Parto e mascimento: uma compreensão das possibilidades de inserção da
enfermeira
PESQUISA
1 Considerações iniciais
Esta construção intelectual surgiu a partir da constatação da não referência ao
profissional enfermeiro como aquele que vem ao encontro em estudos
anteriormente realizados por mim, tendo como foco de interesse a mulher-
cliente. Isto estabeleceu um confronto entre a postura profissional na prática
assistencial e na academia, uma vez que as pesquisas de enfermagem na área de
saúde da mulher têm valorizado a cliente como sujeito e buscam considerar não
apenas a dimensão biológica do corpo feminino, mas suas expectativas,
conflitos, desejos, saberes.
Com isso gera-se a dicotomia entre teoria e prática, o que contribui para uma
conduta inautêntica diante da clientela. Isto me levou a ter como questão
norteadora da presente pesquisa: Como aconteceu a inserção da enfermeira nas
propostas e políticas de assistência ao parto e nascimento?, Quais suas
intenções, propostas e tendências?.
Assim, o estudo teve como objetivo compreender a inserção da enfermeira nas
propostas e políticas de assistência ao parto e nascimento.
2 A condução do estudo
Para atender ao objeto de estudo adotei a pesquisa qualitativa, abordagem
fenomenológica, uma vez que existe algo velado no papel assumido por esta
profissional que merece ser investigado. Neste sentido, é partindo do saber
existente sobre a inserção da enfermeira que volto meu olhar atentivo, buscando
uma outra possibilidade de vê-lo á luz da totalidade.
Para alcançar a compreensão do fenômeno investigado, busquei fundamentar minhas
reflexões no pensamento de Heidegger(1), filósofo alemão discípulo de Husserl,
que buscando o sentido do ser dedicou-se ao estudo da existência humana em seu
cotidiano, desenvolvendo uma analítica existencial, uma ontologia.
A fenomenologia diz antes de tudo um conceito de método e possibilita deixar e
fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si
mesmo.É necessária justamente porque na maioria das vezes os fenômenos não se
dão, estão encobertos. E a coisa a ser descrita é o ser dos entes, o seu
sentido, suas modificações e derivados que se "mantém velado ou volta novamente
a encobrir-se ou ainda só se mostra desfigurado"(1:67).
A possibilidade de sucesso no método fenomenológico está no existencial da
compreensão. Isto ocorre porque o ser-aí (pre-sença) sempre está aberto,
antecipando um sentido que o orienta. Pertence ao ser mais próprio da pre-sença
dispor de uma compreensão de si mesmo e manter-se desde sempre numa certa
interpretação de seu ser, podendo abrir significados que se fundam na
possibilidade da palavra e da linguagem(1).
Visando o método fenomenológico heideggeriano uma hermenêutica, isto se inicia
com o levantamento do que ele chama de compreensão vaga e mediana, que é
justamente a maneira de compreender o mundo que está presente na explicitação
do fato, do ente investigado. Isto só pode ser compreendido, sempre e cada vez
na perspectiva e com referência ao tempo.
Esta historiografia permitida pela temporalidade passa a ser também a condição
de possibilidade do próprio sentido, denominado de Historicidade(1). Porém a
determinação da historicidade se oferece antes do que se chama de história.
Historicidade indica o acontecer próprio da pre-sença enquanto tal.
Para a descrição dos fatos historiográficos optei por utilizar como fonte os
documentos oficiais tais como Decretos-lei, Leis que caracterizaram as
propostas e políticas do governo na área de saúde materno-infantil desde 1903,
bem como os periódicos de enfermagem, livros, jornais, atas. Este novo caminhar
metodológico de aplicação da abordagem fenomenológica, sem estar na relação
face a face, pareceu a princípio difícil de ser implementada. Porém percebo
que, mesmo em textos já estruturados e publicados, é possível mergulhar num
movimento de compreensão do fenômeno investigado, suspender os pressupostos e
proceder à análise compreensiva visando os significados.
Os cenários de obtenção dos documentos foram a Biblioteca do Tribunal de Contas
da União (através de CD-ROM), bem como as Bibliotecas da Escola Nacional de
Saúde Pública/ENSP e da Maternidade Escola da Universidade Federal do Rio de
Janeiro(UFRJ). Posteriormente busquei o acervo do Centro de Documentação e da
Biblioteca da Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ.
Na seleção dos textos devo revelar a intensa emoção que senti ao proceder a
leitura de correspondências, atas, relatórios, publicações parlamentares
expedidas pelas precursoras da enfermagem moderna no Brasil, além dos
periódicos de enfermagem que re-tratam os obstáculos, intenções, propostas e
tendências da inserção da enfermeira nas propostas e políticas públicas de
assistência ao parto e nascimento no Brasil.
3 Propostas e políticas de assistência ao parto e nascimento: a inserção da
enfermeira em sua dimensão factual
A pesquisa ao buscar compreender a inserção da enfermeira nas propostas e
políticas de assistência ao parto e nascimento teve que começar "dentro do
horizonte liberado pelo tempo, com uma investigação sobre os fatos
historiográficos", ou seja, assumindo a história fatual (Historie) ou a
fatualidade historiográfica do objeto de estudo (1:48).
Assim descrevo os fatos historiográficos sobre a temática, pois eles já apontam
pistas para o desvelar do sentido procurado.
3.1 Descrevendo os fatos historiográficos
- Evolução e tendências da Proteção Materno-Infantil no mundo e no Brasil nas
primeiras décadas do séc. XX;
- Criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP);
- Criação da Escola de Enfermeiras em 1923;
- Fixação da lei do exercício profissional para o pessoal de saúde em 1932;
- A Constituição Brasileira de 1934 estabelece as primeiras leis de proteção a
Maternidade;
- Criação do Departamento Nacional da Criança em 1937;
- A inserção da enfermeira em ambulatório de obstetrícia;
- A inserção da enfermeira na assistência hospitalar;
- A promulgação da Lei n.755/1949 que dispõe sobre o ensino de enfermagem no
país;
- A necessidade de melhor preparo da enfermeira obstétrica e da enfermeira de
saúde pública;
- Criação do Ministério da Saúde em 1953;
- A regulamentação do exercício profissional em 1961;
- As mudanças na formação da enfermeira proporcionadas pelo avanço científico e
pelo estabelecimento de nível de ensino superior em 1962;
- O estabelecimento do Código Nacional de Saúde em 1966;
- O governo dispõe sobre a execução de medidas de proteção materno-infantil em
1971;
- Criado o primeiro curso de pós-graduação strito sensu na Escola de Enfermagem
Anna Nery/UFRJ (1972);
- Elaborado o Programa de Saúde Materno-Infantil em 1974;
- Aprovação da Lei n. 7498/86 que dispõe sobre o exercício profissional;
- A criação do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher em 1984;
- Elaboração da Constituição Brasileira de 1988;
- Os avanços da Enfermagem na Assistência e na Pesquisa na área de saúde da
mulher no final da década de 80 e início de 90;
- A proposta para o novo Currículo de Graduação em Enfermagem em 1994;
- A Portaria n. 2815 de 1998 que garante ao enfermeiro obstetra a realização do
parto normal;
- Recomendações do II Seminário Estadual sobre o Ensino de Enfermagem para a
Assistência ao Parto Humanizado, em 1999 realizado em São Paulo (SP);
- A OMS, o Ministério da Saúde e a Maternidade Segura.
3 Propostas e políticas de assistência ao parto e nascimento: a inserção da
enfermeira em sua dimensão fenomênica
A partir da descrição dos fatos historiográficos sobre a inserção da enfermeira
e as propostas de políticas públicas de assistência ao parto e nascimento,
busco compreender "o seu acontecer", ou seja, o que deve ser analisando é
justamente aquilo
que nãose mostra diretamente e na maioria das vezes e sim se mantém
velado frente ao que se mostra diretamente e na maioria das vezes,
mas ao mesmo tempo, pertence essencialmente ao que se mostra
diretamente e na maioria das vezes a ponto de constituir o seu
sentido e fundamento(1:66) .
A análise compreensiva dos textos me levou a "voltar às coisas mesmas",
buscando o que se mostra em si mesmo, o sentido(1).
Sendo a compreensão vaga e mediana a maneira de compreender o mundo que está
presente na descrição do fenômeno investigado, os textos trazem à compreensão
de que no Brasil, a enfermeira no início do séc. XX se insere nas propostas e
políticas de assistência ao parto e nascimento, desempenhando um caráter
essencialmente de prevenção, de educação às mães.
Isto se revela na visita domiciliar quando é atribuída à enfermeira de saúde
pública difundir e aconselhar preceitos de higiene, orientar a mãe sobre os
meios para manter a sua prole sadia, evitar ou curar os males, regularizando a
alimentação da criança a partir da educação das mães.
[...] dar instruções a paciente eliminando, dessa maneira, uma
infinidade de defeitos de orientação que nosso povo possui em relação
a gestação, ao parto e aos cuidados para com o recém-nascido.
Permitir melhor aproveitamento dos conselhos médicos e educar a
gestante e em seguida a mãe, contribuindo assim para maio coeficiente
de partos bem sucedidos e recém-nascidos sadios(2:7).
Portanto, a inserção da enfermeira nas propostas e políticas públicas de
assistência ao parto e nascimento aconteceu de modo operacional, ou seja, se
revestia de uma repetição de ações visando minimizar as questões de saúde
pública que se revelavam por dados assustadores de morbimortalidade materno-
infantil.
A enfermeira, enquanto um ser-com, se mostrou mergulhada na facticidade da
assistência a saúde. Esta facticidade permite ao ser-no-mundo da pre-sença, se
dispersar ou até mesmo se fragmentar em determinados modos de ser-em. Esta
multiplicidade de modos de ser-em pode ser exemplificada como:
ter o que fazer com alguma coisa, produzir alguma coisa, tratar e
cuidar de alguma coisa, aplicar alguma coisa, fazer desaparecer ou
deixar perder-se alguma coisa, empreender, impor, pesquisar,
interrogar, considerar, discutir, determinar... Estes modos de ser-em
possuem o modo de ser da ocupação, [...]. Modos de ocupação são
também os modos deficientes de omitir, descuidar, renunciar,
descansar, todos os modos de `ainda apenas', no tocante às
possibilidades da ocupação(1:95).
Isto se evidencia ainda num ambulatório de obstetrícia quando a enfermeira deve
ficar exclusivamente encarregada deste trabalho cabendo as atribuições de
receber a orientação do médico e conhecer cada caso de per si; explicar as
pacientes o sentido das instruções médicas; dar as gestantes em grupos as aulas
do programa e coordenar as atribuições dos demais elementos, para que o
trabalho seja bem sucedido (2:05-10).
Assim, a enfermeira nesta inserção teve um papel de fazer, de produzir, tratar
e cuidar da saúde da mulher e de sua prole, medidas estas já garantidas
políticamente no Regulamento do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP)
quando se referia que a assistência deveria ser prestada as operárias
trabalhadoras gestantes e as crianças nas creches, nos dispensários infantis,
escolas, colégios. Exatamente nestes locais as enfermeiras diplomadas foram
desempenhar suas atividades, pois no primeiro currículo do curso de enfermagem
implementado em 1923, nos quatro últimos meses de formação, os conteúdos
valorizavam os princípios e organização da higiene infantil; higiene pré-natal;
cuidados e ensino a grupos de mães e de crianças; causas de mortalidade
infantil; as leis sobre saúde, higiene e como manter a saúde.
Apesar do conhecimento teórico elas não adquiriram a prática relacionada, o que
contribuiu para uma implementação inadequada das normas estabelecidas na
legislação do governo brasileiro. O termo ocupação tem, de início, um
significado pré-científico designando um realizar alguma coisa, cumprir, `levar
a cabo'.Mas a expressão ocupar-se de alguma coisa pode também significar
arranjar alguma coisa(1:95).
Estes significados pré-científicos (ônticos), ou seja, utilizados na
facticidade, são opostos a expressão ocupar-se para
designar o ser de um possível ser-no-mundo. Essa escolha não foi
feita porque a pre-sença é, em primeiro lugar e em larga escala,
`prática' e econômica, mas porque o ser da pre-sença se deve tornar
visível em si mesmo como cura(1:95).
Tendo a pre-sença, enquanto um ser-no-mundo, essencialmente a ocupação como
constituinte, esses outros entes que estão na facticidade do cuidar em saúde,
só podem deparar-se"com a pre-sença na medida em que conseguem mostrar-se, por
si mesmos, dentro de um mundo" (1:96).Sendo a enfermeira essencialmente desse
modo, pode então descobrir explicitamente o ente que lhe vem ao encontro no
mundo circundante, saber algo a respeito dele, dele dispor.
Este já-ser-junto ao-mundo admite um conhecer em si mesmo, pois a pre-sença
acaba sendo tomada pelo mundo do qual se ocupa. É necessário que ocorra
previamente "uma deficiênciado fazer que se ocupa do mundo para se
tornarpossível o conhecimento, no sentido de determinação observadora de algo
simplesmente dado"(1:100).
Portanto, esta constituição da pre-sença como ser-junto-a está claramente
explícita em vários textos quando destacam que enfermeira especializada em
obstetrícia é considerada colaboradora do médico, da parteira e coordenadora da
equipe.
A sobrecarga das funções da administração, supervisão e ensino, também se
evidenciam justificando ainda o inadequado papel das enfermeiras no cuidar
propriamente dito.
As nossas enfermeiras, na sua quase totalidade, estão exercendo
funções da administração, supervisão e ensino, seja do pessoal
auxiliar seja de alunos dos cursos de enfermagem ou auxiliar de
enfermagem; e a tendência é para que se torne, cada vez maior o
número de enfermeiras nesses três campos(3:325).
O papel da enfermeira obstétrica, bem como o conflito vivido na assistência é
evidente no texto:
Nas clínicas obstétricas onde a ação da enfermeira é especializada,
pela natureza do serviço e pela duração do trabalho, no qual
acompanha a sintomatologia clínica, a delimitação de funções é menos
nítida e com freqüência verifica-se a intromissão na esfera médica,
ora por necessidade premente de resolver na urgência, ora por força
do hábito, mas sempre com dificuldade de se manter no estrito
conceito do que deve ser a enfermagem(4:369).
No mundo da proteção a maternidade, a infância e a adolescência, a enfermeira
sendo-com, convive com os outros entes profissionais que lhe vem ao encontro na
ocupação, o que encobre e obscurece a delimitação de suas próprias funções.
Verifica-se especialmente a intromissão na esfera médica, ora por força do
hábito, mas sempre com dificuldade de se manter no estreito conceito do que
deve ser a enfermagem.
Uma das conferências proferidas no VI Congresso Brasileiro de Enfermagem (1953)
por um médico obstetra conceituado na época demonstra a importância de ter a
enfermeira um papel definido:
[...] o tema Enfermagem Obstétrica, incluído no Congresso, por
quererem suas dirigentes focalizá-lo, debatê-lo e, oxalá, norteá-lo
sob novos rumos, com novas forças e imprimindo a assistência
especializada a diretriz que a maternidade há muito está a exigir; e
obter disso um resultado, pois o sacrifício anual de milhares de
crianças brasileiras o estão reclamando no mais doloroso de todos os
silêncios. [...] é urgente que seja encontrada solução para a
enfermagem especializada, que traga alívio a toda a mulher sofredora,
pois se obedecermos aos preceitos da ciência e usarmos os recursos da
arte, ampararemos com segurança e humanidade a procriação,
prodigalizando melhores dias aquelas que tão generosamente contribuem
com sacrifício para a grandeza de nossa gente, e cujos desastres o
direito e a justiça exigem que proclamemos a nossa integral
responsabilidade(5:380).
São expressões que mostram o inadequado acontecer da enfermeira nas propostas e
políticas públicas de assistência ao parto e nascimento não havendo uma
definição de seus próprios espaço e tempo profissional.
Estes relatos apontam para a compreensão de que a enfermeira foi lançada no
mundo da assistência. Porém estar lançado não só não é um fato pronto, como
também não é um fato acabado. Pertence a facticidade da pre-sença, ter de
permanecer em lance enquanto for o que é. Este estar-lançado como ser-no-mundo
tem como singularidade a angústia, já que a pre-sença percebe-se essencialmente
enquanto possibilidade. A angústia se revela como uma disposição, como uma
abertura de possibilidades de ser isto ou aquilo(1).
A possibilidade enquanto existencial não significa um poder-ser solto no ar, no
sentido da indiferença do arbítrio, ou seja, enquanto algo essencialmente
disposto, a pre-sença já caiu em determinadas possibilidades e, enquanto o
poder-ser que ela é, já deixou passar tais possibilidades de seu ser,
assumindo-as ou recusando-as(1).
Sabendo a quantas anda o seu poder-ser, a compreensão projeta a pre-sença para
a sua destinação, de maneira tão originária como para a significância,
entendida como mundanidade de seu mundo(1).
Neste estudo pude apreender que a enfermeira, enquanto pre-sença inserida no
mundo do cuidar da mulher e da criança, soube compreender a quantas andava seu
poder-ser profissional, pois muitos textos demonstram a necessidade de que o
papel assumido fosse não de repetir as ações normatizadas pelas políticas
governamentais, mais sim que possibilitassem a valorização de competência
pertinente e espaço definido institucionalmente.
Para isso buscam estratégias, principalmente na adequação do ensino ministrado
nas Escolas de Enfermagem, pois entendiam que no preparo das enfermeiras para o
desempenho das funções era imprescindível dar ênfase ao ensino de obstetrícia
no curso básico; organizar cursos de pós-graduação e no curso básicoser
observado pontos como:
Incluir o parto na experiência das estudantes porque, como
diplomadas, terão que reorganizar maternidades; como enfermeiras
chefes nos diferentes departamentos do Centro Obstétrico, trabalharão
com parteiras, e porque em Saúde Pública, orientarão as `curiosas'
(6:388-389).
Colaboram com esta situação, a dificuldade encontrada pelas professoras em
relação à bibliografia e campo clínico. Quanto a primeira, especialmente na
área da enfermagem era essencialmente americana o que se constituía em
obstáculo, pois as estudantes não liam inglês:
Em nossa revista "Anaes de Enfermagem', raríssimos são os artigos
sobre enfermagem obstétrica. A transmissão de conhecimentos da
enfermagem é feita oralmente ou por meio de apostilas. Só poderemos
melhorar o ensino de enfermagem obstétrica, se oferecermos leitura
para as estudantes, de modo a favorecer o seu desenvolvimento no
setor. Urgente se torna a solução deste problema - artigos sobre
obstetrícia deverão ser escritos; traduções de artigos e revistas e
de livros estrangeiros deverão ser feitas; mas só atingiremos o ideal
com a publicação de livros sobre a enfermagem obstétrica, escrita por
nós(6:389-390).
Os campos clínicos são descritos como deficientes para garantir um treinamento
adequado às alunas, já que os serviços de ambulatório deveriam:
Contar com uma enfermeira apta para dirigir o programa, manter
clínica pré e pós-natal, porém este ambulatório deverá pertencer ao
próprio hospital ou a centros de saúde, no qual as mães matriculadas
sejam referenciadas para local onde as estudantes desenvolvem sua
prática. Além disso, possuir sala de espera, salas de espera
separadas para que a anamnese e os exames das pacientes sejam
privativos e ainda acomodações para aulas demonstrativas às mães e as
próprias alunas. Este ambulatório ainda deverá ter serviço de saúde
pública, para atendimento as mães após alta hospitalar(6:391).
As precárias condições de trabalho nas Maternidades e Hospitais também foram
apontadas, uma vez que o número de leitos destinados à mulher era
expressivamente insuficiente, fatos que não propiciavam uma assistência
profissional de qualidade.
A diversidade de pessoas atuando na assistência a saúde da mulher, se revelou
como outro significado importante na inserção da enfermeira nas propostas de
políticas públicas, pois existiam curiosas, parteiras, obstetrizes, enfermeiras
pós-graduadas, parteiras práticas, auxiliares de enfermagem, auxiliares de
parteiras, médicos, obstetras, demonstrando que o atendimento a mulher e a
criança eram em geral, desenvolvido por todos. Este fato aponta para a
impessoalidade profissional. É o impessoal se re-velando no mundo do cuidar.
O impessoal coloca em seu ser, no ser e estar com o outro, ou seja, na
convivência, a medianidade como caráter existencial. Nesta, designa-se o que se
admite com valor ou desvalor, o que concede ou nega sucesso. E destaca-se que a
enfermeira, na abertura do impessoal, encontra-se mo modo-de-ser-cotidiano,
exposta ao falatório do que vem a ser sua profissão, de seu valor social(1).
O falado no falatório enfatiza o papel humanitário e social atribuído à
enfermeira, tais como: saber das condições materiais e morais da existência da
mulher atendida em domicílio, visando o amparo da mesma, bem como aquela a quem
cabia colher os dados sobre a vida familiar e comunitária da cliente
comunitária. Os textos também revelam que cabia a enfermeira, prestar além dos
cuidados físicos e morais, os espirituais, respeitando os direitos da pessoa
humana e da família.
A questão vocacional se faz presente quando é citado que "enfermeira não se
faz, a enfermeira já nasce enfermeira", sendo a caridade, considerada uma
modalidade afetiva da mulher. São expressões que demonstram a confusão entre o
papel da profissão na sociedade, e o papel social da mulher(7:241).
O falatório é o modo de ser da compreensão e interpretação da pre-sença
cotidiana, acaba sendo uma possibilidade de compreender tudo sem se apropriar
previamente da coisa(1). É por si mesmo, um fechamento, pois não retorna a base
do fundamento do referencial. Isto acontece no cotidiano assistencial da
enfermeira, pois o mundo social valoriza sua atuação, mas quando ela busca
assumir posições definidas, não encontra espaço junto as propostas e políticas,
o que revela a ambigüidade da situação. Pelo contrário, a curiosidade, a que
nada se esquiva, o falatório, que tudo compreende, dão à pre-sença, que assim
existe, a garantia de uma vida cheia de vida. Isto gera, na abertura da pre-
sença, a ambigüidade.
Estes fatos historiográficos ressaltam que oacontecerda enfermeira nas
propostas e políticas públicas de assistência ao parto e nascimento, a sua
direção ocorreu como uma ocupação, no sentido da manualidade.
Porém a visão desta realidade possibilitou a de-cisão de profissionais e
estudiosos em buscar caminhos que permitissem uma re-inserção da enfermeira
obstetra, pautada em conhecimento científico pertinente, prática efetiva. Pois
na 2a. metade da década de 70, o clima de abertura política
favoreceu a reflexão das enfermeiras a respeito da profissão a partir
da análise do contexto social mais amplo. Começam a crescer as
críticas ao sistema educacional, as condições de trabalho e ao espaço
de atuação da enfermagem(8).
As alterações curriculares começam a ocorrer:
Proporcionamos as nossas alunas a oportunidade de realizarem uma
assistência integral a família, através, da mãe, durante o período
grávido-puerperal, a fim de reduzir os coeficientes de morbidade e
mortalidade materna e infantil, promovendo melhores condições para o
nascimento de filhos sadios e ajustados a família a sociedade [...].
Procuramos despertar em nossas alunas uma visão da profissão
fundamentada não somente no aprendizado técnico e científico mas num
contexto social que envolve situações das mais complexas, das quais
elas devem participar não como expectadoras e sim como atuantes nos
problemas sociais que decorrem de uma sociedade desajustada(9:85).
Os textos revelam a valorização da obstetriz para ministrar o ensino prático de
assistência obstétrica, teoria e prática das disciplinas de enfermagem:
A obstetriz é a docente indispensável no ensino da obstetrícia, e
seus conhecimentos e valores pessoais são importantíssimos para
formar novas profissionais, porque a qualidade de assistência que
estas irão oferecer a comunidade depende da formação que receberam de
suas mestres obstetrizes que as acompanharam passo aa passo na
prática da assistência obstétrica. Não esqueçam as professoras, que
no mundo atual em rápida evolução, o ensino requer conhecimentos
técnicos e amplitude de critérios (10:73).
É oportuno resgatar que a reforma universitária já havia ocorrido e por prever
a unidade de funções de ensino e pesquisa, vedava a duplicação de meios para
fins idênticos ou equivalentes. Assim, como os currículos dos cursos de
enfermagem e de obstetrícia apresentavam grande semelhança, o Conselho Federal
de Educação pelo Parecer n. 163/72, transformou o curso de obstetrícia em
habilitação de enfermagem, estabelecendo o currículo em pré-profissional, comum
e habilitação que poderia ser na área de obstetrícia, saúde pública e médico-
cirúrgica, ou fazer a Licenciatura em Enfermagem(10:72).
Posteriormente, em 1994, na nova proposta para o Curso de Graduação em
Enfermagem foram suprimidas as Habilitações, demonstrando que"o aprofundamento
da qualificação técnico-científica do enfermeiro deve ser objeto de estudos
posteriores, através das especializações, no nível de pós-graduação"(11:139) .
Neste sentido, a responsabilidade da enfermeira obstétrica éoferecer uma
assistência adequada ao trinômio Pai-mãe-Filho, a despeito dos múltiplos
agravos do meio, através de um atendimento racional das suas necessidades
básicas(7).
A pertinência da legalidade do exercício profissional da enfermeira na
assistência ao parto e nascimento tão discutida está descrita como:
Profissional habilitado a desempenhar função eficiente, pois possui
conhecimentos, técnica e formação básicos, necessários, de
enfermagem, acrescidos e aprimorados pela especialização que permitem
a multiplicação do trabalho do obstetra. Ciente da enfermagem nas
mais variadas patologias e alertada a respeito das intercorrências no
ciclo grávido-puerperal será, do obstetra, a colaboradora capaz e
indispensável para uma boa assistência (12:297-298).
Outra estratégia implementada foi a reivindicação de políticas de recursos
humanos, ou seja, que fosse criada a carreira de enfermeira obstetra nas
diversas instâncias junto ao governo, o que está explícito no texto:
Aos ministros da Saúde e da Previdência e Assistência Social que
estudem a possibilidade de obter criação e ampliação do número de
cargos e empregos de enfermeiros, enfermeiras obstétricas, técnicos
de enfermagem e auxiliares de enfermagem, com níveis de vencimentos e
salários condizentes com suas responsabilidades e utilidade social.
(...) Aos Serviços de Enfermagem dos estabelecimentos hospitalares,
ambulatórios e de saúde pública todos especializados para a
assistência obstétrica, pediátrica ou saúde materno-infantil que
envidem esforços na política de empregos para diminuir o percentual
de atendentes e aumentar os de enfermeiro, obstetriz ou enfermeira
obstétrica, técnico de enfermagem e auxiliar de enfermagem; e na
política educacional, para obter o progresso de atendentes e demais
categorias de pessoal de enfermagem, por meio de matrícula nas
escolas do sistema formador de enfermagem(13:166-167).
O ano de 1998 representou um marco para a enfermagem brasileira, primeiro por
ter atingido 75 anos de história, e especialmente para a enfermagem obstétrica,
pois foi declarado pelo Ministro da Saúde, José Serra, que "a prioridade de sua
gestão seria a Saúde da Mulher e nesta institucionalizava-se a participação da
enfermeira obstetra na assistência ao parto normal".O ministro através da
Portaria n. 2815 de 29/05/1998, garante ao enfermeiro obstetra a realização do
parto normal, de forma remunerada pela tabela do SUS, considerando a Lei do
Exercício Profissional de Enfermagem n. 7498/1986(14:11).
Podemos entender a participação da enfermeira na assistência ao parto e
nascimento nos últimos 20 anos quando
Grande parte dos enfermeiros obstetras brasileiros foi formada até a
década de 80, por escolas das Regiões Sudeste e Nordeste, sendo a
maioria deles habilitados. Esta situação reflete as conseqüências das
mudanças na legislação de ensino de enfermagem, principalmente quanto
a existência das habilitações para a graduação do enfermeiro. Em
contrapartida, a falta de uma política nacional de recursos humanos
que favoreça a capacitação e atuação do enfermeiro obstetra, concorre
para a diminuição da oferta desse profissional no mercado de
trabalho. No momento, há somente três cursos de especialização em
atividade entre a população pesquisada. Os motivos que levaram as
escolas a interromper a formação do enfermeiro obstetra, mais uma
vez, apontam para uma inexistência de políticas de recursos humanos.
Isso colabora para a desmotivação, tanto dos alunos como das escolas,
em investir na formação(15:28-29).
Estes resultados estimularam mais ainda a Associação Brasileira de Enfermeiros
Obstetras e Obstetrizes (ABENFO) a buscar parcerias junto aos órgãos
governamentais de saúde visando desenvolver modelos de assistência que resgatem
a atuação da obstetriz e enfermeiro obstetra, tendo como proposta filosófica "a
humanização, individualização, a desmedicalização e a não adoção de práticas
intervencionistas, para que o nascimento e o parto precedam a sua natureza com
qualidade". Proposta esta normatizada pelo Ministério da Saúde através do Guia
Maternidade Segura, 1996(15:29).
O MS neste período intervem de forma energética e objetiva em diversos aspectos
da assistência ao parto, dentre elas destaca-se:
O respaldo legal através da publicação de portarias ministeriais (MS,
no. 569, 570, 571 e 572) com a institucionalização do Programa de
Humanização do Pré-Natal e Nascimento (PHPN) e ainda; o
desenvolvimento de programas de capacitação profissional, através do
funcionamento de 45 cursos de especialização em enfermagem, em todo o
país, no ano de 2001. Este esforço implementado pelas autoridades de
saúde e dirigido pelo governo central, em melhorar a assistência ao
parto, se encontra fortemente influenciado pelas então alarmantes
taxas de morbi-mortalidade materna e neonatal, por causas previsíveis
(16:22).
Todos esses acontecimentos nos remetem a compreensão de que o movimento de
inserção da enfermeira tem sido permeado de ambiguidade, e esta é gerada na
convivência cotidiana, e"não se estende apenas ao mundo mas também, à
convivência como tal e até mesmo ao ser da pre-sença para consigo mesma. Tudo
parece ter sido compreendido, captado e discutido autenticamente quando, no
fundo, não foi"(1:234).
Assim, os textos apontam para um per-curso ambíguo no qual, a enfermeira,
lançada no mundo do cuidar da saúde da mulher, busca publicamente seu sentido,
sua direção, não em uma concepção de operacionalidade, mas numa visãoque
possibilite o projetar-se para as suas possibilidades mais próprias de atuação
profissional.
5 Considerações finais
Neste re-torno às coisas mesmas, a hermenêutica possibilitou perceber as
propostas, tendências e intenções profissionais da enfermeira na assistência ao
parto e nascimento. Enquanto pre-sença inserida no mundo do cuidar, soube
compreender a quantas andava seu poder-ser profissional, já que os textos de-
monstraram a necessidade de que o papel assumido fosse não de repetir as ações
normatizadas pelas políticas governamentais, mas sim que possibilitassem
caminhos para um cuidar diferenciado, com valorização de competência e espaço
definido institucionalmente.
Porém novos questionamentos, intenções e tendências da inserção da enfermeira
nas políticas de assistência ao parto e nascimento apontam para um movimento de
obscurecimento e des-velamento próprio do caráter fenomênico da questão.