Acerca de diretrizes curriculares e projetos pedagógicos: um início de reflexão
DIRETRIZES CURRICULARES EM DEBATE
Acerca de diretrizes curriculares e projetos pedagógicos: um início de reflexão
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Sobre las directrices curriculares y proyectos pedagógicos: un principio de
reflexión
About curricular guidelines and pedagogical projects: starting a reflection
Dagmar Estermann MeyerI; Maria Henriqueta Luce KruseII
IEnfermeira, Doutora em Educação, Professora Adjunta da Faculdade de Educação
da UFRGS
IIEnfermeira, Doutoranda em Educação (PPGE), Professora Adjunta da Escola de
Enfermagem da UFRGS, E-mail: kruse@uol.com.br
1 Introdução
Não sejas nunca de tal forma que não possas ser também de outra
maneira.(...) E não perguntes quem é aquele que sabe a resposta, nem
mesmo a essa parte de ti mesmo que sabe a resposta, porque a resposta
pode matar a intensidade da pergunta e o que se agita nessa
intensidade. Sê tu mesmo a pergunta(1:53).
Discussões que envolvem a implementação de mudanças curriculares usualmente se
concentram na busca de respostas que delimitem, com uma certa segurança, o que
deve ser transmitido e como deve se dar essa transmissão, em determinado nível
de formação. Com esse procedimento, permanecemos sempre muito próximos daquilo
que já está instalado e tendemos a reproduzir, em grande medida, as mesmas
verdades e as mesmas situações. Com as palavras de Larrosa, que abrem esse
texto, estamos indicando nosso desejo de experimentar uma mudança de foco: das
respostas para as perguntas, da certeza para a dúvida, da prescrição para a
problematização. Com tal postura não estamos, aqui, nos propondo a re-escrever
uma história dos currículos de enfermagem ou pretendendo recolocar a discussão
sobre as circunstâncias políticas em que se produziram as atuais Diretrizes
Curriculares Nacionais, ou, ainda, questionando a sua legitimidade, uma vez que
as mesmas foram elaboradas com base em uma multiplicidade de propostas
construídas no âmbito da própria Enfermagem, ao longo dos últimos anos. O que
desejamos, ao desalojar a dúvida e a incerteza dos redutos em que costumamos
encarcerá-las, é sensibilizar o nosso olhar para outros tipos de expressão e de
possibilidade. E isso significa, em determinados momentos, retomar alguns
conceitos, pressupostos ou procedimentos e relacioná-los, de modo direto ou
através de indagações, com a história, com as condições de sua emergência, com
aquelas condições que lhes garantiram sua materialidade.
Uma primeira observação a ser resgatada é que, nos últimos anos, as críticas e
avaliações acerca dos pressupostos que têm norteado o ensino têm enfatizado que
a incorporação intensiva de tecnologia e a centralidade do hospital para o
desenvolvimento das práticas de saúde não têm produzido os impactos que
desejaríamos nos indicadores sanitários e, nem sequer, uma maior satisfação dos
usuários. Embora reconhecendo que os avanços tecnológicos têm sido úteis para a
humanidade, melhorando a qualidade e a expectativa de vida de determinados
grupos, não temos sido capazes de fazer com que estas conquistas atinjam
majoritariamente a população.
Em países com as características do Brasil isso fica ainda mais difícil, devido
às grandes desigualdades sociais e à pesada carga financeira que um sistema de
saúde com essas características agrega para uma grande parcela da sociedade.
Faz todo o sentido, então, a proposição de outras referências para a formação
profissional, as quais deveriam estar sustentadas em estratégias de renovação
capazes de fazer frente ao desafio de qualificar enfermeiras/os que contribuam,
de forma efetiva, para a implantação e/ou aprimoramento de uma proposta de
atenção à saúde mais justa, mais igualitária e de melhor qualidade. E isso
implica, também, repensar as relações entre enfermagem e sociedade brasileira
e, sobretudo, repensar o seu lugar e a sua responsabilidade no contexto das
políticas públicas de saúde e educação, em sua configuração atual.
Com essa perspectiva, não deveríamos perder de vista determinadas
características deste tempo que estamos vivendo, porque elas podem dimensionar
melhor a discussão que estamos propondo, aqui. As reformas educacionais
instituídas no Brasil desde a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases - LDB,
em dezembro de 1996, dentre outros aspectos, vêm determinando novas
configurações aos padrões curriculares que, até recentemente, vigoravam em
todos os níveis e modalidades de ensino. A tais medidas têm se contraposto
movimentos de alguns segmentos da sociedade civil e, no campo específico da
educação superior, podemos encontrar um exemplo concreto disso nos debates
desencadeados a partir das proposições que emanaram do MEC para reformular a
formação, em nível superior, de professores/as para atuarem na educação básica.
No contexto da educação básica e da formação de professores, tais debates e
movimentos têm-se consolidado desde 1994/5, quando o MEC propôs ao País os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN's), cujo processo de elaboração e
promulgação guarda muitas semelhanças com este que estamos vivendo, hoje, no
ensino superior. Exatamente por isso, poderia ser útil mencionar algumas das
indagações que nortearam o movimento de contraposição das entidades
representativas dos/as educadores/as aos PCN's, porque tais indagações deveriam
servir de pano de fundo para a discussão que estaremos efetivando nesta
oficina. Tomando como referência a questão "Faz sentido a idéia de um
currículo nacional?", um dos documentos de contestação, então elaborados,
enfatizava que a pergunta que deveria anteceder toda a discussão acerca da
própria proposição de um currículo nacional - o que as diretrizes curriculares
também pretendem ser, nas diferentes áreas de formação no ensino superior - diz
respeito, exatamente, à pertinência de se ter um currículo nacional, sobretudo
se tal discussão for inserida no bojo da teorização mais recente desenvolvida
no âmbito das Teorias do Currículo(2).
As demais questões colocadas naquele documento também poderiam ser re-
elaboradas para pensarmos esse contexto que estamos vivendo, aqui: estamos nos
defrontando com diretrizes curriculares ou com um currículo nacional? Onde e
como tais diretrizes se distanciam ou modificam, substantivamente, os
currículos mínimos nacionais que elas vêm substituir? Quais são as vozes
presentes e quais são as vozes ausentes neste texto que chama para si a
autoridade e a competência para apresentar uma posição de consenso acerca dos
pressupostos que devem nortear a formação profissional em enfermagem, em nível
nacional?
A promulgação de diretrizes curriculares para os cursos de formação
profissional em nível de graduação está inserida em um discurso que anuncia uma
ampla reforma educacional do ensino superior brasileiro. Gimeno Sacristánalerta
que, sob a denominação de reforma se abrigam "uma infinidade de tipos de
iniciativas e programas com propósitos muito variados"(3:51), desde a
adequação do ensino às demandas do mercado de trabalho até a descentralização
da administração do sistema, passando pela incorporação de novas tecnologias
educacionais ao currículo ou visando melhorar o rendimento dos alunos ou,
ainda, melhorar a qualidade do trabalho docente. Apontando para uma situação
que também nos é muito familiar, qual seja, a de que a área da educação é, em
geral, preterida e desvalorizada na concretude da escala de prioridades
estabelecida pelas forças econômicas, políticas e sociais, Sacristán constata
que é, exatamente, por isso que "todo programa de reforma encontra
rapidamente ecos e esperanças nos mais diretamente interessados na educação,
ou, ao menos, nos que vivem dela [as escolas e os professores]"(3:52);
ecos e esperanças que estão sujeitas a inevitáveis decepções, uma vez que se
põe mais fé "na hermenêutica e no discurso do que na análise crítica e na
experiência histórica"(3:52).
Então, mesmo que não estejamos, nesse momento, contestando a urgência histórica
que nos incita a buscar formas de traduzir tais diretrizes em currículos ou
projetos pedagógicos, o processo mesmo de sua tradução exige um questionamento
mais abrangente dos pressupostos básicos que as atravessam e constituem, porque
Em educação [e, em especial, na enfermagem] sobrevive, em grande
medida, uma forma de entender a mudança social que se nutre de um
certo messianismo e da mentalidade burocrática tradicional. Isso
consiste em atribuir ao discurso que se difunde uma força capaz de
transformar a prática, um discurso cuja realização se tornará
realidade pela própria força de evidência de suas virtudes e através
de intervenção administrativa [...] Se existisse uma análise
constante das demandas sociais, se existissem formas de envolvimento
dos diferentes grupos que participam do sistema educacional [e do
sistema de saúde] [...] se fosse realizada uma constante avaliação da
cultura escolar [e sanitária], se existisse um sistema eficaz de
aperfeiçoamento de ação contínua, se existisse uma comunicação fluida
entre a cultura externa e aquela que é 'enlatada' nos currículos, não
haveria necessidade de se utilizar com tanta freqüência esse rito [de
reformas] recorrentes(3:53-4).
Tendo delineado essas posições básicas que, a nosso ver, deveriam atravessar a
discussão acerca das possibilidades de implementação das diretrizes
curriculares, passamos agora para um olhar mais próximo ao texto das diretrizes
curriculares.
2 Diretrizes curriculares e currículo: um olhar mais próximo do texto
Um dos conceitos chave para iniciar qualquer discussão acerca da implementação
de reformas educacionais é o conceito de currículo. No campo da educação, o
currículo se constitui como sendo um dos elementos centrais em torno do qual
giram os debates sobre a escola (em sentido amplo) e seu significado social. A
teorização educacional crítica, há muito tempo, consolidou a idéia de que o
currículo não envolve apenas questões técnicas, relativas a conteúdos de
ensino, procedimentos didáticos e métodos e técnicas pedagógicas, tal como ele
era concebido pelas pedagogias tecnicistas dos anos 70 ou 80, enfatizando que
ele é um artefato social e cultural que precisa ser compreendido e discutido
considerando-se as suas determinações históricas, sociais e lingüisticas. No
Brasil, muitos trabalhos foram publicados e desenvolvem a perspectiva de que o
currículo não é um elemento inocente e neutro de transmissão desinteressada do
conhecimento social disponível(4-7). Eles enfatizam que
O currículo está implicado em relações de poder, [que ele] transmite
visões sociais particulares e interessadas e desta forma está
envolvido com a produção de identidades individuais e sociais
particulares. Sendo assim o currículo, qualquer que seja ele, têm uma
história que o vincula a formas específicas e contingentes de
organização da sociedade e da educação(4:8).
No contexto desse debate, currículo passa a ser entendido como sendo o núcleo
que corporifica o conjunto de todas as experiências cognitivas e afetivas
proporcionadas aos estudantes e às estudantes no decorrer do processo de
formação, o que significa entendê-lo como sendo um espaço conflituoso e ativo
de produção cultural(6). No currículo confrontam-se diferentes culturas e
linguagens, e professoras e professores, estudantes e administradores
freqüentemente divergem em relação às aprendizagens e práticas que devem ser
escolhidas e valorizadas. Isso pode ser reconhecido, facilmente, se pararmos
para pensar um pouco nesse processo que estamos vivendo, aqui, ao nos reunirmos
para discutir quais são as diferentes possibilidades de implementação das
diretrizes curriculares. A Nova Sociologia da Educação, desde as suas origens
na década de 70, na Inglaterra, vem apontando para a importância de se discutir
os processos que envolvem a produção, seleção, distribuição, ensino/
aprendizagem e avaliação do conhecimento escolar e a sua relação com o controle
e a dominação sociais.
O que se tem enfatizado mais recentemente é a importância de se interrogar o
que se chama de "conexões entre linguagem e poder" (5:11), a fim de
se compreender como o currículo, com sua autoridade textual, está implicado com
a produção de representações e identidades culturais (e profissionais) e,
portanto, com a produção, transformação e/ou manutenção de diferenças e de
desigualdades sociais. Isso aponta para a necessidade de se analisar,
criticamente, uma gama de questões que envolvem os processos de formação, para
além da (já complicada) operação de transposição de determinados pressupostos e
princípios para um projeto pedagógico ou para uma grade curricular.
Alguns exemplos de tais questões: quais são as concepções de sociedade,
educação, saúde e enfermagem que estão explícitas e/ou subjacentes nestas
Diretrizes Curriculares? Elas convergem ou conflituam com as concepções dos
diferentes grupos (ou escolas) encarregados de traduzi-las em currículos ou em
projetos pedagógicos, como quer a linguagem oficial? Como se pode pensar essa
relação entre diretrizes nacionais "que devem ser seguidas por todas as
instituições de ensino superior"e projetos pedagógicos coletivamente
construídos (portanto, projetos locais), em um contexto diverso e multifacetado
como esse com que nos defrontamos no Brasil contemporâneo? Não precisaríamos,
aqui, questionar a idéia de um currículo nacional, uma vez que os objetivos e
conteúdos relacionados nas diretrizes parecem estar a constituir o_currículo, o
que deslocaria, exatamente, esta idéia mais ativa e local de currículo?Onde e
como se pode localizar e/ou produzir espaços que permitam às instituições
formadoras potencializar as condições específicas de cada uma, em especial no
que se refere à qualificação de seu corpo docente, à sua capacidade de
desenvolver pesquisa e extensão, à sua inserção no sistema público de saúde e
às condições da infra-estrutura de que dispõem? Trata-se, aqui, de buscar
abarcar o amplo espectro da formação proposta pelas diretrizes ou de escolher e
verticalizar aquelas áreas priorizadas no Projeto Pedagógico da Instituição
formadora?
3 Diretrizes Curriculares: um olhar por dentro do texto
O documento das Diretrizes Curriculares(8)para a graduação em Enfermagem admite
variadas leituras. Uma das possíveis leituras envolveria problematizar algumas
expressões ou conceitos que aparecem de forma mais recorrente, porque esse
exercício nos permitiria observar seus sentidos ou funções naquele contexto.
Por exemplo, destacaríamos a expressão enfermeiro2 com formação generalista.
Qual é o significado desta expressão? No que ela se diferencia de formação
geral? A expressão generalista comporta múltiplas interpretações, o que, por si
só, determina uma indefinição sobre o tipo de profissional que se deseja
formar. Está-se enfatizando, com ela, um conhecimento geral de enfermagem em
contraposição a um conhecimento especializado? Ou podemos pensar que ela
encerra uma idéia de que o egresso de um currículo deste tipo deveria ser
capacitado a atuar em todos os cenários de prática? Seu objetivo seria o de
enfatizar a importância da formação ir além dos aspectos técnicos, do saber
fazer, atingindo outras competências? Lima(8), por exemplo, ao refletir sobre
as diretrizes curriculares propostas para os cursos de Nutrição, supõe que a
mudança de formação generalista para formação geral talvez expresse o que se
pretende fazer de uma forma mais adequada, já que o caráter geral da formação
se refere tanto a uma base filosófica que fundamenta a idéia de humanismo, como
a um conjunto de conhecimentos que possibilitaria o domínio da argumentação e
das práticas.
Outros termos que aparecem de forma recorrente nas Diretrizes são:
interdisciplinaridade, competências e habilidades, autonomia institucional e
flexibilidade.
A interdisciplinaridade, vista como solução para muitos dos males que acometem
o ensino desde a segunda etapa da educação básica, em geral é manejada como uma
"solução mágica", principalmente quando se trata de justificar
mudanças curriculares ou propor novos currículos, inclusive com a finalidade de
legitimar tanto discursos renovadores, quanto os defensores destes discursos.
Mesmo reconhecendo a importância da ênfase em uma formação interdisciplinar no
contexto da educação (e concordando com ela), é preciso lembrar que a
interdisciplinaridade ou a integração curricular não configura uma proposta
nova no âmbito da formação profissional em saúde e nem da Enfermagem(9). As
experiências que foram levadas a efeito e que foram divulgadas não permitem
dizer que tal modalidade de ensino tenha produzido resultados concretos ou,
mesmo, relevantes, uma vez que não se conhecem exemplos, na educação superior,
que tenham conseguido manter essa modalidade de ensino em funcionamento, por
muito tempo.
De uma forma bastante simplificada, podemos dizer que o movimento pela
interdisciplinaridade propõe uma integração entre os diferentes campos do
conhecimento, a qual seria possível a partir de novos arranjos curriculares e
diferentes maneiras de se trabalhar os conteúdos disciplinares, para alcançar
uma unidade do saber. Esta fusão disciplinar faria com que desaparecesse a
própria disciplinaridade. Considerando-se a própria organização política,
funcional e burocrática das instituições de ensino superior, parece bastante
difícil pensar um processo de formação profissional que não seja baseado em
alguma estrutura, em unidades de algum modo estanques e repetíveis, com algum
tipo de articulação entre si. Assim, as unidades propostas, sejam quais forem
os nomes que elas tenham - disciplinas, eixos temáticos, núcleos conceituais,
grandes temas etc. - estão normalmente presentes no currículo, para lhe
emprestar um arcabouço, uma estrutura que permita a sua organização. Desta
forma, mesmo que possamos imaginar um saber que não seja organizado pelas
disciplinas, provavelmente teremos sempre um saber dividido segundo algum eixo,
elemento ou categoria(10). Se quisermos romper com essa forma de organização do
saber, quais são os elementos que temos - em termos de quantidade e qualidade
do corpo docente, em termos de condições de trabalho, em termos de infra-
estrutura, em termos de articulação com o sistema público de saúde, etc. - para
pensar ou propor estratégias que possibilitem uma inter-relação ou uma efetiva
integração entre as disciplinas do curso, em contraposição a um olhar
disciplinar isolado? Será que, ao contarmos com o subsídio de muitas
disciplinas, atuando convergentemente, num processo transdisciplinar
articulado, podemos dar novos sentidos ao conhecimento? Que outras condições
seriam necessárias para apoiar o desenvolvimento de tais propostas?
O discurso sobre competências, por sua vez, atravessa a discussão sobre a
formação de pessoal para o setor saúde desde que este conceito foi introduzido
pela LDB. Mesmo assim, ainda que sua adoção esteja legalmente sustentada e seja
oficialmente incentivada, há espaço, aí, para um caloroso debate acerca da
pertinência de sua incorporação nas propostas de formação profissional.
Portanto, existe ainda um longo caminho a ser percorrido para que se
estabeleçam modos de formação profissional pertinentes com suas propostas.
Desta forma, poderíamos perguntar, quais são os (múltiplos) sentidos contidos
no termo competência? Em relação às tão faladas "novas competências para o
trabalho", quais seriam os cenários de trabalho que deveríamos projetar e
como incluir esta projeção em nossos projetos político-pedagógicos? Quais
seriam as competências cognitivas e comportamentais requeridas? Na maioria das
vezes, um currículo por competências pode estar apenas tomando por base uma
determinada noção de competência, sem que seja possível estabelecer o que
caracterizaria uma formação profissional relacionada a determinado tipo de
atenção à saúde Como se poderia organizar um projeto político-pedagógico que
contemplasse o conjunto de competências cognitivas e comportamentais e que, ao
mesmo tempo, tivesse relação com as peculiaridades regionais e a vocação
institucional? Isso seria possível? Isso seria desejável? Como se poderia
pensar um currículo que contemplasse, também, competências comunicativas,
comportamentais, sociais e políticas? Estas questões não pretendem,
necessariamente, colocar em xeque as competências previstas nas Diretrizes
Curriculares, mas apontar para o fato de que o exercício da problematização é
indispensável nesse processo de proposição de uma formação que responda, por
exemplo, à necessidade de competências para o trabalho(11).
Ainda com relação a este mesmo tópico, observamos que ao lado da expressão
competência, é utilizada reiteradas vezes a expressão habilidades, significando
uma complementaridade entre uma expressão e a outra, competências e
habilidades. A consulta a um dicionário da língua portuguesa(12), nos diz que
este verbete corresponde aos sentidos de ser apto, competente, capaz; enquanto
competência, seria a qualidade de quem é capaz de apreciar e resolver certo
assunto, fazer determinada coisa, capacidade, habilidade, aptidão e idoneidade.
Tais palavras têm uma longa história no campo da educação e da pedagogia e não
seria inadequado perguntar-nos o que significa a sua recolocação no documento
das Diretrizes Curriculares. O que elas podem estar a representar e para que
direções apontam, no contexto da formação? Nossa memória temporal, histórica ou
política, poderia nos ajudar a resgatar, através destas palavras - muitas das
quais fizeram muito sucesso em outros tempos (por exemplo, poderíamos relembrar
a taxonomia dos objetivos instrucionais ou as propostas de qualidade total em
educação) - sentidos que re-emergem no presente, com outras denominações.
O último aspecto que gostaríamos de problematizar, para este início de
conversa, é que a resolução que institui as Diretrizes Curriculares prevê,
explicitamente, em seu Artigo 14, inciso IV, que a estrutura do curso de
graduação em Enfermagem deve assegurar "os princípios da autonomia
institucional, da flexibilidade, de integração estudo/trabalho e de
pluralidade, no currículo". Que sentidos podem ser atribuídos aos termos
autonomia e flexibilidade, considerando-se a estrutura e a linguagem dessa
resolução? A formação profissional nela proposta delineia-se em torno de alguns
tópicos apresentados de forma seqüencial, quais sejam: perfil do formando
egresso, competências e habilidades gerais, competências e habilidades
específicas, conteúdos essenciais, obrigatoriedade do estágio, integração com o
serviço de saúde, previsão de atividades complementares de diferentes tipos,
busca da articulação entre ensino, pesquisa e extensão/assistência, respeito ao
pluralismo e à diversidade cultural, dentre outros, e proporcionar tudo isso
considerando "a inserção institucional do curso, a flexibilidade dos
estudos e os requerimentos, demandas e expectativas de desenvolvimento do setor
de saúde na região" (CNE/CES n.3, artigo 10, parágrafo 2º). A linguagem
utilizada é, quase sempre, imperativa, universalizante e pontual. Caberia,
então, a pergunta: autonomia e flexibilidade se configuram como possibilidades
de fato ou como recurso de retórica, nesse contexto? Como tais noções poderiam
ser politicamente significadas e exploradas, para abrigar interesses,
necessidades ou a vocação dos diferentes grupos e instituições, considerando-se
o deslizamento entre obrigatoriedade e flexibilidade que permeia todo o texto?
Sobretudo se considerarmos as políticas nacionais de avaliação, como o Provão,
que as escolas e cursos de enfermagem deverão enfrentar de forma quase
concomitante à implementação das diretrizes curriculares nacionais? Quais os
efeitos políticos, acadêmicos, sociais e, também, econômicos derivados de um
possível distanciamento do espaço de manobra com que a noção de flexibilidade
parece acenar?
Diretrizes curriculares: a intencionalidade da problematização
O questionamento dessas (e de outras) proposições - a nosso ver nucleares -
contidas no texto que constitui as diretrizes, que procuramos estimular a
partir destas reflexões iniciais, não indica que estamos desconsiderando os
esforços que muitas/os colegas têm despendido para favorecer modificações que
possibilitem uma efetiva melhoria na formação do pessoal da área da saúde.
Entretanto, o que estamos tentando é tornar problemático, e, portanto
histórico, um documento que apresenta determinados pressupostos como naturais
e/ou consensuais. Como se eles não tivessem uma filiação, um domínio e uma
vontade de produzir enfermeiras e enfermeiros com uma dada identidade
profissional. Exatamente por isso, pensamos que as diretrizes curriculares
podem ter a finalidade de fornecer referências para as discussões a respeito da
formulação, desenvolvimento e avaliação do projeto político pedagógico dos
cursos de enfermagem, e, não necessariamente, a função de estabelecer
currículos e formatações para estes cursos.
Uma vez que o recorte a ser efetivado pelas instituições formadoras deveria
vincular-se, como procuramos sugerir no texto, às condições de inserção social
específicas de cada uma, entre as quais a existência de um corpo docente
qualificado, a capacidade de desenvolver pesquisa e extensão, condições de
trabalho e infra-estrutura adequada, não se pode deixar de enfatizar a
importância de docentes e discentes trabalharem em equipe e participarem
ativamente de todo o processo e não, apenas, de algumas partes do mesmo, para
que a discussão das diretrizes e do projeto político-pedagógico se configure
como um espaço de reflexão e de construção coletiva, na instituição.
Desta forma, as referências e parâmetros contidos nas diretrizes poderiam
auxiliar as escolas/faculdades/cursos para que, no exercício de sua autonomia,
formulassem e organizassem seus projetos pedagógicos, elegessem estratégias e
modos de fazer articulados, ao mesmo tempo, às demandas políticas e sociais da
sociedade brasileira mais ampla e às necessidades e interesses dos
"locais" onde se inserem de modo a reordenar a formação dos recursos
humanos em saúde e, em especial na enfermagem, no sentido de criar outras
possibilidades de desenhar um modelo de atenção à saúde que contemple práticas
sanitárias relacionadas a um conceito ampliado de saúde e de justiça social.
Delinear esta trajetória político-pedagógica, por dentro das diretrizes, sem
colar-se ou subsumir-se nelas, é o desafio maior que está posto, a partir de
agora.