulnerabilidade
individual, a qual se refere ao comportamento e as crenças pessoais, bem como
ao acesso dos sujeitos às informações a ação que pretende tomar, incluindo a
forma como são transmitidas e sua competência para consentir, isto é, aceitar
tomar parte na ação(12).
A autonomia, enquanto princípio da Bioética diz respeito à capacidade de
escolher, decidir, avaliar, sem restrições internas ou externas. A
desinformação sobre a atual lei de doação de órgãos está clara e ao nosso ver
dever ser sanada o mais rápido possível, ainda na fase de formação
profissional.
Todos, sem exceção, devem ter o poder de opinar, de escolher se é ou não doador
de órgãos. E cabe ainda ressaltar o fato de que, se a amostra pesquisada não
está orientada a respeito da lei, o que se encontraria se fosse pesquisado o
imaginário das pessoas que possuem menos escolaridade ou que não estejam
inseridas na área de saúde? Estariam preparados a exercer essa autonomia?
Acreditamos que não.
O assunto transplante, tão atual e complexo, deve ser abordado principalmente
nas áreas interdisciplinares ligadas à saúde como, por exemplo, na formação de
profissionais médicos, enfermeiros, psicólogos, nutricionistas, assistentes
sociais, e outros, pois serão eles os responsáveis por acompanhar de perto esse
procedimento.
Quando questionamos se este tema esteve presente como conteúdo integrante de
alguma disciplina do curso de enfermagem, 39 (86,7%) responderam que não.
O ensino de ética na Enfermagem tem se limitado ao enfoque deontológico e
utilitarista, dissociado da prática clínica dos estudantes(21).
Devido à falta de oportunidade para refletir criticamente sobre a temática
transplantes de órgãos, estes futuros profissionais de saúde deixam a
universidade sem a formação necessária par atuar como educador em saúde nesta
área, o que impede a potencialização de agentes multiplicadores de um processo
de sensibilização para doação de órgãos. Sem o exercício de construção de uma
ética pessoal, que deve anteceder a construção da ética profissional
normatizada, este processo não se dará(11).
Este fato é ilustrado com o seguinte relato:
Estou saindo da faculdade sem um conhecimento específico na área ...
e como ficamos às vezes sem lidarmos com estas situações ficamos
alheios a isto(A1)
Quando questionamos quem seria o responsável pelo processo de informação dos
profissionais de saúde acerca desta temática, 12 vezes foram citadas as
instituições de ensino, sendo apontadas como possuidoras de um papel importante
na abordagem de assunto tão relevante para a sociedade.
Acho que principalmente as escolas, pois são elas as grandes
modificadoras de comportamento(A27)
As escolas através de convênios com as universidades(A14, A15, A16,
A22, A23, A25)
Sem a formação adequada, não só os enfermeiros, mas os demais profissionais de
saúde, estarão despreparados para agir eticamente nas relações pessoais/
profissionais junto aos possíveis doadores de órgãos(22), construindo nas
instituições de saúde um espaço sigiloso onde estas pessoas possam ser ouvidas,
para que expressem suas dúvidas, desejo ou não de doar, medos, pressões que
porventura estejam sofrendo, para que possam fazer sua opção. Alerta ainda que
as pessoas que necessitam do transplante podem não ser magnânimos ou não ser
capazes de compreender ou aceitar uma recusa de doação do órgão que ele
necessita.
A Bioética tomou forma no Brasil nos anos 90 (23). Reconhecidamente houve
expansão dos cenários de discussões e reflexões desta natureza, contudo, é
necessário impregnar este olhar e agir em todos os níveis de ensino formal.
As respostas dos sujeitos que participaram de nossa pesquisa levam-nos a
questionar a formação do profissional de saúde como ser global, crítico e
consciente de seu papel enquanto cidadão. Ao considerarmos que os participantes
deste estudo, serão em pouco tempo profissionais em diferentes instituições de
saúde, o que se espera é que sejam capazes de oferecer uma informação
diferenciada, ou seja, importa a qualidade da informação, que tem haver com a
postura ética dos profissionais (10) e conseqüentemente com as oportunidades de
formação a este respeito. Explicita-se, assim, a estreita relação entre
(in)formação e autonomia.
Um tema como doação de órgãos, de caráter ético e social, deveria ser abordado
na formação desses profissionais com a freqüência e a profundidade necessárias.
Além disso, é necessário considerar as crenças e valores relativos a esta
temática na sociedade como um todo.
Entre as recomendações da Declaração Bioética de Gijón (24), destacamos a
explicitação de que: o ensino de Bioética deva incorporar-se ao sistema
educacional; todos os membros da sociedade devem receber informações gerais,
adequadas e acessíveis sobre os avanços científicos; deve-se propiciar e
estimular o debate especializado e público a fim de orientar as opiniões,
atitudes e as propostas; deve-se garantir o exercício da autonomia da pessoa.
O Estado e instituições de saúde também foram citados pelos entrevistados como
responsáveis por informar a população sobre doação de órgãos, em 71,1% das
falas sobre este sub-tema.
O Ministério da Saúde é o representante nacional responsável por
todas as instituições, ele deve informar(A5, A7, A20, A21, A28, A30,
A31, A32, A35, A37)
cho que toda lei deveria ser explicada à comunidade pelo Estado(A18,
A23, A33, A38, A41)
Os postos de saúde e agentes de saúde, pois eles é que estão em
contato com a população mais diretamente(A11, A19, A26, A44).
Qual é o papel do Estado no que se refere à doação de órgãos no país? A doação
de órgãos é assunto que traz à tona temas que exigem um mínimo de conhecimento
sociológico para sucesso futuros. A questão dos valores morais, das
características solidárias da população brasileira, da aceitação e entendimento
do conceito de morte encefálica não pode ficar na superficialidade numa
discussão do assunto.
O período compreendido entre fevereiro de 1997 (aprovação da Lei nº 9434 pelo
Congresso Nacional), a janeiro de 1998, data em que a lei entrou em vigor,
poderia ter sido uma fase de exposição do tema à sociedade, e um momento de
discussão nas diversas camadas da população, captar as tendências do cidadão
brasileiro frente ao ato de doar, e ainda buscar experiências anteriores.
Porém, isso não aconteceu, o que trouxe comportamentos muitas vezes negativos.
Posteriormente, a Medida Provisória nº 1718 (4)não foi largamente divulgada, o
que fez com que muitas pessoas ainda levem em conta apenas a Lei nº 9434 (1).
Decorridos alguns meses da realização desta pesquisa, foi implantada a Lei
10211 de 2001 (5). Gostaríamos de salientar que a legislação pertinente a nosso
estudo não incluiu esta nova legislação. Contudo, é oportuno lembrar que a
referida lei também não teve a merecida divulgação nos veículos de comunicação
de massa e nas instituições formadoras dos profissionais de saúde.
Além do Estado, a sociedade organizada também possui importante papel na
multiplicação de informações e pode haver programas de esclarecimento à
população através de empresas, indústrias, igrejas, associações de bairros,
ONG's (Organizações Não Governamentais). A doação é vista como papel social e
esta aprendizagem inicia-se em casa, na família.
Para que uma ação seja autônoma(13) devem ser cumpridas três condições
propostas por Faden e Beauchamp, em sua obra A history and t heory of informed
consent (publicado em 1986): intencionalidade, conhecimento adequado e ausência
de controle externo. A intencionalidade refere-se a desejo ou motivação
autêntica. O conhecimento diz respeito ao entendimento. Aqui surge um
complicador, pois não está definido a priori que tipo de conhecimento e
compreensão são exigidos para que a ação seja autônoma. Contudo, pode-se falar
em conhecimento adequado quando existe a compreensão: da natureza da ação, das
conseqüências previsíveis e dos resultados possíveis da execução ou não da
ação. Controle externo refere-se a uma ação controladora externa e pode ter
três modulações: coerção, manipulação e persuasão.
A intencionalidade não admite graus, "podendo-se falar em atos intencionais ou
não intencionais. O conhecimento e o controle admitem graus" (13:24). Desta
forma pode-se dizer que não existe ação completamente autônoma, mas pode-se
"aspirar ações que sejam substancialmente autônomas" (13:24). Para que a doação
de órgãos seja efetivamente legitimada como ação autônoma, é necessário
encontrar estratégias éticas em que os possíveis doadores sintam-se seguros e
protegidos, que desenvolvam intenção autêntica de doar órgão(s), livres de
controle externo.
5 Conclusão
O presente estudo representa uma concretização de esforços na tentativa de
construção de um olhar bioético enfocando a doação de órgãos.
A partir da análise das falas dos 45 alunos de graduação de Enfermagem
identificamos sua atitude positiva com relação à doação de órgãos, expressa na
solidariedade com a "Manutenção da Vida". Contudo, coexiste o sentimento de
vulnerabilidade, expresso na "Não Confiabilidade" nos profissionais envolvidos
com a retirada de órgãos e insegurança quanto às garantias do cumprimento da
legislação específica.
Entendemos que o cidadão somente será capaz de decidir sobre as questões da
vida a partir do momento que receber informações suficientes.
Os bacharelandos em enfermagem expressaram "Desinformação" sobre a legislação
de doação de órgãos em vigor até 2000, o que lhes impede constituir-se, neste
momento, em multiplicadores de informações para a população, e, por outro lado,
também, os torna alheios com relação ao emprego da sua autonomia para serem
doadores de órgãos. Ao evidenciar esta situação, conclamamos esforços para que
a mesma seja revertida mais rápido possível, pois somente com a construção de
um conhecimento adequado sobre a doação de órgãos é que o cidadão/profissional
de saúde poderá optar por ser doador ou não e, assim, terá chance de promover a
melhoria da vida e bem estar de um receptor e ainda assumir este desafio como
educador de saúde.
O olhar bioético nos trouxe a importância da divulgação do conhecimento como
elemento básico à doação de órgãos.
O empenho da reconstrução da bioética no âmbito da formação dos enfermeiros é
essencial. Não obstante, como revelado no estudo, existem ainda lacunas sob o
ponto de vista teórico, temas que necessitam ser pesquisados para facilitar os
enfermeiros no cotidiano pedagógico e ético de sua profissão, além da adoção da
disciplina Bioética com o destaque que ela merece.
Ressaltamos a importância do papel do Estado na criação das leis, sua
aplicabilidade e divulgação. Favorecer o consentimento voluntário para a doação
de órgãos a nosso ver é a forma de garantir uma decisão mais justa e
participativa. Como demonstrado neste estudo, as pessoas se propuseram a ser
doadoras por visualizar o ato como uma conduta de ajudar o outro e representa o
estímulo maior na ação. Eis aí a questão da doação de órgãos como atitude
socialmente positiva.