Maria Rosa Sousa Pinheiro - a grande líder da enfermagem
IN MEMORIAM
Maria Rosa Sousa Pinheiro - a grande líder da enfermagem
Taka Oguisso
Enfermeira e advogada, Professora Titular do Departamento de Orientação
Profissional da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, E-mail do
autor: takaoguisso@uol.com.br
Faleceu no dia 21 de junho de 2002, na cidade de São Paulo, a Dona Maria Rosa
Sousa Pinheiro1, uma das maiores líderes da Enfermagem brasileira. Sua vida
profissional é recheada de missões e trabalhos especiais que desenvolveu ao
longo de várias décadas, desde que ingressou no campo da saúde.
Em 1969, na homenagem a ela prestada pela Associação Brasileira de Enfermagem
(ABEn), com a outorga do título de "Enfermeira do Ano", Clarice Della Torre
Ferrarini, uma outra líder da enfermagem, saudou-a com um discurso(1) onde
descreveu uma parte importante de sua vida e de seus feitos. A Associação
Paulista de Hospitais associou-se às homenagens, transcrevendo o mesmo discurso
em seu órgão de divulgação(2).
Logo ao ser criada, em 1981, a Revista Paulista de Enfermagem(3), da ABEn-SP,
também lhe rendeu uma homenagem, com uma entrevista na matéria de capa. Ao
jornalista, Francisco Lucrécio, Dona Maria Rosa, como gostava de ser chamada,
contou sobre sua infância e sua trajetória profissional. Nascida em Araraquara,
Estado de São Paulo, no dia 14 de dezembro de 1908, era a filha mais velha de
uma família com seis filhos (duas mulheres e quatro homens). Ainda menina foi
morar na Capital, com a avó, que tinha o mesmo nome. Morou, segundo ela, numa
casa grande e de muitos cômodos, na Rua Conselheiro Furtado, esquina com Maria
Luzia, no bairro da Liberdade, muito antes da chegada da imigração japonesa ao
local, hoje transformado em bairro típico dessa colônia. Desde cedo lia muito
e, adolescente, já havia lido boa parte da literatura francesa e portuguesa da
biblioteca do tio, engenheiro, que queria que ela estudasse medicina. Fez
estudos na Escola Normal da Praça, mais tarde, Caetano de Campos, na Praça da
República. Em 1930 fez o curso de Educadora Sanitária, no então Instituto de
Higiene, atual Faculdade de Saúde Pública, da Universidade de São Paulo (USP).
Daí, por indicação de Geraldo de Paula Souza, estava no caminho natural para a
Enfermagem. Recebeu o grau de Bacharel em Letras Estrangeiras, em 1937, na
primeira turma da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.
Com bolsa de estudo da Fundação Rockefeller e autorização do Governo do Estado,
Dona Maria Rosa, partiu, em 1940, com algumas outras brasileiras para a
Universidade de Toronto, no Canadá, para fazer o curso de Enfermagem. Regressou
a São Paulo, em 1944, bem preparada para ajudar a alicerçar as bases da atual
Escola de Enfermagem da USP (EEUSP). Ocupou o cargo de vice-diretora da Escola,
cuja diretora, na época, era a Dona Edith de Magalhães Fraenkel, outra
incontestável líder da enfermagem brasileira. Em 1947-48, Dona Maria Rosa
ausentou-se de novo, com outra bolsa de estudos para fazer um curso de pós-
graduação, no Teachers College, da Universidade Columbia, em Nova York, Estados
Unidos, de onde voltou com o grau de Mestre.
Depois de três anos de atividades docentes e administrativas na EEUSP, foi
convidada a chefiar a Divisão de Enfermagem do Serviço Especial de Saúde
Pública (SESP), no Rio de Janeiro. Como refere Ferrarini, suas "atividades no
SESP deram-lhe ensejo para alargar sua visão sobre os problemas de saúde do
país, de um modo geral e, particularmente, sobre os problemas específicos da
enfermagem. Em 1955, voltou para São Paulo e assumiu a direção da EEUSP", onde
permaneceu até sua aposentadoria, em 1978.
Com sua sensibilidade, Dona Maria Rosa logo "percebeu o alto significado de uma
associação de classe, como instrumento relevante para o desenvolvimento
profissional, e, desde os primeiros anos de atividade no campo da enfermagem,
colocou sua inteligência e esforços a serviço da ABEn2". Foi eleita presidente
dessa Associação por dois mandatos, de 1954-56 e de 1956-58, porém, desde o
retorno de Toronto, já vinha contribuindo decisivamente, tanto na
reestruturação da ABEn como em outras importantes atividades, de tal modo que,
em julho de 1947, foi realizado o 1o. Congresso Brasileiro de Enfermagem, em
São Paulo, dentro do ambiente da própria Escola de Enfermagem. Registre-se que,
a pedido da ABEn, o Príncipe dos Poetas Brasileiros, Guilherme de Almeida,
escreveu uma bonita poesia em homenagem às enfermeiras, chamada A mão que nunca
falta, transcrita ao final do texto.
Ativamente colaborou também na organização do X Congresso Quadrienal do
Conselho Internacional de Enfermeiras (CIE), em julho de 1953, no Rio de
Janeiro. Ressalte-se que foi o primeiro congresso do CIE realizado no
hemisfério sul e em país latino-americano. O Código de Ética para Enfermeiros,
em nível internacional, foi aprovado pelo CIE, exatamente em 1953, nesse
evento.
Durante os dois mandatos de Dona Maria Rosa, na ABEn, alguns feitos merecem ser
destacados, cuja importância pode ser medida pela repercussão histórica que
eles tiveram. Não há dúvida de que o mais importante foi o planejamento,
organização, execução e conclusão do Levantamento de Recursos e Necessidades de
Enfermagem no Brasil(4), a primeira pesquisa realizada com toda a metodologia
cientifica na enfermagem brasileira com recursos recebidos da Fundação
Rockfeller. Terminado o Levantamento, o seu Relatório foi publicado, em inglês,
pela própria Fundação, nos Estados Unidos, mas a ABEn não teve recursos para
publicá-lo, em português no Brasil, o que somente veio a ocorrer vinte anos
depois, isto é, em 1980. Cópias mimeografadas eram utilizadas pelas líderes
brasileiras. Uma das mais graves constatações dessa pesquisa foi de que "70,8%
do trabalho de enfermagem estava entregue aos atendentes, pessoal sem preparo
profissional e, na maioria das vezes, sem supervisão do enfermeiro". Essa
pesquisa foi resultado de suas inquietações sobre dados objetivos, inexistentes
na época, não apenas para o planejamento da enfermagem, mas também para a
argumentação com legisladores, governantes, outras autoridades e os próprios
enfermeiros.
Outros fatos foram: a promulgação da Lei 2604/55 sobre a regulamentação do
exercício profissional de Enfermagem2, a instalação da ABEn em sede própria, no
Rio de Janeiro, aprovação do Código de Ética de Enfermagem, condecoração da
enfermeira Clara Curtis, com a medalha Cruzeiro do Sul, a mais alta
condecoração do País, pelo Governo Federal, por sugestão da ABEn, pelos
relevantes serviços prestados à Enfermagem e início dos trâmites legais para
conseguir a doação de terreno em Brasília, para onde o Governo pretendia
transferir a capital do Brasil. Além de diversos outros projetos transformados
em lei e atividades associativas realizadas nesse período, mencione-se que os
congressos de enfermagem continuaram a ser realizados anualmente, seminários
especiais e a criação de seções da ABEn nos Estados do Paraná, Maranhão e Mato
Grosso. Também foi em seu mandato que a Revista Brasileira de Enfermagem foi
registrada com personalidade jurídica(5). Há muitos e muitos mais feitos que
mereceriam ser destacados, mas não caberiam nestas páginas, e o leitor
interessado poderá encontrá-los através do índice remissivo, no livro de
Carvalho.
Dona Maria Rosa foi também a primeira Presidente do Conselho Federal de
Enfermagem (COFEN). Após a promulgação da Lei n. 5905/73, que criou os
Conselhos Federal e Regionais de Enfermagem no Brasil, o Ministro do Trabalho,
Arnaldo Prieto, por indicação da ABEn, nomeou o grupo de nove enfermeiras que
deveriam compor a primeira diretoria. Após a posse, no dia 23 de abril de 1975,
as conselheiras elegeram Dona Maria Rosa para presidir o COFEN. Em doze meses
essa diretoria conseguiu organizar o COFEN e instalar os conselhos regionais em
vinte estados, considerado fato inédito na história dos conselhos. Só não o
fizeram em estados e territórios que, à época, não contavam com profissionais
em número suficiente.
O que se pode afirmar é que, incontestavelmente, Dona Maria Rosa serviu bem à
causa da enfermagem, com lucidez, coragem, inteligência e inesgotável
capacidade de trabalho de que era possuidora. Sabia, como ninguém, expressar
seu pensamento, com clareza e em seqüência lógica, e dominava a suprema arte de
saber ir direto ao ponto essencial, de forma concisa e sem se perder em
divagações. Essa rara capacidade, aliada à sua competência profissional,
explicava a confiança e o respeito que havia conquistado, bem como a projeção
alcançada no cenário nacional e internacional e nos meios universitários. Era
considerada pessoa de "notório saber" e, por isso foi chamada, inúmeras vezes,
pelos órgãos especializados dos governos, federal e estadual, e pelas agências
internacionais como a Organização Mundial da Saúde e a Organização Panamericana
de Saúde para elaborar estudos, emitir pareceres e integrar comissões e grupos
de trabalho. Também representou o governo brasileiro na Organização
Internacional do Trabalho, por ocasião da discussão e aprovação da Convenção
no. 149, sobre condições de emprego, trabalho e de vida do pessoal de
enfermagem, em 1976 e 1978. Recebeu o "Prêmio de Realização no campo da
Educação", concedido pela Associação de Ex-alunos da Divisão de Enfermagem, do
Teachers College, Universidade Columbia, em 1968, entre outras inúmeras
consagrações profissionais.
Aposentou-se da Escola de Enfermagem da USP, em 1978, após quase 24 anos de
intensas e extensas atividades. Nem por isso deixou de colaborar com a sua
Escola. Como fazia antes da aposentadoria, continuou a revisar inúmeras teses e
monografias de docentes e alunos e foi incansável na correção e revisão de
trabalhos para publicação, em especial, como parte de sua participação no
Conselho Editorial da Revista dessa Escola. Essa revista foi criada por ela, em
seu mandato, como Diretora e a manteve com encorajamento constante, incentivo e
estímulo aos docentes e alunos para que escrevessem para fins de publicação.
Antes de finalizar sua saudação à Enfermeira do Ano, Clarice Ferrarini relatou
um pouco do grande ser humano que era Dona Maria Rosa, contando sobre o dia de
Natal, quando ambas estavam em Nova York, e ela sentia o chão frio e as
vidraças chorosas e longe de casa, não escutava o farfalhar dos papeis
envolvendo presentes. E Dona Maria Rosa ofertou-lhe um par de meias de lã que
ela mesma havia feito. Neste gesto simples, ela revelava um traço de mulher e
da alma que irradiava um amor sensível e profundo.
Embora comovesse os que a cercavam com esses gestos simples e maternais, a
acolhida calorosa que dava às pessoas, em geral, ex-alunas que a visitavam,
raramente se deixava dominar por uma emoção. Mas, um dia, ela confessou ter-se
comovido apenas duas vezes em sua carreira como diretora: uma vez quando alunos
da pós-graduação, da turma de 1964, se cotizaram e ofertaram para o refeitório
da EEUSP um bonito crucifixo, após a missa de aniversário da Escola, local onde
se encontra até hoje. Na época, ela reconheceu que não havia, de fato, nenhum
sinal ou objeto religioso dentro da Escola; depois, emocionou-se em sua
despedida na aposentadoria, quando uma docente lhe fez uma saudação relatando o
significado de sua presença na Escola e como ela havia moldado a personalidade
de cada um, docentes e alunos, com seu exemplo, sua dedicação, sua lucidez,
clarividência, sabedoria e, sobretudo, sua liderança segura e visionária.
Mas, é também no agradecimento(6) da própria Dona Maria Rosa que se pode ver a
dimensão da grandeza desta mulher, líder por natureza, enfermeira por vocação.
Disse ela que a estrada que trilhou no exercício da profissão pareceu-lhe suave
e fácil de percorrer. "A formação do estudante, tanto quanto a assistência ao
paciente, é tarefa que satisfaz; observar o desabrochar do jovem, sentir o seu
progresso, acompanhar o seu desenvolvimento compensam largamente o esforço
dispendido". Em sua simplicidade afirmava que teve dificuldades sim, mas que
apenas tentou defender a profissão, fazê-la compreendida e reconhecido o seu
valor. Aí, sim, reconheceu ela, os obstáculos tornaram longo o caminho e penosa
a jornada. Afirmou que a tenacidade parecia ser a única credencial para merecer
o título de Enfermeira do Ano que lhe era outorgado. Ela mesma explicou que
tenacidade era o que nos levava a prever, enfrentar, retroceder, calcular,
procurar apoio, contornar ou remover e, finalmente, ultrapassar as pedras do
caminho. Hoje, ao rever os longos e árduos caminhos percorridos pela
Enfermagem, vemos como Dona Maria Rosa soube, de fato, conjugar todos aqueles
verbos com verdadeira maestria para enfrentar as dificuldades e superá-las. Há
testemunhos de enfermeiras sobre doação de somas respeitáveis, feitas por ela
de forma totalmente anônima, para pagamento à gráfica para impressão da Revista
Brasileira de Enfermagem e sua distribuição aos associados. Épocas heróicas
eram aquelas, e que não vão assim tão longe.
Em dezembro de 1988, ao completar 80 bem vividos anos, Dona Maria Rosa foi
presenteada com um livro contendo depoimentos e cartas assinados pelos amigos,
colegas, ex-alunos, docentes e admiradores desta notável mulher. A idéia
inicial era que o livro contivesse 80 cartas, porém ela havia granjeado muito
mais que isso. Todos que a conheceram quiseram dar seu testemunho de respeito,
amizade, gratidão e admiração por Dona Maria Rosa. Mesmo do exterior chegaram
várias cartas. Refere Secaf(7) que a falta de sistematização dos depoimentos
fez com que houvesse no referido livro diversidade de enfoques, fatos
históricos e estóricos da enfermagem e da Escola de Enfermagem, além de dados e
qualificações da homenageada. Os que tiveram acesso a esse livro concordarão
com essa autora de que cada relato, obtido por escrito, seguido da
identificação do depoente entre aqueles que, de alguma forma compartilharam de
sua trajetória, permite constatar, em Dona Maria Rosa, o exemplo marcante de
simplicidade na grandeza dessa líder da enfermagem brasileira.
Ela deixou como legado explicito, em seu discurso de agradecimento, para todos
os enfermeiros, o seu lema e característica - a tenacidade - para que nós, os
profissionais, desta e de futuras gerações, pudéssemos sobreviver em meio a
esse mundo globalizado, conturbado e competitivo como o de hoje e levar avante,
com orgulho, determinação e muita ousadia, a bandeira da profissão desfraldada
por pioneiras do calibre de Dona Maria Rosa.
E que Deus a tenha em paz no esplendor de Sua Glória!
A mão que nunca falta8
Guilherme de Almeida
Podem faltar em nossa vida, um dia,
A mão do amor materno, que abençoa,
E a mão do amor-amor, que acaricia.
Mas, resta sempre a mão paciente e boa
De alguém, que baixa desapercebida:
- a mão que colhe a lágrima dolente,
- a mão que estanca o sangue da ferida,
- a mão que enxuga o suor da fronte ardente,
- a mão que toma a pulsação da vida ....
Podem faltar em nossa vida, um dia,
A mão do amor materno, que abençoa,
E a mão do amor-amor, que acaricia.
Mas, resta sempre a mão paciente e boa,
A mão útil de uma íntima estrangeira:
A mão piedosa e sábia da enfermeira.
São Paulo, maio de 1947