A família cuidando do ser humano com câncer e sentido a experiência
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A família cuidando do ser humano com câncer e sentido a experiência
The family experiencing and caring for a family member suffering from cancer
La familia que siente la experiencia de cuidar al ser humano con cáncer
Valquíria de Lourdes Machado Bielemann
Professora Adjunto da Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia da UFPel - RS.
Mestre em Assistência de Enfermagem. Membro do Núcleo de Estudo e Pesquisa em
Enfermagem - NEPEn da FEO e do Laboratório de Estudo e Prática Interdisciplinar
de Família e Saúde -LEIFAMS
1 Introdução
A família como unidade primária de cuidado, é um espaço social, no qual seus
membros interagem, trocam informações e, ao identificarem problemas de saúde,
apóiam-se mutuamente e envidam esforços na busca de soluções. A família é o
grupo social dinâmico, cuja concepção varia de acordo com a cultura e com o
momento histórico, econômico e social. Assim, tanto a composição do grupo
familiar quanto a sua importância na vida dos seus membros e o papel de cada um
dentro deste grupo, varia de acordo com padrões da sociedade no qual está
inserido e de acordo com a cultura familiar. Chamamos de cultura familiar
aquela que é própria da família, a qual envolve um conjunto de princípios
implícitos e explícitos, que orientam os indivíduos na sua concepção de mundo,
na maneira de senti-lo, experienciá-lo e comportar-se nele(1). Equivale dizer,
que cada família possui seus próprios códigos de comportamento e comunicação,
com significações simbólicas inerentes dessa cultura, que direciona as ações e
os relacionamentos interpessoais dos seus membros, tanto dentro do grupo
familiar, como fora dele.
Assim, a família é uma fração representativa da sociedade, cabe a ela
contribuir na formação da cidadania dos seus integrantes, fornece-lhes
estrutura, alimentação, sentimentos de afetividade, de pertencer ao grupo,
valores culturais, éticos e morais. No seu interior o ser humano desenvolve a
capacidade de amar e ser amado, sentir-se útil, amparado, valorizado e exerce
direitos e deveres na busca de ser cidadão(2).
A coordenadora do Departamento de Atenção Básica do Ministério de Saúde fala
sobre o Programa de Saúde da Família-PSF e destaca que este se alicerça na
concepção teórica em que a família é vista como o espaço nuclear da agregação
de pessoas, inseridas em um contexto social, devendo ser objeto prioritário e
de focalização da atenção à saúde(3).
No meu entendimento família pode ser denominada de saudável ou eficaz, quando
as pessoas se inter-relacionam, compreendem-se como família, interagem de forma
aberta e flexível entre si e com outros grupos sociais, compartilham
experiências e emoções, onde cada membro é respeitado em sua singularidade,
desfruta a liberdade de expor pensamentos e trocar idéias com seu grupo,
experimenta a satisfação de perceber que seu referencial de mundo é
compreendido, podendo ser um suporte de apoio, de unidade e de bem estar
familiar frente às diferentes situações de vida. Outros autores, também, se
posicionam dentro desta vertente e entre outras considerações, ressaltam que a
família como suporte de ajuda, contribui para a recuperação do paciente(4).
Ao discutir o entendimento de professores da graduação em enfermagem sobre o
significado da família para o cuidado e o cuidado à família destaca-se que esta
aparece como um sistema aberto para trocas, composto por pessoas que interatuam
e representa mais do que a soma das características individuais de seus
membros. É o primeiro centro de referência de convivência social, fornecendo
suporte para que seus integrantes possam conviver em sociedade(5). Porém, nem
sempre é o lugar que supre as necessidades bio-psico-sociais dos seus
integrantes.
Permito-me, aqui, descortinar uma parcela da história de uma família que teve
um dos seus membros acometido por câncer e que se encontrava em fase terminal,
delineio alguns pontos que considero importantes para compreender o
funcionamento da família que vivenciou uma fase de difícil enfrentamento. Quero
apresentá-la com toda sua dimensão humana e existencial com seu jeito de ser e
de cuidar do seu ente querido. Nestas duas dimensões, apresentou
particularidades, diferenças individuais e um ritmo próprio para lidar com as
especificidades do seu doente.
Assim, pretendo pontuar vários aspectos relacionados ao cuidado a esse ser
humano doente, que emergem desta experiência de adoecer em família. Para tanto,
faço um desdobramento do estudo com uma família do Rio Grande do Sul (RS), e
apresento um fragmento da história em que esta mobilizou-se para poder ajudar e
apoiar seu integrante enfermo e, ainda, destaco os sentimentos apresentados
pelos familiares ao se depararem com a situação de doença no seu meio(6).
2 Apresentando o caminho e os sujeitos da história
O estudo surge de uma pesquisa de campo, com abordagem qualitativa, guiada pelo
referencial do Interacionismo Simbólico. Teve como sujeito uma família com sete
integrantes. Foi desenvolvido em um hospital geral de grande porte e no
domicilio dos familiares, em uma cidade do RS. A coleta de dados foi
desenvolvida durante sete meses, através da observação participante(7), sendo
que neste processo lançou-se mão da observação, participação e reflexão (OPR),
para dirigir a investigação. Esta técnica permitiu-me uma relação direta com os
sujeitos da história. Para melhor aprofundar as questões de investigação
utilizei-me de entrevistas abertas e de um diário de campo.
Alguns elementos da etnociência foram utilizados para classificar e analisar os
dados(8). Este método valoriza o significado cognitivo e a visão de mundo
contidos na linguagem das pessoas. Buscou-se, na linguagem, descobrir e
esclarecer conhecimentos cognitivos do ponto de vista das pessoas pesquisadas,
ou seja, sua visão interior ou visão emica, emergidas da comunicação falada da
família. Também, neste método, utilizou-se da visão etica, que corresponde à
visão da pesquisadora sobre o observado e à interpretação do fenômeno que está
sob investigação. Cuidadosamente, observou-se, gravaram-se e validaram-se as
informações do paciente e dos familiares.
Apresento sinteticamente os componentes da família que foram os personagens
desta investigação: Senhor Lauro ser humano com câncer de pulmão, tinha 58
anos, cor branca estatura mediana, cabelos e olhos castanhos claros,
extrovertido e bem humorado, funcionário público aposentado com um pouco mais
de dois salários mínimos, com primário incompleto, católico. O adoecer foi
evidenciado quando começou escarrar sangue, e no final do ano de 1993 foi
realizado o diagnóstico de câncer de pulmão direito em fase avançada, vindo a
falecer no ano de 1996. Desde a primeira internação fez questão de saber o
diagnóstico, a família, pressionada, revelou. Era casado com dona Carmem na
época que a conheci também tinha 58 anos, branca, magra, estatura mediana,
cabelos e olhos castanhos escuros, aposentada com um salário mínimo, como
freqüentou muito pouco a escola primária só sabia assinar seu nome. Do
casamento com senhor Lauro nasceram três filhas, Ana, de 34 anos, casada e mãe
de um menino com 9 anos; é branca, tinha os cabelos castanhos claros, usava
óculos com fortes lentes para miopia, escolaridade segundo grau, vista pelos
parentes como uma pessoa afetiva, frágil e emotiva, avessa à tomada de
decisões; Marlene, com 30 anos, branca, cabelos lisos, na altura do pescoço,
não tinha o primeiro grau completo, logo cedo começou a trabalhar, aos quatorze
anos, na percepção da família é uma pessoa forte, realista e que enfrenta as
situações de crise gerada pela doença do pai, casada com Osmar há quinze, ele
tinha 41 anos, sua disponibilidade para apoiar o sogro é reconhecida pela
família, possuem um filho de 11 anos; a terceira filha é Márcia, de 27 anos,
magra, branca estatura mediana, cabelos longos, castanhos claros, levemente
ondulados, com segundo grau, ex-comerciária, também casada, porém sem filhos, é
tida como uma pessoa de temperamento quieto, mas tem posições definidas.
Sheila, irmã caçula do paciente, morena clara magra altura em torno de 1,6m
cabelos castanhos escuros, uma pessoa comunicativa e interativa, casada e tem
um casal de filhos. É auxiliar de enfermagem e trabalha no hospital onde o
senhor Lauro foi hospitalizado . Pessoa que é ouvida e participa das decisões
da família.
Os princípios éticos contidos na resolução do CNS 196/96 acerca de pesquisa com
seres humanos foram previstos e seguidos, obteve-se o consentimento dos
familiares para realizar a pesquisa, quando foram fornecidas informações sobre
o estudo. A cada integrante da família foram conferidos nomes fictícios a fim
de preversar-lhes a identidade.
3 Percebendo as formas de cuidado da família
Hoje, ao resgatar minhas percepções sobre a família do senhor Lauro, vejo que à
frente de uma situação da vida humana, como uma enfermidade grave em um dos
seus integrantes, o sofrimento, o desespero, o medo e a impotência, estão
presentes no seu meio. Fica claro que a experiência de câncer no seu interior é
um momento difícil, tanto para o ser acometido como para o grupo familiar. Por
isso, na busca de manter-se saudável, age, reage e interage internamente e com
o contexto social em que vive, para poder, assim, ajudar e apoiar seu familiar
doente. Considero que esse comportamento, como uma das formas de cuidado que a
família desenvolve para garantir a proteção do seu ente querido enfermo.
Possuindo um referencial para perceber, sentir e analisar os fatos, a família
funciona, dividindo, muitas vezes, as crises provenientes dos eventos que
acontecem no desenrolar dos acontecimentos. Ao mesmo tempo, é neste momento de
conflito, uma fonte de apoio aos seus membros, mantendo a compreensão e o
respeito, valorizando-se e preservando a união familiar.
Nesta história observa-se que, a doença não só envolve a pessoa doente mas todo
o grupo familiar ou pelo menos, é o que transparece neste episódio vivido pela
família que, desde o primeiro instante, volta-se para o paciente, indo em sua
direção, lhe estende a mão e articula-se para poder ajudá-lo. A partir daí
começa a conviver com uma situação em que o paciente passa a ser foco de
atenção e o funcionamento desta família que passa a girar em torno do adoecer
do senhor Lauro. Esta ligação de apoio e doação acontece, principalmente, com
os familiares que tem com ele maiores laços afetivos. Não quero aqui dizer, que
esta família tenha vivido exclusivamente para o senhor Lauro, já que ela tinha
existência própria, o que lhe conferia uma identidade, mas sem dúvida, fica
claro que este teve que abdicar de algumas rotinas no seu modo de vida para
poder dedicar-se ao doente
Cuidando o senhor Lauro os familiares o apóiam e, apoiam-se mutuamente
estabelecendo um modo de agir, fazendo face a um papel que, indiscutivelmente,
também lhes cabe. Dentre os cuidados estabelecidos pelos familiares, várias
formas de apoio sobressaem e o estar com o familiar doente é de grande
relevância. Nesta ótica, encontra-se o estar junto, o estar presente e o estar
perto.
O estar junto corresponde ao permanecer dos familiares ao lado do doente e em
ele sentindo a presença. Tem um componente afetivo muito forte, que pode ser
traduzido por uma grande dose de dedicação, de amor e de carinho da família
pelo senhor Lauro: ...a gente está sempre ao lado dele... Dá um tempinho, a
gente tá aí, tá ao lado dele... Quando ele enxerga a gente, bota a boca nas
orelhas, de alegria (Marlene) ...o principal apoio que a gente dá, que a
família dá é o carinho; é tá ali junto com ele e ele vendo. Isto é importante.
(Sheila)
No estar presente existe um estar alternado das pessoas que estão envolvidas e
que se propõem a dar apoio. Ocorre com freqüência, tem o objetivo de não deixar
o doente sozinho.
O estar perto significa ficar nas proximidades do local onde o doente se
encontra, conforme é salientado na fala da filha. Ao dizer que nesse momento
não quer se distanciar revela o desejo de ficar perto do pai e o reconhecimento
de que ele precisa de sua ajuda:
Meu marido recebeu uma proposta para trabalhar numa estância... já
disse a ele, leve sua mãe para cozinhar, pois vou ficar toda semana
aqui com meu pai. Só no final de semana irei... Ele precisa da gente.
(Márcia)
Alguns autores fazem considerações sobre o acompanhante familiar do paciente
adulto internado, no sentido de que, mesmo não sabendo o papel que lhe cabe, de
uma maneira geral, o que leva o familiar a estar com o paciente é o desejo de
dar apoio, de solidariedade, de interesse, contribuindo para que as
necessidades deste sejam atendidas. Ao discutir o tema estar junto, entre
outros motivos, o que leva a família a esta forma de participação é a
afetividade pelo enfermo, uma demonstração de atenção, de amizade, de apoio e
de confiança(9). Neste sentido reconhece-se como fonte de apoio a presença da
família com o doente. Mesmo que o paciente queira ficar sozinho, ficar por
perto é, também, uma forma de apoio, serve para ofertar conforto e é um ato de
amor(10).
Observou-se outras maneiras de cuidados desenvolvidos pela família, e entre
estas destaco o fazer coisas por, come parao senhor Lauro, com a finalidade de
dar apoio, visando beneficiá-lo.
O fazer por ele aparece no discurso da irmã quando diz: a gente corre, o que
tem um sentido subjetivo, pois é um fazer afetivo e não físico. Não significa
substituí-lo nas atividades, mas uma disposição para ajudar: Eu disse: Olha,
mano, a gente corre com maior amor e carinho e não é dizendo bobagem que tu
vais colaborar, nos deixa louca! (Sheila)
Mas o fazer, que envolve uma ação física, no sentido de realizar por ele o que
sozinho não poderia executar, também transparece:A Sheila fez soro nele, em
casa, e medicamento. Agora ele está melhor. (dona Carmem)
O fazer com ele denota a idéia de desenvolvimento de atividades conjuntas. Isto
se manifesta nas colocações do senhor Lauro e da esposa, ao citarem a ajuda
prestada pelo genro. Entendo que o fato de o genro possuir carro facilitou este
tipo de fazer, mas é interessante assinalar que havia uma disposição do mesmo
para este tipo de apoio: Me trouxe pra baixar...(senhor Lauro-falando do
genro). Meu genro é o único que tem carro... corre na volta dele... é de um
lado pra outro com ele...(dona Carmem)
No que concerne aofazer para ele, pagar as despesas e contribuir
financeiramente são formas de apoio. São responsabilidades assumidas pelo genro
em favor do paciente, portanto, para ele: Até quem está levando a casa de Novo
Mundo é meu genro... é ele quem paga a casa. (dona Carmem).
...a gente dá... o que nós temos de dinheiro, o que ganho está tudo aqui, não
tem dinheiro para casa, o que posso, está aqui. O que a gente pode, ajuda.
(Osmar)
Outra forma, desenvolvida para ele, é ofazer e cuidar da alimentação. Foi
possível perceber que este papel, na maioria das vezes, coube à esposa: Faço a
comida pro velho... passo tudo no liquidificador... é só comida pastosa que ele
come.(dona Carmem)
Neste cenário de cuidados, entre as várias formas de conceber o apoio, também
foram considerados: o cuidar da casa, substituindo a esposa que ficou no
hospital, telefonar para saber notícias - correspondendo uma demonstração de
interesse e de transmitir confiança: Nos ajuda muito. Agora mesmo, minha filha,
que mora em Alegria, tá agora em Novo Mundo, cuidando da casa.(dona Carmem).
Todos sabem e se interessam por ele, vivem telefonando.(dona Carmem)...Márcia e
a Marlene, se têm que chorar, é nas costas dele. Na frente dele dão risada,
mostram-se confiantes.(Sheila)
Ao incursionar pelo caminho da doença, a família Flores não tem a certeza
absoluta do que pode ocorrer, mas com seu jeito próprio de ser e com a certeza
de quem quer acertar, lança-se de corpo e alma para cuidar o seu enfermo. É
inegável que, na incerteza do que vai acontecer amanhã, ela vive o presente com
medo do futuro. Mesmo assim, aos poucos, vai se adaptando, criando novas formas
de funcionar, para enfrentar as adversidades determinadas por esta nova
condição. A disposição de família em dar cuidado nesta hora, que se pode
considerar crítico, tem uma importantíssima função, à medida que mostra ao
senhor Lauro, que não está sozinho para enfrentar as dificuldades e as
necessidades impostas pela doença. Ao assumir a atitude de cuidado, apoiando o
senhor Lauro, a família, além de mudar a sua rotina funcional, enfrentou
dificuldades financeiras, tudo em função do atender bem o paciente. Acredito
que este cuidado está intrinsecamente ligado à necessidade de ofertar
segurança, proteção e uma demonstração de afetividade ao familiar enfermo.
Para ajudar o paciente, os familiares estão dispostos a fazer qualquer coisa
que venha a favorecê-lo, porque se sentem responsáveis e solidários pelo mesmo.
Necessário se faz, entretanto, que satisfaçam suas próprias necessidades e
permitam que o paciente assuma a sua própria responsabilidade. Na mesma linha
de pensamento, vejo que na relação da família com o paciente, existe a
necessidade desta dar apoio ao doente, chamo a atenção para que, ao fazê-lo,
não o substitua naquilo que ele pode realizar por si próprio(11). Assim, a
ajuda deve ser vista de forma positiva quando oportuniza o crescimento do
outro, favorecendo o desenvolvimento de suas potencialidade, só assim o ser
cuidado torna-se uma pessoa ativa e não mero objeto de cuidado, devendo ser
colaborador neste processo e, também responsável pelos resultados(12).
É oportuno colocar que o apoio familiar se faz emergente, quando um dos seus
membros encontra-se com uma doença grave e, quando existe uma disposição para
tal realização, adquire significado de um fazer diversificado tão
imprescindível nesta situação.
Outro aspecto que me despertou a atenção nesta história é o de que, entre
alterações significativas que os familiares fazem nas suas vidas, assumir novos
papéis para ajudar é uma delas, entre outras. Esta mudança de papel fica
patente na fala da esposa, quando destaca as novas funções assumidas pela
cunhada e pela filha:
...a Sheila que fazia o soro no horário das oito da manhã, às
dezesseis e as vinte, também ensinou a Márcia, mas, muitas vezes, ela
vinha antes pra ver se ela fazia direito e se tinha aprendido bem e
fazia de maneira correta.(dona Carmem)
Se retrocedermos ao início deste relato, nota-se, ao apresentar a família, que
a Sheila foi identificada como auxiliar de enfermagem e a Márcia como ex-
comerciária e dona de casa. Segundo a citação, a Sheila emerge na figura
instrutora e supervisora, enquanto à sobrinha coube o papel de aprendiz.
Evidencia-se que a vontade de dar apoio leva os familiares a adotarem para si
papéis antes nunca desempenhados, visando atender às necessidades do paciente,
e, assim, melhorando sua qualidade de vida. Estes novos papéis assumidos pelos
familiares demarcam outras atividades desenvolvidas pelos mesmos as quais são
reconhecidas e aceitas pela família. A família é uma unidade intra-agente onde
as pessoas assumem uma ou variadas posições para as quais podem ser atribuídas
diversidades de papéis legitimados e assegurados pelo grupo familiar(13).
Compreendo que, frente a uma situação de conflito, nem todos as pessoas a
experienciam do mesmo jeito. No que diz respeito à doença, enquanto umas
conseguem olhá-la como uma realidade que tem de ser enfrentada, outras sentem
dificuldades por não terem psicologicamente a mesma capacidade de
enfrentamento. Esta forma não uniforme de as pessoas vivenciarem a realidade
dos fatos foi observada nesta família, quando constatei que alguns componentes
deste grupo, que se destacaram devido ao maior envolvimento com a situação em
si e à capacidade de resolução dos problemas apresentados, dentro e fora desta,
como aconteceu com Sheila, Osmar e Marlene.
Quero ressaltar que oprocesso de comunicaçãofamiliar iniciava, principalmente,
pela Sheila - cujo trabalhar no setor da saúde favorecia a busca e a obtenção
de informações- passando pelo Osmar e pela Marlene. Os demais familiares,
também foram participantes ativos deste processo, entretanto as opiniões dos
primeiros na tomada de decisões eram bastante consideradas. Eram estes os que
mais buscavam informações, avaliando-as e repassando-as paulatinamente, até que
a verdade integral viesse à tona. Parece-me que foi um modo que a família
encontrou para proteger os seus, dando suporte para que tivessem tempo de
interpretarem e absorverem as informações com menor conflito. Mesmo naquelas
que referiam bom relacionamento, alguns assuntos desagradáveis não eram
abordados no mesmo instante para todo o grupo familiar, só sendo revelados em
uma hora considerada oportuna(14). Seria uma maneira que a família encontrou
para enfrentar conflitos advindos de notícias desagradáveis.
Cuidando do ser humano doente os componentes da família do senhor Lauro
apresentam variadas formas de sentir a situação. Quando os sentimentos afloram
no discurso das pessoas, é possível entender a essência contida neles e, a
partir daí, compreender quem os vivencia. Com a expressão dos sentimentos é que
se descortina o jeito de ser de cada um, a percepção que demonstra sobre uma
determinada situação e como se relaciona frente à realidade. A compreensão dos
sentimentos, porém, não se esgota o momento em que são desvelados, visto que,
sendo algo subjetivo, não têm um corpo físico, possível de ser tocado e
visualizado. Compõem um espaço invisível. Por isso, somente aqueles que os
adquirem, nos instantes de viver a vida, conseguem senti-los em toda sua
totalidade. Tais, como as ondas do mar, não são permanentes, são temporais e
sucessivos e mesmo assim, devem ser considerados, para poder-se entender e
explicar melhor a realidade.
Pontuo que o ser humano em primeiro lugar usa os sentidos para mover-se e
vivenciar o mundo. É através do sentir que expressamos nossas emoções(12).
Assim, reconheço que:
"Os sentimentos são reações únicas que alguém apresenta diante de uma
situação, evento ou de uma outra pessoa, e tanto podem ser agradáveis
quanto desagradáveis, são de natureza emocional, e não racional..."
(15:48).
O sentir desta família albergamúltiplos sentimentos, que foram mobilizados na
convivência com o adoecer do senhor Lauro, sendo gerados nas relações dentro e
fora da família. Quando revelados, traduzem as emoções do grupo, ficando
evidenciada a maneira com que sentem a situação que estão experienciando.
O sofrimentoé um sentimento que, sempre, se sobressaiu nos depoimentos da
família. Em alguns momentos, mostrou-se como um indicador de um sofrimento
psicológico, da interioridade do ser e apontou situações do presente: Não
agüento mais um mês desse jeito.(Ana). Só quem está passando por isso. Quando é
nos outros é um sentimento, quando é família da gente ou pessoa próxima é outro
sentimento diferente, a gente sofre...(Márcia). Tenho sofrido. É que não falo,
agüento. Tem gente que é pior, pois dor quase não sinto.(Lauro)
Se de um lado fez-se presente o sofrimento psicológico, do outro ocorreu uma
expectativa futura de um sofrer, em que senti-lo, envolvia sofrimento físico:
...o que a gente tá vendo, ele vai sofrer muito, ele vai penar muito em cima de
uma cama... Acho que horas piores tão por vir. Sempre achei... Ah! eu acho...
(Marlene e Sheila)
Vê-se que, transcendendo a situação concreta que é a doença à família cria um
mundo cheio de significações, fazendo-a vivenciar o presente com sofrimento e
projetando-o para o futuro.
Uma condição de vulnerabilidade, que faz o homem perceber que é um ser frágil e
desamparado diante das contingências da vida, é experienciar uma situação de
doença com perspectiva de morte iminente, sua ou de ente querido. Nesta esfera
reconhece-se que sentimentos como desespero, medoe impotência brotam. E, a
família do senhor Lauro manifestou-os ao depara-se com este acontecimento
conflitante que a afetou emocionalmente: Estamos desesperados, deu alta e não
se pode fazer nada ...e a gente fica desesperado, pois não quer perder.(Sheila
e Márcia).Todos têm medo do pós. Eu mesma já tive essa experiência com meu
sogro, que também teve câncer, fez cirurgia e não saiu mais da UTI.(Sheila).Não
se sabe o que fazer! É que não tem o que fazer mesmo, tem que ir levando.(dona
Carmem).
Na esteira dos sentimentos surge, também, a compaixão, um sentir expresso na
fala da irmã e que denota toda gama de emoções que a doença impõe:Dá dó, ele me
disse: Mana, quero ficar em casa, estou cansado de hospital.(Sheila).
Cada pessoa tem seus próprios sentimentos, que não se pode dar ou pedir
emprestados. Pode-se, isto sim, adquiri-los e senti-los na vivência de cada um,
é o que percebemos desta experiência familiar.
Esta trilha, mesclada de sofrimento, desespero, medo, impotência e compaixão,
permitem descortinar uma parcela do sentir desta família e perpassar a idéia de
como os sujeitos desta história estão envolvidos emocionalmente. Fica claro que
experienciar o câncer é um momento difícil, tanto para o paciente como para os
familiares, sendo comum que a presença desta enfermidade carreie sentimentos
dolorosos e negativos, como os que transparecem neste estudo. Até porque a
família está lidando com uma situação cheia de incertezas e com a expectativa
de morte. É natural que a família do doente com câncer tenha esses sentimentos,
mas é importante verbalizá-los, para poder minimizar o estresse que a
enfermidade acarreta. A livre expressão dos sentimentos no seio familiar é de
fundamental importância para manter um bom padrão de comunicação e contribui
para a qualidade de vida de todos, visto que o câncer é uma experiência
extremamente delicada e emocional(10).
Admito que existe uma diversidade de sentimentos acompanhando a família na
convivência com o ser canceroso, e reconheço que, tanto familiares como
pacientes estão sujeitos a passarem pelos mesmos conflitos e, portanto, podem
experienciar os mesmos sentimentos. Entre vários sentimentos destacados por
diversos autores, ressalto: "o sofrimento psicológico, o medo do sofrimento
físico, medo da cirurgia e da morte, o desespero e a impotência diante da
situação"(16,17). Destaco que, quanto maior for o vínculo familiar, maior será
a sobrecarga emocional envolvendo o grupo.
Em vista do apresentado, reconheço uma verdadeira expressão significativa de
sentimentos: "os sentimentos acompanham-nos, estão sempre presentes em nosso
dia-a-dia, permeiam nossas vivências. Eles permitem que nos sintamos vivos"(18:
11).
Aproveito a discussão para colocar a letra da música Sentimento do cantor
gaúcho Armandinho(19) pois acredito que contribuirá nas reflexões:
Sentimento você não sabe o que se passa aqui por dentro
Sentimento para mim é documento, de alguém que tem
muito amor para dar
Sentimento
Tá no reggae, tá no amor pelo instrumento.
Por favor, vê se liberte o sentimento
Porque eu não quero ver teu mundo sem amor
Eu, quando te encontrar quero falar de tudo que eu sinto.
Sei que posso me perder, entrar nesse teu labirinto
Você me parou pedindo meu amor
Mandou eu encostar, você que me encostou.
Pediu o documento mais só tenho sentimento, e eu dou.
Eu vou ti subornar com meu amor...
4 Considerações
O comportamento da família era influenciado tanto pela história construída no
seu interior, como também, no contexto em que vivia. Ao envolver-se no processo
saúde e doença tinha suas características próprias de pensar e agir,
influenciados pela interpretação da realidade dos acontecimentos, que
direcionava suas ações de cuidado ao familiar doente. Era uma unidade com
necessidades e problemas que variavam de acordo com a situação experienciada.
Frente à doença de um dos seus membros, a família passou por vários momentos de
enfrentamento, mas foi capaz de reestruturar-se face à nova realidade. Buscou
no seu próprio seio e nas relações com o meio externo, apoio para o familiar
doente e também para si.
Na minha opinião esta família era saudável, pois tinha no seu interior
elementos importantes do existir humano, como afetividade, carinho,
compreensão, aceitação das diferenças individuais e entendimento entre seus
membros, caracterizado pela atenção e proteção mútua. Funcionava com dinamismo
e flexibilidade e a comunicação fluía efetivamente, tendo em vista que havia
troca de informações, mesmo que em alguns momentos a troca não ocorresse
simultaneamente a todo grupo. Frente à doença, observou-se que existia um
consenso entre seus membros em relação à definição de papéis, ou seja, os
familiares adequaram-se às mudanças necessárias diante dos acontecimentos no
processo de viver. Todos estes aspectos favoreciam para que discussões dos
assuntos e decisões sobre os mesmos ocorressem no seio familiar. De modo que a
família saudável funciona como equipe, enquanto cada componente mantém sua
individualidade(10).
Esta história familiar fez-me perceber, o quanto é importante o sentir no ser
humano, pois, a partir dele, este reage ao mundo a sua volta, desvelando o
quanto são dolorosos ou prazerosos os acontecimentos da vida.. Em outras
palavras, são os sentimentos que levam o homem a sentir o sofrer ou a
felicidade. São eles que sinalizam que existe o existir no viver humano. É
através deles que o ser humano tem emoções que o impele e o lança para sonhos e
projetos de vida, impulsionando-o para frente, em direção a novas experiências,
confiante. Ao passo que há outros sentimentos, que lançam a pessoa no mundo dos
conflitos e abalam a sua confiança e o impedem de ser um viandante que usa a
caminhada na busca da felicidade.
Tenho a esperança que o estudo apresentado seja o início de novos
questionamentos e concepções dentro da profissão de enfermagem, e faça estes
profissionais olharem para dentro de si e reconhecer que devem apoiar o
paciente e a sua família como uma unidade que precisa de sua ajuda; entretanto,
ao fazê-lo, deve ver as necessidades individuais dos seus componentes,
respeitando a vulnerabilidade e o estado emocional de cada um. Desejo, ainda,
que este venha favorecer ao entendimento sobre a família, os problemas
vivenciados por esta, identificando suas preocupações e compartilhando desse
momento. Favorecendo, assim, a reflexão da enfermeira, do quanto é importante
compreender que no momento de crise, familiares e paciente apoiando-se
mutuamente, podem se fortalecer emocionalmente.