O cuidado no "resguardo": as vivências de crenças e tabus por um grupo de
puérpera
PESQUISA/RESEARCH/INVESTIGACIÓN
O cuidado no "resguardo": as vivências de crenças e tabus por um grupo de
puérpera
Care during postpartum "confinement": beliefs and taboos experienced by a group
of women soon after childbirth
Los cuidados en la "cuarentena": la vivencia de creencias y tabúes por un grupo
de puérperas
Ana Márcia Spanó NakanoI; Ana Carolina BelezaII; Flávia Azevedo GomesIII;
Fabiana Villela MamedeIII
IEnfermeira, Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil
e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de
São Paulo, E-mail: nakano@eerp.usp.br_
IIFisioterapeuta, Mestranda do Programa de Pós-Graduação Enfermagem em Saúde
Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
IIIEnfermeira, Professora Assistente do Departamento de Enfermagem Materno-
Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo
1 Introdução
Existem muitos tabus e crenças relacionados ao ciclo reprodutivo. O período de
resguardo é o que reúne a manifestação de um maior conjuntos de crenças e
tabus, fundamentando-se em interpretações de ordem natural, sobrenatural e
social, cujo eixo articulador dirige-se para os possíveis perigos da fase para
a mulher. A fase puerperal denominada de dieta, resguardo, quarentena pelas
mulheres, implica em cuidados e restrições que possibilitem uma boa
recuperação.
Maués(1) estudando as representações das mulheres de Itapuá/Pará sobre os
processos ligados ao ciclo biológico da mulher observa que o período de
resguardo é considerado extremamente perigoso para a mulher, pelo fato dela
estar com o pé na sepultura. A explicação que as pessoas dão para esse tipo de
imaginário é que no dia do parto a sepultura da mulher está aberta e quando se
completam os quarenta dias, ela fecha e, então, a mulher está livre.
Pedroso(2) realizou um estudo com 300 mulheres assistidas em hospitais e
maternidades do município de São Paulo sobre as crenças e tabus relacionados
com a gestação e puerpério, no qual constatou que os cuidados realizados pelas
mulheres baseiam-se em crenças consideradas maléficas ou benéficas a saúde.
Também, outro estudo sobre o conhecimento e a opinião de 300 puérperas
assistidas em uma Unidade de Amparo Maternal do município de São Paulo sobre
alguns aspectos do puerpério observa dissonâncias no que se refere aos cuidados
dedicados a elas e o preconizado pelo conhecimento científico. Prevalecem as
crenças e procedimentos populares, principalmente no que se refere aos cuidados
de higiene como, por exemplo, lavar a cabeça. Entre as mulheres estudadas o
banho completo tende a ser realizado em média 13 dias após o parto(3).
A crença popular de que o banho é proibitivo, baseia-se na visão das mulheres,
que ao lavar a cabeça, poderia ter suspensão do sangramento (lóquios), morrer
ou ficar louca(2).
Tais construções culturais tiveram importante influência da ciência médica e
fundamentam na construção do corpo feminino dirigido para maternidade. Del
Priore(4) referindo-se à ciência médica, em suas origens, descreve que nela o
pensamento aristotélico permanecera vivo por séculos. Tal pensamento trazia a
idéia de que a mulher bem constituída era aquela que se prestava exclusivamente
à perpetuação da espécie, movida por uma vocação biológica que fazia da madre(o
útero) a forma pela qual era organizada a hereditariedade. Pela dignificação da
procriação, na excelência dos sentimentos maternos é que se evitava as fúrias
da madre. Acreditava-se ainda que o útero tinha comunicação com todas as partes
do corpo, que conseqüentemente estavam sujeitas aos seus insultos,
especialmente se a menstruação não estivesse presente todos os meses. Daí o
medo de ocorrer a suspensão de lóquios no pós-parto.
A mesma autora refere que na medicina de Hipócrates existem 4 humores no corpo
humano, os quais deveriam estar em equilíbrio para se manter saudável. O
excesso de um deles, por exemplo, na mulher o sangue que pára ou sai em
abundância, poderia levar a doenças.
Em pesquisa com comunidade pesqueira do interior da ilha de Santa Catarina
depreendeu-se que a não lavagem da cabeça pelas mulheres no resguardo é em
razão de não ter recaída, o que guarda uma significação de ser a fase puerperal
um período em que a mulher está em convalescença(5).
Pesquisas vêm mostrando que o comportamento das mulheres no pós-parto é
respaldado nas crenças populares as quais envolvem cuidados que visam protegê-
las. Estas incluem práticas como repouso absoluto por tempo prolongado, devendo
a mulher permanecer na cama por semanas, levantando-se somente após esse
período, quando poderá tomar seu primeiro banho com vapor d'água e ervas, ou
mesmo evitar esforços físicos, não pegar peso, não varrer a casa(2,5). Na
pesquisa de Pinelli(3) o período de repouso é relativo, deve ser realizado nos
primeiros 15 dias do resguardo, retornando ao trabalho depois de terminada a
dieta.
Por outro lado, identifica-se, ainda, a existência de várias crenças populares
a respeito da alimentação no período puerperal(2). A abstenção de alimentos
como, carne suína, de peixe, e ovos são realizados sob alegação de riscos de
febre, corrimento, infecção de útero, entre outras, além de que a mulher pode
morrer ou ficar estragada, ou seja, não ter mais filhos. Quanto à ingesta de
frutas, verduras e legumes há restrições de frutas azedas (ácidas) porque
cortam o sangue que vira água, ou porque causam inflamação. O repolho e a
couve-flor podem produzir reações como febre, inflamação e corrimento. A
abóbora e a mandioca, aparecem como responsáveis por pelota no peito e edema.
As recomendações não só incluem os alimentos a serem restringidos, mas também
aqueles que trazem benefícios à mulher nessa fase como carne de galinha sendo o
único alimento bom para a mãe.
A proibição de certas ingestas de alimentos está relacionada ao que se
considera alimentos quentes e frios e que na gama de restrições à mulher na
fase puerperal, também estão as proibições das relações sexuais, tendo como
explicações o risco de arrebentar os pontos, ter hemorragias e infecção vaginal
(3). Caso estas mulheres quebrassem o resguardo, poderiam ficar doentes, com
dores de cabeça ou ainda nervosas.
Em decorrência da amplitude de significações que se reveste à fase puerperal, a
identificação e compreensão de elementos culturais presentes no cotidiano das
puérperas são estrategicamente importantes para serem analisados como
categorias próprias, pois a falta de compreensão dos mesmos tem se configurado
como barreira a interação entre o profissional de saúde e a mulher. Neste
aspecto os padrões culturais que as pessoas utilizam, para interpretar a
doença, são criações sociais, ou seja, são formados a partir de processos de
definição e interpretações construídos intersubjetivamente(6).
Seguindo esse raciocínio, as experiências, as escolhas e as iniciativas se
referem, basicamente, à forma como as pessoas e os grupos sociais assumem a
situação ou nela se situam. Diante disso, configuram-se significados e
desenvolvem-se modos rotineiros de se lidar com a situação apresentada.
O objetivo desse estudo é identificar os significados atribuídos pelas mulheres
acerca do auto-cuidado na fase puerperal sob o referencial teórico da Cultura.
Cultura é um conjunto de comportamentos, saberes e saber fazer, característicos
de um grupo humano sendo estas atividades adquiridas através de um processo de
aprendizagem e transmitidas ao conjunto de seus membros(7).
2 Metodologia
Para o desenvolvimento deste estudo utilizou-se de metodologia de pesquisa
qualitativa tipo estratégica.
Os sujeitos foram 20 puérperas primíparas, que estavam entre o quarto e o
trigésimo dia pós-parto, que compareceram às unidades básicas de saúde do
município de Ribeirão Preto, Estado de São Paulo, para vacinar seus filhos e
realizar o teste do pezinho, fenilcetonúria, e que se dispuseram a prestar
depoimentos sobre suas experiências no pós-parto. Todas estavam amamentando no
momento da entrevista.
Por se tratar de um estudo qualitativo não houve a preocupação em delimitar,
antecipadamente, o número de sujeitos tendo por critério a saturação de dados
(8,9). Realizamos entrevistas solicitando as mulheres que nos falasse sobre sua
experiência de pós-parto. As falas foram gravadas, posteriormente transcritas
para serem analisadas. Utilizou-se da técnica de análise de conteúdo, elegendo
a análise temática(10). Nesse sentido, as falas das depoentes foram
transformadas em unidades de registro e agrupadas de acordo com as dimensões a
estas veiculadas, classificando-as por temáticas.
Vale informar que antes de proceder à coleta de dados o projeto foi avaliado e
aprovado pelo Comitê de Ética da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto - SP.
3 Resultados e discussão
As 20 entrevistadas são mulheres de baixa renda, moradoras em bairros da
periferia e distrito da cidade de Ribeirão Preto. A maioria do grupo (13) é
constituída por jovens adolescentes com idade variando de 15 a 19 anos, sendo
que as 07 restantes estão em idade adulta que variou entre 20 a 26 anos.
O contingente maior de adolescentes, que compõe o recorte empírico de nosso
estudo, está coerente com as tendências observadas na população em geral acerca
da fecundidade nas diferentes faixas etárias. Estudos mostram uma diminuição da
fecundidade total no Brasil, o que é um fato bastante conhecido, entretanto
para o grupo de mulheres entre 15 e 19 anos, a tendência segue um sentindo
inverso(11).
A questão não parece ser apenas um problema de descontrole da fecundidade ou da
falta de acesso a contraceptivos entre as jovens, ainda que esta última seja
alta, principalmente entre mulheres de baixa renda e sim, um fenômeno muito
mais complexo(11). Parece indicar um projeto de vida destas jovens, sugerindo
ser simplesmente um indicativo de mudança nos padrões de reprodução, resultante
do desejo das mulheres e suas famílias de iniciarem mais cedo sua vida
reprodutiva. Existe um consenso geral dos autores sobre fatores associados ao
aumento de incidência de gravidez entre mulheres jovens tais como: a baixa
escolaridade; as condições precárias de vida e ausência de uma política
direcionada à saúde sexual e reprodutiva.
Quanto à escolaridade, das 20 puérperas que compuseram este estudo, 6 (30%)
concluíram o nível de Ensino Médio, 04 (20%) estão estudando em regime de
licença concedido pela escola. Das 10 (50%) puérperas restantes, 6 (30%)
interromperam os estudos no primeiro grau e 4 (20%) no segundo grau. O ensino
médio faz parte da educação básica e constitui a formação que todo brasileiro
deve ter para enfrentar a vida adulta com segurança(12). Contudo, quando se
analisa a relação entre escolaridade e gravidez, estudos mostram que é difícil
haver conciliação de papéis de ser mãe e ser estudante e que a interrupção ou
não da vida escolar depende do apoio social e das concepções sócio-culturais
sobre gênero e identidade feminina(13-15).
Alguns estudos têm discutido possíveis correlações entre educação e
maternidade. Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde demonstrou que
aproximadamente 51% das mulheres de 15 a 19 anos sem escolarização já tinham
tornado-se mães e quase 4% estavam grávidas do primeiro filho. Dados da mesma
pesquisa apontam que 13% das mulheres de 15 a 24 anos declararam abandonar a
escola por ficar grávida, casar ou ter que cuidar dos filhos. Tais dados
indicam a existência de uma causalidade nos dois sentidos da relação
maternidade e educação(11).
Em idade ainda precoce, entre 11 e 16 anos, a maioria das mulheres (14) começou
a exercer atividade remunerada, concentrando-se em setores de prestação de
serviços como empregada doméstica, babás, atuando também no comércio e na
indústria, fato condizente com o nível educacional. O motivo principal que as
levaram para o trabalho foi ajudar financeiramente nas despesas de casa e
possibilitar independência econômica. Apenas 02 mulheres do grupo referem nunca
terem exercido atividades remuneradas. Apesar do grupo apresentar uma
característica de ser potencialmente ativo como força de trabalho em fases
anteriores à pesquisa, na atualidade apenas 02 mulheres estão engajadas no
mercado formal, as demais estão desempregadas com planos futuros de retorno, na
dependência das imposições da maternidade e do suporte que terá do seu meio
relacional.
O retorno ao trabalho, nesse momento da maternidade, tem significado peculiar a
fase o de "ser" e "fazer" para o filho. O trabalho é pensado tendo por
referência a maternidade como prioridade, requerendo adequar-se a esta.
No contexto das famílias pobres, observa-se que o trabalho feminino inscreve-se
na lógica de obrigações familiares e é motivado por ela, não necessariamente
rompendo seus preceitos e não obrigatoriamente configurando um meio de
afirmação individual da mulher(16). O trabalho pode trazer a satisfação da
mulher de ter seus rendimentos, mesmo que sejam parcos, afirmando em algum
nível sua individualidade, mesmo que estes não se destinem para ela, uma vez
que esta individualidade não deixa de ser referida à família. O trabalho pode
lhe proporcionar a gratificação de pelo menos, sair de casa, uma atividade que
a retire do confinamento doméstico.
No grupo, 13 mulheres têm união estável perfazendo um total de 65% da amostra e
07 (35%) não têm companheiro. O estado maritall apresenta-se como um aspecto
marcante no desenvolvimento da gravidez. Sua influência está pautada no
possível apoio econômico de uma situação estável e pelo apoio psicossocial de
se ter um companheiro(17).
A gravidez apresenta-se como um evento não planejado para a maioria das
mulheres do estudo (14), das quais 11 são adolescentes. Dentre as 06 mulheres
restantes que referiram serem suas gravidezes planejadas, observamos
características inversas ao grupo de mulheres de gravidez não planejada ou
seja, a maioria, 04 tem idade adulta e é proporcionalmente igual o número de
mulheres de união estável com o companheiro, não constando entre essas as sem
companheiros. Frente às características apresentadas no grupo de mulheres
estudadas, temos a observar possíveis correlações entre a ocorrência de
gravidezes não planejadas com contextos instáveis de relação do casal e a fase
de imaturidade da mulher, a adolescência. Autores têm apresentado a fase da
adolescência como situação de risco para a gravidez não planejada ou ainda não
desejada(18,19).
Em relação ao tipo de parto, a maioria das mulheres (12) teve parto normal.
Houve 6 casos de cesárea e 02 partos fórceps.
Significados atribuídos pelas puérperas às manifestações e cuidados no corpo no
"resguardo"
As crenças culturais ao exercerem uma função social revelam o poder simbólico
na estruturação de condutas e comportamentos das puérperas em relação às
manifestações e aos cuidado com seus corpos.
A este respeito:
que a percepção de sensações corporais é fruto de um aprendizado
específico ou difuso, implícito ou consciente e a identificação das
sensações, longe de ser uma simples percepção de primeiro grau, é o
resultado de uma série de operações lógicas de oposição e de
aproximação que permitem ligar uma sensação específica a um
determinado órgão(20:159).
As puérperas estudadas interpretam que manifestações como as cólicas uterinas
são parte do processo fisiológico. Tidas como normais tais manifestações
físicas causam estranhamento às mulheres quando não observam a ocorrência das
mesmas em seus corpos.
[...] minha companheira de quarto falou pra mim: quando você der de
mamar para o nenê você vai ter cólica que é o útero que está
contraindo [...] eu dei de mamar e não tive [...] eu tive assim uma
dorzinha [...] logo parou [...] eu estranhei [...] porque é o sangue
sujo [...] eu falei para ela: será que o meu útero vai voltar normal?
(Janete, UBS- Vila Recreio).
A sensação de cólica uterina é valorizada como indicativo de retorno do útero à
normalidade. Associado a este retorno, as mulheres relacionam ainda ao
sangramento uterino que deve ser evacuado.
Quanto ao fluxo sanguíneo nas fases cíclicas do processo reprodutivo feminino,
Leal(21) em seu estudo etnográfico com mulheres sobre representação do corpo,
seus fluidos e concepção em uma região rural do Rio Grande do Sul, fronteira
Brasil - Uruguai, verificou que o fluxo sanguíneo era considerado limpo,
enquanto construtor de vida, e sujo quando resto de tudo que não presta mais no
corpo, devendo ser evacuado, justificando assim, práticas do resguardo.
Foi possível constatar que as mulheres observadas conferiram sentido às
manifestações do corpo na fase de resguardo, não só reinterpretando o discurso
médico mas introduzem uma outra dimensão, a construção sociocultural de
maternidade, como podemos observar na fala de Patrícia, UBS- ParqueRibeirão ao
significar a cólica sentida como fator de proteção e sacrifício em favor do
filho.
[...] eu sentia muito frio [...] me deu um pouco de febre depois, me
deu bastante cólica, não dava nela, dava em mim [...] eu acho que era
por causa do parto [...] às vezes eu estou amamentando ela dá cólica,
mas é normal [...] fico pensando é melhor dar cólica em mim do que
nela [...] a dúvida que eu tenho é em relação ao tempo que vem [...]
depois do parto, fico meio com receio [...] já faz dias(Patrícia,
UBS- Parque Ribeirão).
A dimensão reinterpretativa do discurso médico alude para o fato que na
tentativa de reconstruir um discurso coerente, ou pelo menos tendendo à
coerência, é preciso, em primeiro lugar, re-atribuir um sentido aos termos que
tomou do discurso do médico, reinterpretando-o e, em segundo lugar, preencher o
vazio que fica entre esses termos do qual não restam mais que fragmentos(22).
Conjugado a uma releitura do discurso médico, as mulheres estudadas nesse
período de poucos dias de pós-parto sentem e imaginam o interior de seu corpo
não mais grávido mas também, não normal.
[...] uma coisa esquisita [...] parece que eu não sinto as coisas
direito [...] no começo achei estranho [...] não estava acostumada,
apertava assim, não sei se é porque os organismos estavam chegando ao
normal, eu apertava assim e sentia tudo vazio(Taís, UBS- Parque
Ribeirão).
A associação com imagens de corpo oco e vazio vincula-se à sensação de abdômen
dilatado que permanece por um período após o nascimento do bebê. Perpassa
também, em seus relatos, uma aparente sensação de perda, de não ser mais
continente ao filho, pois os limites entre o corpo da mãe e do filho mostram-se
concretos, por ocasião da ruptura do cordão umbilical, no entanto, leva um
tempo para adaptação física e psicológica da mulher, do corpo do filho não mais
fazendo parte de si.
O atributo de corpo esquisito perpassa outros significados o de estar sem
função e de perceber que as atenções não mais giram em torno de si, por não
estar mais grávida, difundindo-se para a criança. Ao mesmo tempo, se percebem
destituídas dos contornos de beleza feminina.
Estou me achando feia, horrorosa, me achando esquisita [...] me
sentindo inchada, as vezes me sinto incomodada [...] se voltar o
corpo o que tem que voltar [...] mas também se não voltar [...] vai
fazer o que(Silvia, UBS- Vila Recreio).
Não gostei muito não [...] meus peitos estão caindo [...] não
esquento muito a cabeça não [...] eu era muito vaidosa com meu corpo
[...] acostumei [...] porque não vai mudar mesmo, vai ficar assim
(Suzana, UBS- Parque Ribeirão).
Embora se depreenda das falas dessas mulheres uma atenção essencialmente
voltada ao corpo em suas funções maternas, ressentem-se e demonstram um
conformismo temporal à sua nova imagem corporal, mas não deixam de fazer outras
associações, na medida que buscam o consenso acerca do sentido do seu mundo
social. Isto por que os símbolos enquanto instrumentos de conhecimento e de
comunicação são por excelência de integração social, pois, contribuem
fundamentalmente para a reprodução da ordem social(23).
As mulheres estudadas, mostram não serem rígidas em atender aos cuidados e
restrições do resguardo entretanto, sentem-se receosas de exporem sua saúde ao
perigo de ficarem doentes.
Porque eu fiz muito, eu me abaixava e tudo [...] peguei peso, ficou
inflamado [...] não conseguia nem andar direito [...] desinflamou,
mas estou com medo de não fechar(Josiana, UBS- São José).
Eu peguei uma dor de cabeça, porque eu não estava dormindo [...] no
posto a M. explicou que quando o nenê dormir eu devo dormir também
(Janete, UBS- Vila Recreio).
A expressão "peguei" tem o sentido de designar que foi contaminado por uma
doença, coerentemente com a noção de risco de adoecer, nesse sentido que a dor,
infecção dos pontos, dores nas costas e dor de cabeça trazem como significado
cultural na desobediência às restrições do resguardo.
Os fundamentos da teoria humoral ainda se mantêm na base das crenças leigas
sobre saúde e doença. Helman(24) esclarece que na medicina popular latino-
americana, a teoria humoral - freqüentemente denominada de Teoria das doenças
quentes e frias, tem sido a base para muitos dos comportamentos relacionados à
saúde. Tal teoria postula que a saúde pode ser mantida ou perdida simplesmente
pelo efeito do calor ou do frio no corpo. Considerando a fase do resguardo da
mulher para manter a saúde, é preciso manter o equilíbrio entre os dois poderes
opostos que determinam a temperatura interna do corpo, evitando principalmente
exposição prolongada a qualquer uma destas qualidades.
Depreendemos dos depoimentos das mulheres deste estudo que a incorporação de
tal discurso não é aderido na totalidade do cuidado. Isto porque algumas
crenças e costumes são considerados como algo desacreditado por ser antigo e
portanto ultrapassado.
[...] o povo antigo, minha avó falava: ai, não pode beber água
gelada, não pode ficar subindo e descendo. Eu falo: ai, meu Deus! Eu
não estou morrendo!(Suzana, UBS- Parque Ribeirão).
Por outro lado, a incorporação do discurso médico enquanto sistema simbólico
nas práticas do cuidado do corpo da puérpera apresenta como importante
instrumento de conhecimento e construção de seu mundo social à medida que por
aprendizagem e constatação o reproduz.
Lá no hospital já tinha lavado. Não me deu dor de cabeça, não me deu
nada [...] para minha mãe já era errado, guardar os quarenta dias
certinho [...] a gente cuida do nenê, passa a mão na cabeça depois
passa nele, porque vai acumulando aqueles ácaros, aquelas coisas que
pega do ar(Tais, UBS- Parque Ribeirão).
As puérperas, ao falarem de suas práticas de cuidados com o corpo, utilizam-se
de um esquema de classificação para a definição de qual/quais universos
simbólicos se referenciam a cada situação.
Agora nos quarenta dias de dieta, não estou abusando de nada [...]
porque eu fiz cesárea [...] saindo na friagem, no vento, no sereno,
não sei se tem alguma coisa a ver, mas como todo mundo fala não é bom
abusar [...] é em conversa popular mesmo [...] se pega alguma coisa
na dieta, disse que não sara mais. No hospital eles incentivam a
tomar banho, lavar a cabeça, andar, comer de tudo, levar vida normal
sem exagero(Aline, UBS- Parque Ribeirão).
As interdições relacionadas a não se expor a friagem, inclui não lavar os
cabelos, não ficar descalça, ao vento são crenças relativas aos "humores" do
corpo humano(1).
O discurso médico e o popular nem sempre são coincidentes. A mulher quando no
contexto hospitalar se envolve em um jogo de ambivalências, e ao ser conduzida
pelo poder disciplinar, a mesma é obrigada a seguir às regras e normas
institucionalmente determinadas, o que garante assim a aprovação de suas ações
(25).
Vivências conflitivas mostram-se mais evidenciadas nas falas dessas mulheres
quando se referem aos cuidados e restrições quanto à alimentação e higiene. É
no domínio do privado que essas crenças e costumes tendem a ser mais
respeitados.
Os alimentos são considerados reimosos a depender de certos estados liminares
tal como a menstruação e o puerpério. Os critérios usados para classificar um
alimento em reimoso levam em conta 3 momentos: o alimento em si, antes de ser
preparado para o consumo; o estado das pessoas que vai consumi-lo e o modo de
preparo do alimento(1).
As restrições sejam alimentares ou ainda de atividades físicas tem manifestado
nas mulheres um certo incômodo, de esperar os quarenta dias para voltar à vida
normal mostra-se evidenciado nas falas dessas mulheres. A restrição de
atividades físicas manifesta nas mesmas sentimentos de inutilidade e
ressentimento de estar na dependência do outro.
Eu não tenho muita paciência, eu não suporto muito assim, ficar
dependendo muito dos outros, agora principalmente na dieta [...]
agora que está sendo complicado assim ter que esperar os outros fazer
(Silvia, UBS- Vila Recreio).
O ruim é que eu não estava nem conseguindo fazer as coisas de casa,
só que a gente tem que fazer, então a gente suporta (Taís, UBS-
Parque Ribeirão).
Nesse período, os serviços considerados pesados devem ser evitados, como
carregar peso, abaixar-se. Dessa forma, o trabalho doméstico é socializado com
outras mulheres, na maioria das vezes. Cabe à puérpera fazer as coisas mais de
cima como lavar louça, limpar armário, tirar o pó, enquanto as outras fazem as
coisas de baixo, como limpar o chão.
Apreendemos nas falas dessas mulheres uma tendência a priorizar o filho na
organização dos cuidados dirigidos para si e para o bebê.
[...] tenho medo de engordar, eu fico evitando comer bastante [...]
eu não vejo só meu lado, eu vejo o lado dele também, no momento é
mais o dele, porque ele está em fase de desenvolvimento, crescimento
o meu é quando eu vejo que estou comendo exageradamente(Maria, UBS-
Vila Recreio).
Não estou tendo tempo para mim [...] antes eu tomava banho cedo,
tomava 2 banhos [...] era bem melhor, eu cuidava mais de mim [...]
tem que ser na correria credo! Dormir eu não estou conseguindo
direito também [...] eu como qualquer coisa, eu faço comida só mais
pro meu marido [...] não tenho fome [...] quando tem um tempinho que
ele dorme, eu faço um lanche(Josiana, UBS- São José).
A respeito do cuidar, Tronto(26) refere ser uma atividade que implica algum
tipo de responsabilidade e compromisso contínuos. Cuidar é necessariamente
relacional, regido pelo gênero, ou seja considerando os papéis tradicionais de
gênero em nossa sociedade implicam que os homens tenham "cuidado com" e as
mulheres "cuidem de". O "cuidado com" refere-se a objetos menos concretos;
caracteriza-se por uma forma mais geral de compromisso, já o "cuidar de"
implica um objeto específico, particular, que é o centro dos cuidados. O
"cuidar de" é tipicamente percebido como moral, não é a atividade em si, mas
como essa atividade se reflete sobre as obrigações sociais atribuídas a quem
cuida e sobre quem faz essa atribuição.
As dimensões morais de cuidar dos outros estão intimamente associadas às
mulheres em nossa sociedade, em particular no que se refere ao cuidado do
filho. Construções histórico-sociais de acepção religiosa e da medicina na
época colonial fundamentam a aptidão do corpo feminino para a maternidade e
procriação. Segundo Collière(27) durante milhares e milhares de anos, a prática
de cuidados liga-se fundamentalmente às atividades da mulher. É ela que dá à
luz, é ela que tem o encargo de "tomar conta" de tudo o que mantém a vida
cotidiana nos seus pequenos por menores. "Tomar conta", "cuidar" dão testemunho
de um conjunto de atividades que se propõe garantir ou compensar as funções
vitais (comer, beber, vestir-se, levantar-se, andar, comunicar).
A forma como as mulheres se organizam para o cuidado reflete aspectos de seu
contexto de vida, o qual nem sempre dispõe de condições de suporte requeridos
nessa fase. Com exceção de uma das mulheres do estudo, que tem a família
distante, morando apenas com o companheiro, todas as outras referem receber
suporte de seu meio relacional. A ajuda obtida é nos afazeres domésticos e no
cuidado com a criança. Essa ajuda advém de outras mulheres sejam elas mães,
sogras, irmãs, cunhadas e amigas. Tal fato revela um forte traço da tradição
das mulheres em cuidar de mulheres.
A este respeito observa-se que o reconhecimento do valor social da prática dos
cuidados prestados pelas mulheres funda-se no prestígio da sua experiência,
experiência interiorizada e vivida no seu próprio corpo. A que foi mãe ao dar à
luz e que depois será reconhecida por ajudar outras mulheres a fazê-lo e
iniciá-las a cuidar das crianças(27).
Tal aspecto podemos depreender na fala de Maria (UBS- Vila Recreio) ao referir-
se a sua sogra: O nenê começa a chorar, você fica sem saber o que fazer [...]
minha sogra cuida e dá orientação [...] ela tem prática [...] ela passou
segurança, eu passei a dar valor a minha sogra [...] eu vi o quanto ela me faz
falta.
Analisando tais resultados, consideramos que a percepção e a identificação das
sensações corporais da fase puerperal para as mulheres, são resultantes de
comparações desencadeadas no contexto da prática cotidiana na relação com o
outro (família, profissional da saúde), tornando-se o eixo organizador das
sensações e por extensão conformam os cuidados empreendidos para garantia da
saúde da mulher.
4 Considerações finais
Os significados atribuídos as manifestações e cuidados no corpo materno na fase
do resguardo, no grupo de mulheres estudadas, deixam evidenciar construções
culturais de uma reinterpretação do discurso médico articulado a um universo de
significados mais amplo o de corpo feminino (sujeito a perigos) e corpo materno
(resignado e todo sacrifício ante ao filho dependente e frágil).
É importante considerar a necessidade dos profissionais de saúde incorporarem a
assistência à mulher na fase puerperal as crenças, os valores e costumes que se
mostrarem presentes e dominantes, a depender do contexto em que a mulher se
encontra. Para tanto, requer a princípio, que se dê condição às mulheres de se
mostrarem inteira e através da interação entre profissional e a mulher,
estabelecer um compartilhamento de saberes e crenças que envolvem o puerpério,
o que certamente favorecerá a compreensão crítica da realidade e a efetiva
promoção da saúde à mulher e por extensão ao seu filho.