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BrBRCVHe0034-71672003000500016

BrBRCVHe0034-71672003000500016

National varietyBr
Country of publicationBR
SchoolLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN0034-7167
Year2003
Issue0005
Article number00016

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Reforma psiquiátrica: uma analítica das relações de poder nos serviços de atenção à Saúde Mental

1 Uma arte do pensar O tema é pensado a partir das leituras de Michel Foucault, em especial, o papel desempenhado na sociedade moderna pelo poder disciplinar e, os questionamentos, enquanto profissional da saúde mental, sobre o processo de reforma psiquiátrica vigente no Estado do Rio Grande do Sul. Numa sociedade marcada pela intolerância, àqueles que manifestam condutas ou comportamentos considerados "diferentes"; a história da saúde mental é a história da exclusão do sofredor psiquico. Falar sobre o processo de reforma psiquiátrica, no Estado do Rio Grande do Sul é falar das lutas e da vitória conquistada através da Lei 9.716 (1,2). Lei de Proteção Aqueles que Padecem de Sofrimento Psíquico. Passados dez anos da aprovação desta Lei, pensamos que o problema não está centrado no fato de se manter ou não a análise da reforma na dinâmica imperialista da psiquiatria ou mesmo nos gastos públicos. O problema reside no fato de, aparentemente, desconhecermos, ou melhor, não reconhecer na prática, a necessidade estratégica da reforma psiquiátrica, ao substituir o interesse na exclusão do louco por uma prática que propõe a sua (re)inserção no social. Em contrapartida, nos perguntamos: podem a dimensão e caráter ético-político da própria reforma ficarem subjugados à intervenção sobre a individualidade do sofredor psíquico e, não, sobre o sofrimento, para transformá­lo e/ou emendá- Io? Na verdade, toda dimensão técnica tem, também, uma dimensão política: o que se pretende com o fazer nos serviços de atenção à saúde mental dentro do processo de reforma psiquiátrica e que valores estão presentes nestes serviços? Fruto da observação e vivência em alguns serviços de atenção a saúde mental no Estado do Rio Grande do Sul, arriscamos em dizer que, nos últimos anos, a discussão sobre o processo de reforma, entre os trabalhadores de saúde mental, está centrada, principalmente, no caráter administrativo da reforma psiquiátrica. Ainda é muito pequena a parcela de trabalhadores de saúde mental em busca de uma discussão mais ampla e que abranja os três aspectos do processo em questão: técnico, ético e político(3,4).

Para compreender como se dão as relações de poder nos serviço de atenção à saúde mental é preciso analisar como jogos de verdade se põem em marcha e podem estar ligados às relações de poder. Buscamos saber, por exemplo, como a organização de uma nova prática de assistência em saúde mental pode estar ligada a toda uma série de processos sociais e econômicos, porém, também, à institucionalização e manutenção de práticas disciplinares de poder, onde todo saber assegura o exercício de um poder. Os resultados observados na assistência em saúde mental no processo de reforma implantado no Rio Grande do Sul apresentam algumas contradições: implementou-se a atenção ambulatorial e foram, sim, criados os chamados serviços alternativos. Entretanto, sem a devida clareza e conscientização do que exatamente deveria mudar, a partir da lei, corre-se o risco de que. fundamentalmente se modifiquem os espaços de realização do tratamento. transferindo-se e conservando-se as práticas de exclusão, discriminação e disciplina.

[...] abrir uma instituição, o manicômio, não é apenas abrir as portas, mas abrir a nossa cabeça em confronto com aquele que nos procura(5:36).

Esta afirmação vai ao encontro de nossa maior dificuldade. ou seja. de que na ação prática possamos observar o que simboliza a reforma psiquiátrica e o processo de desinstitucionalização que a antecede. conforme os princípios da Lei no. 9.716(6) da Reforma Psiquiátrica, no Estado do Rio Grande do Sul. Cabe salientar que esses princípios se referem: a não limitação da condição de cidadão; a garantia da liberdade; a atenção integral por parte do Estado; o favorecimento da inclusão social do sofredor psíquico asilado como sujeito de direitos; entre outros.

Esse processo social complexo - reforma psiquiátrica ­que suscita conflitos, crises e possibilidades de transformações na organização sanitária, na justiça, nas relações de poder. enfim, na ótica da saúde e não , nos modos de administração dos recursos públicos.

"O poder é um feixe de relações mais ou menos organizado. mais ou menos piramidalizado, mais ou menos coordenado"(7:92). e necessitamos utilizar os princípios de análise que permitam uma analitica do poder nos serviços de atenção à saúde mental integrados ao processo de reforma psiquiátrica vigente no Estado do Rio Grande do Sul. A análise da dimensão ético-política. longe de contaminar e danificar o processo de reforma psiquiátrica, antes, ajuda a convertê-Ia em um poderoso agente de transformação da realidade social.

Reconhecer no processo de reforma um projeto ético-político-social é reavaliar substancialmente o conceito tradicional de saúde mental; é colocá-Ia a serviço do desenvolvimento social e não da estrutura econômica; é colaborar com a concretização de uma sociedade que contemple a dimensão ético-solidária.

A política, como uma das importantes dimensões do ser humano, deve ser parte integrante da desconstrução/ construção das práticas em saúde mental. Se, queremos que o processo de reforma psiquiátrica se edifique e efetive através da prática da não exclusão, nos marcos da desinstitucionalização e, mais ainda, no reconhecimento do doente mental como sujeito de direitos e deveres. é preciso propor um projeto que analise como se determinada relação de forças nos serviços alternativos de saúde mental e quais necessidades estratégias acompanham o processo de reforma psiquiátrica, em andamento. no Estado do Rio Grande do SuI(4).

Acreditamos que é na desmontagem de aparatos externos e internalizados e na desconstrução de modelos e valores racionalístico-cartesianos que está a possibilidade de propormos o estudo do poder a partir da visualização das técnicas e táticas do poder disciplinar que se estabelecem entre o trabalhador de saúde mental e o sofredor psíquico. Este tipo de poder é uma das grandes invenções da sociedade burguesa e foi o instrumento fundamental para a constituição do capitalismo industrial e do tipo de sociedade que lhe corresponde. O poder disciplinar(5) enfatiza o modo como a disciplina, sendo um processo unitário, pode reduzir a força do corpo em seu aspecto político e maximizá-Ia como força útil.

Para nós a divisão entre o saber técnico e o saber político, no processo de Reforma Psiquiátrica. é uma estratégia histórica-politica eficaz para a manutenção da hegemonia dos trabalhadores de saúde mental que exercem o poder.

O trabalho em saúde mental pertence ao campo da política e dos processos sociais e excede consideravelmente o limite do setor saúde, é objeto do entrecruzamento de múltiplas disciplinas e setores e, portanto, o problema do poder e do conflito está implícito, sendo permanentemente colocado em questão.

Em contrapartida, acreditamos que se o processo de cuidado desenvolvido nos serviços de atenção à saúde mental promover alianças entre o conhecimento técnico e político, e acordo com os principios de humanização e democratização das relações preconizados na Lei 9.716, da Reforma Psiquiátrica, estará possibilitando esse mesmo agir ético­solidário, minimizando o poder da norma, os mecanismos individualizantes e contribuindo, assim, para a diminuição da ordenação das multiplicidades humanas indo de encontro aos objetivos do poder disciplinar(1).

No decorrer do trabalho, despertamos para inúmeros questionamentos acerca do poder, dos dominios do saber e das técnicas disciplinares utilizadas no ato de assistir em saúde mental. Ainda, são poucos os serviços, no processo de reforma, que incluem o usuário, como sujeito, do processo diagnóstico. E, em menor número, ainda, aqueles serviços que promovem a participação do usuário na gestão dos serviços de saúde mental e nas discussões realizadas nas reuniões da equipe de saúde mental. No entanto, percebo que é preciso construir um novo saber sobre a loucura e o louco, no processo de reforma psiquiátrica no Estado e no País que reflita, no discurso e na prática concreta do trabalho, ações fundamentadas na solidariedade entre iguais, privilegiando a autonomia do sofredor psiquico como sujeito e fim desse processo. Cabe, ao serviço de atenção à saúde mental, no processo de reforma psiquiátrica, a busca de práticas e fazeres que visem a inclusão do sofredor psíquico nas decisões, nos rumos e ritmos a serem adotados com referência a atenção desse próprio sofredor (3).

Não o poder,mas sim, relações de poder, de poder e contra-poder. "É necessário pois, para que se exerça uma relação de poder, que exista ao menos um certo tipo de liberdade por parte das duas partes"(7:99). Toda relação de poder pressupõe, portanto, a possibilidade de resistência, pois tais relações se dão entre sujeitos livres. Para que o sofredor psiquico se perceba e possa ser percebido como cidadão, como um sujeito livre no serviço de atenção à saúde mental, necessita vivenciar relações de poder ético-solidárias e de inclusão social.

Para que tal aconteça, entendemos que faça parte das ações dos trabalhadores de saúde mental, no ato de assistir, compreender o sofredor psiquico como sujeito histórico, possuidor de identidade, desejos, aspirações e com plenas possibilidades de ser o autor-ator de seu próprio destino; compreendê-Io, como cidadão e, portanto, como sujeito de direitos e deveres. Esse modo de relação entre o trabalhador de saúde mental e sofredor psíquico privilegia um agir ético­solidário onde não existem relações de dominação, mas sim, relações de poder, pois estas, se caracterizam por serem relações entre sujeitos livres; relações onde possibilidade de resistência. Procuramos, portanto, desvendar as táticas e estratégias utilizadas pelo poder disciplinar nos serviços de atenção à saúde mental. Esse poder que, ao mesmo tempo, individualiza, torna útil e dócil(8) o sofredor psiquico, o que, por sua vez, possibilita a sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos.

2 Uma arte do fazer A fim de interrogar o sentido das práticas e das experiências humanas, optamos por desenvolver uma pesquisa utilizando o método qualitativo, seguindo a proposta da Sociopoética de Jacques Gauthier(9). "É um momento importante, que revela as implicações, os limites e a riqueza do pensamento e da imaginação de cada um ... "(9:22). O grupo­pesquisador é o centro da metodologia utilizada na produção dos dados. É uma exigência ética e política na construção de um saber.

Assim, o que não se quer, em uma pesquisa, "é reproduzir as práticas instituídas de pesquisa onde o grupo pesquisado é explorado como produtor de dados e onde o sentido último da pesquisa sempre lhe escapa"(9:22).

Dos caminhos percorridos, das cidades visitadas, dos serviços de atenção à saúde mental construídos e vivenciados, ao propor este estudo, optamos pela primeira unidade de atenção sanitária e social, a prestar serviço na área de saúde mental inserida na proposta da reforma psiquiátrica. A Pensão Pública Protegida `Nova Vida" foi fundada em 1990 na cidade de Porto Alegre/Rio Grande do Sul. É uma moradia temporária para pessoas portadoras de sofrimento psíquico e precede a aprovação da Lei 9.716, da Reforma Psiquiátrica do Estado do Rio Grande do Sul. O serviço oferece: atendimento 24 horas, moradia temporária, alimentação, manutenção, limpeza, serviço de enfermagem, nutrição, psicologia, serviço social e terapia ocupacional. O acompanhamento clínico é realizado fora da Pensão (consultas especializadas, exames diagnósticos, prescrição da medicação, internação hospitalar, procedimento ambulatorial, etc.). Quando do início da pesquisa, a Pensão contava com 14 moradores. Todos eles, de acordo com a equipe técnica do serviço, apresentavam dificuldades no convívio familiar e social, mas com perspectivas de (re)inserção social apontadas pela mesma equipe.

Os usuários da Pensão, em sua maioria, trazem um histórico de longas internações em hospitais psiquiátricos e importantes necessidades no âmbito da organização da vida prática. A Pensão é um espaço aberto onde a saída é livre e a circulação, também. Os usuários obedecem a uma rotina de atividades pré- fixadas como alimentação, cuidados de higiene, assistência de enfermagem, oficinas de arte, terapia e assembléias que se realizam no salão principal da Pensão. São, ainda, atendidos individualmente e/ou em grupos, por uma equipe multiprofissional, composta por enfermeiro, psicólogos, nutricionista, assistente social, terapeuta ocupacional e auxiliares de enfermagem, secretaria e serviços gerais. Ao refletir sobre a necessidade de se buscar os saberes recalcados e oprimidos de quem sofre a atenção em saúde mental e, não, somente, daqueles que prestam esta atenção, foram definidos como sujeitos desta pesquisa e que compõem o grupo-pesquisador: todos aqueles envolvidos com e na atenção em saúde mental no serviço de atenção à saúde mental Pensão Pública Protegida Nova Vida. O número médio de participantes no grupo-pesquisador foi de 22 pessoas em cada uma das oficinas realizadas.

Orientadas por esta compreensão foram realizados sete encontros temáticos obedecendo a metodologia do grupo­pesquisador(9). O material colhido foi submetido à técnica de análise de conteúdo proposta por Bardin(10). O perfil delineado nessa análise resultou na formação de 5 unidades de significação complexa e contemplou os objetivos da pesquisa que, a partir daí, permitiu outros dois momentos da análise: a inferência e a interpretação.

3 As relações entre os trabalhadores de saúde mental e o sofredor psíquico estão confusas Numa sociedade em que os elementos principais (trabalhador de saúde e sofredor psíquico) não estão mais colocados em pontos eqüidistantes (dentro e fora da "clausura") mas fazem parte de um mesmo ponto (a inserção comum no social), as relações apresentam-se de maneira confusa, incerta e ambígua. Com isso, a reforma psiquiátrica chama para si, e de acordo com as regras de um saber específico, o dispositivo disciplinar. Amparado pela modernidade, o dispositivo de poder é quem a sustenta.

Eu lembro, desde que a gente veio parar aqui, as relações eram muito complicadas e desde então, a gente vem num processo de amadurecimento, digamos das relações [...] E, eu acredito que embora tenhamos alguns vestígios do passado, de coisas muito complicadas, históricas, aqui na Casa, eu acho que a gente está reconhecendo, se apropriando mais para onde a gente vai. Eu acho que as relações estão ficando mais maduras [...] e a gente vem buscando transformar as relações numa coisa mais, talvez não tão hipócrita mas, ainda aparece. (GP) A relação aqui no serviço é uma coisa muito complexa porque tem várias linhas de relação e eu vejo que a gente trabalha num grupo de funcionários e o quanto isso tem que ser um investimento constante. A busca da relação profissional, porque as coisas se confundem, as nossas relações ficam familiares, se perde, às vezes, as questões profissionais na relação que se estabelece com o usuário.

A tolerância em excesso na relação, leva ao nível de as pessoas não terem mais limites, então eu acho que eu colocaria essa questão da tolerância nas relações como um outro aspecto que precisa ser revisto na Reforma. A disciplina faz bem para relação. (GP) A reflexão crítica do grupo-pesquisador nos conduz a uma interpretação do sujeito que tenta compreender o significado de seu comportamento, um significado desconhecido dele. Por outro lado, uma tentativa de entendimento na explicitação de um sentimento que acredita traduzir o que de fato ocorre nas relações entre o sofredor psíquico e o trabalhador de saúde mental, percebe que as relações se configuram de modo confuso e por vezes contraditório. Será necessário, então, buscarmos um caráter próprio às relações de poder que se estabelecem entre o trabalhador e o sofredor no serviço de atenção a saúde mental? A Casa não tem (uniforme), fica essa relação de confusão, as pessoas não sabem o seu papel. O que tu estás fazendo aqui? O seu papel profissional. Essa exposição, as pessoas não sabem. As pessoas ficam perdidas. Essa é muita exposição. É um profissional, tem que ter (uniforme) para não se expor mais, tem que ter limite. Não posso me expor, aqui, como no meio íntimo, dos amigos, na minha casa. Tenho que me impor, não totalmente, diferente, mas tenho que ter um outro tipo de relação. (GP) Acham que está tudo resolvido, não tem muros, um mundo, uma sociedade tão forte mas, com barreiras tanto quanto aquelas dos muros do manicômio. As pessoas, nós também, temos prisões nossas que também temos que enfrentar quotidianamente. (GP) Entendo tratar-se de uma constatação simplificadora, mas, de suma importância no tocante à necessidade de se estabelecer estratégias por parte dos trabalhadores de saúde mental na definição e/ou ajustes das relações nos serviços de atenção à saúde mental. Colocar o uniforme pode significar uma proteção para o trabalhador de saúde mental que as relações que se estabelecem estão confusas, o uniforme é, portanto, algo representativo dos modos de se relacionar e dar sustentação ao poder/saber do trabalhador, ainda, (re)conhecido de um passado recente(11,12).

Observa-se, também, que para o grupo-pesquisador, frente à inexistência dos muros as pessoas não sabem como se relacionar, as relações dos trabalhadores de saúde mental estão confusas que a disciplina exige o "fechamento dos espaços" para manter o controle e a utilidade dos corpos. Essa ausência de fechamento espacial, para o grupo-pesquisador, faz com que as pessoas não consigam definir-se pelo lugar que ocupam numa série, ou mesmo, pelo afastamento que os separam dos outros. Não podemos deixar de notar, como assinado anteriormente, que esta necessidade de uma organização espacial pode, também, ser representativa da necessidade manifesta pelo poder disciplinar, em que A cada indivíduo, seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo. [...] Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como se encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-Io, sancioná-Io, medir as qualidades ou os méritos(8:129).

4 Tecnologias normalizadoras ampliando seus domínios A normalização do social implica em não deixar escapar nenhum detalhe, elemento ou mesmo acontecimento; implica em observar o objeto fechado, isolado do todo.

"Das coisas separáveis ou separadas, é preciso conceber também sua inseparabilidade"(13:65). A preocupação apontada pelo grupo­pesquisador em relação a troca do café, ao controle e a coordenação do ato, demonstram a submissão do sofredor psíquico a tais mecanismos. Ou seja, proposta pelos trabalhadores de saúde mental a troca do café pelo café descafeinado traduz, no meu entendimento, um caráter corretivo transfigurado numa intervenção essencialmente terapêutica. A escolha da palavra café pelo grupo-pesquisador torna visível a justificativa da utilização de estratégias disciplinares de poder para a compreensão do que é dito como "verdadeiro" por parte de quem detêm o saber-poder.

A divisão entre o saber técnico e político, no processo de Reforma Psiquiátrica, é uma estratégia histórica-política eficaz para a manutenção da hegemonia dos trabalhadores de saúde mental que exercem o poder. O trabalho em saúde mental excede consideravelmente o limite do setor saúde, é objeto do entrecruzamento de múltiplos fatores e, portanto, o problema do poder e do saber é permanentemente colocado em questão no quotidiano do trabalho em saúde mental. Penso, que quando este poder é colocado em funcionamento, o sofredor psíquico (o outro da relação) perde a sua verdade internalizada, perde a possibilidade de exercitar o desejo, deixa de ser o árbitro final de seu próprio discurso.

Tinha o café normal e o descafeinado, então, assim, o café normal era a Reforma Psiquiátrica Velha, o café descafeinado é a Nova Reforma Psiquiátrica. Nós tiramos uma coisa deles e colocamos outra. (GP) A troca do café? A minha postura foi mostrar o novo e ver que o novo é tão bom quanto o velho. (GP) Esta analogia entre o café e a reforma psiquiátrica, tenta introduzir no novo modelo também, os mecanismos disciplinares de poder. Trata-se, ao mesmo tempo de Ihes impor uma ordem e criar uma estrutura científica que explique o que o café descafeinado significa. O sujeito (sofredor psíquico) não poderia saber os segredos de seu próprio poder (o entendimento da utilização do café cafeinado como forma de resistência aos efeitos impregnadores da medicação). Como fortalecer esta espécie ameaçada de prática resistente e considerar como poderiam ser fortalecidas outras práticas resistentes de modo não-totalizador e não-normalizador? Estas considerações feitas pelo grupo-pesquisador reforçam a importância de se identificar as diversas formas de resistência manifestas pelo sofredor, no quotidiano do serviço de atenção à saúde mental, como forma de enfrentamento das tecnologias normalizadoras e da expansão de seus domínios.

Eu posso dizer que não liberdade e impor minha força. (GP) Tem os macetes, a gente conhece os psiquiatras e acaba fazendo com que eles internem ou não o paciente. (GP) A emancipação do sofredor psíquico; do trabalhador de saúde mental; o reconhecimento do sofredor psíquico como sujeito de direitos e deveres possibilitará que a reforma psiquiátrica se efetive como uma prática de transformação social e não como ummero instrumento estratégico utilizado pelos trabalhadores de saúde mental. Percebemos que a emancipação do sofredor psíquico, bem como, a do trabalhador de saúde mental, para o grupo-pesquisador caminham juntas, são lados da mesma moeda. Entre avanços e retrocessos a noção do trabalho como um processo político é, vislumbrado, mais, como, uma questão de referência a uma política imposta e menos como direito de cidadania.

5 A Reforma Psiquiátrica, como o café, é uma construção do dia·a-dia Para o grupo-pesquisador não se pode limitar a Reforma a uma receita pronta, acabada. É uma construção diáriaque, a partir da experimentação, vai se construindo no dia-a-dia do próprio trabalho. Esse aspecto, salientado pelo grupo, reforça a idéia de que é preciso construir teoria e prática, categorias distintas, conjuntamente; ambas as noções deverão permear os marcos de uma abordagem antimanicomial, necessária à consolidação do processo de reforma. No presente estudo, foi possivel observar e identificar, no grupo-pesquisador, alguns aspectos que retratam o entendimento da reforma psiquiátrica como uma construção do dia-a-dia. A metáfora dos diversos modos de se fazer café, o café como uma construção diária e os tipos de café retratam, no grupo-pesquisador, a analogia com o processo de reforma(4).

Uma das coisas muito fortes que ficou, a partir dos nossos encontros, é que a Reforma é um processo e, como processo, é construção. E, hoje, ficou muito forte, através da palavra café, que é uma construção diária. Não tem as coisas prontas. Cabe a cada um e para cada um, isso é, experimentando em uma dose, uns gostam mais forte outros mais fraco, ou misturado, como tu dizes, chafé. (GP) Um dia nós estávamos trabalhando e ele disse: Vocês vão ter que imaginar; vocês vão ter que aprender a lidar com uma situação nova.

Vocês não trazem uma coisa pronta, vocês não têm uma coisa pronta para trabalhar com esse nosso pessoal. (GP) Então, a reforma psiquiátrica não surgiu, ou apareceu magicamente, para que ela esteja, é necessário que se faça. Se pratique, fazer todos os dias, assim como experimentá-Io (o café), perceber seu sabor, refletir seus benefícios, circunstâncias que devem ser diferenciadas, etc. (GP) O processo de reforma traduz um descortinar de novos saberes que não estão alicerçados mais na produção de conhecimentos objetivos sobre seres humanos entendidos como objetos da produção desse mesmo saber, mas sim, em um saber comprometido com a ética, com a liberdade dos sujeitos e com a promoção do conhecimento que se produz através do ato de aprender-ensinar e do ensinar- aprender. Pode­se dizer que, para o grupo-pesquisador, essa construção diária implica, em realmente, não haver uma "receita pronta" para a condução do processo de reforma.

6 A Pensão como um trabalho de características políticas, a Lei 9.716 Evidentemente é importante levar este questionamento para o seio das práticas e, sabermos como ele funciona no quotidiano da atenção em saúde mental. Sem dúvida, desenvolveu-se na experiência dos serviços de atenção à saúde mental um esforço contínuo de repensar os problemas ligados à implantação da reforma psiquiátrica e certas práticas de manipulação político-partidárias e de massificação. Ademais, na falta de alternativas institucionais consolidadas, configurou-se, assim, um esforço de incorporação, no plano da vida política, de mecanismos (leis, portarias, decretos) que pudessem solidificar a mudança de um sistema de atenção para outro sistema. O espaço pedagógico e o espaço de vivência política foram concebidos horizontalmente, através do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, ao integrar os diferentes atores e pautar alternativas na construção de serviços portadores da vanguarda do Movimento(1).

Este aspecto remete-nos à importância da política como um fator decisivo para a compreensão do processo de reforma, o que pode ser observado com clareza, na seguinte afirmação, do grupo-pesquisador: E, a outra questão, é a política. A gente está vivendo um momento de construção de políticas, de reformas políticas, de pensar políticas e como aPensão éum trabalho que tem características políticas eu não consigo separar mais. na política e nós somos serespolíticos, também. (GP) Cabe, a nós, trabalhadores de saúde mental, dentro do processo de reforma psiquiátrica, no ato de assistir, compreender o sofredor psíquico como sujeito histórico, possuidor de identidade, desejos, aspirações e com plenas possibilidades de participar das conquistas de seus direitos promovendo, assim, o resgate de sua cidadania. Este modo de relação preconizado, também, pelo grupo-pesquisador privilegia um agir ético-solidário, onde não existem mais relações de objetivação, mas, sim, relações de poder que para Foucault(8) se caracterizam por serem relações entre sujeitos livres; relações onde possibilidades de resistência, ou seja, no presente estudo, relações de respeito ao sofredor psíquico, isto é, relações democráticas. O grupo- pesquisador entende que o processo da reforma psiquiátrica não pode determinar o poder para alguns em detrimento de outros.

Assegurado, pelo grupo-pesquisador, portanto, a perspectiva de construções permanentes de novos modos de atenção,isto nos leva a acreditar que, por este método, não se obterá um conflito de interpretações sobre o valor ou significado finais de eficiência, produtividade ou poder de normalização no novo modelo, mas, sim, através da proposta de práticas construtoras, se estabelecerá a garantia de um exercício ético­político no quotidiano das relações entre o trabalhador e o sofredor psíquico.

7 As referências éticas como norte Quando nos referimos às questões éticas como um norte a ser buscado, reafirmamos a necessidade de se olhar o cuidado ao sofredor psíquico, tendo como objetivo da assistência em saúde mental o autocuidado. De fato, a linguagem ética da reforma é, desde o início, um componente essencial para a consolidação do processo. Uma matriz ética foi estabelecida. Por definição, seria este o modo de resolver um problema técnico ou, melhor dito, político.

Este mesmo aspecto, a questão ética do cuidado, o cuidado de si é apresentado por Foucault(12) em seus estudos sobre a sexualidade onde se localiza o caminho para a autonomia do sujeito.

Para o grupo-pesquisador, as questões éticas devem nortear todo o trabalho nos serviços de atenção à saúde mental. O respeito, o apoio, o cuidado, o cuidado de si e o afeto devem pautar as relações que se estabelecem entre o trabalhador de saúde mental e o sofredor psíquico e, não mais, a falta de opção na indicação terapêutica. O grupo-pesquisador nos aponta para uma nova ética da assistência no processo de Reforma. Para o grupo-pesquisador, a capacidade para modificar uma situação depende também das oportunidades, das condições que a instituição assistencial fornece ao trabalhador.

A Pensão é um somatório da consciência nossà de profissionais, do que nós estudamos, do que nós observamos, do que nós analisamos e conhecemos da Lei, o que um perfil nosso, que é o perfil que todo mundo falou. Nós estamos tentando aplicar a Lei da Reforma Psiquiátrica de acordo com o que ela escreve. que tem uma outra parcela da cara da nossa instituição que são os pacientes que moram aqui. Nós nunca vamos conseguir, sozinhos, dar o perfil, porque a Lei está , por que nós nos baseamos por tal ou qual princípio e essa vai ser a cara. (GP) A pessoa tem que ser mais humana. É preciso que haja humanização das pessoas para que ocorra essa Reforma. (GP) Solidariedade e café. Uma compaixão de amizade e solidariedade, ato de amizade. Solidariedade é um ato de amizade, solidade. (GP) A experiência, apresentada pelo grupo-pesquisador, no quotidiano da atenção em saúde mental, reforça a necessidade de se ter uma ética humanizante. As experiências trazidas pelo grupo-pesquisador têm, também, nos ajudado a refletir sobre o conceito de solidariedade na arte do cuidado, no cuidado de si, na prática do cuidado em saúde mental. Tratar de recompensar o sofredor psíquico é uma tarefa que necessariamente exige um esforço coletivo, uma ética solidária. A relevância da ética solidária complementa-se com a referência à ética como norte. O grupo-pesquisador, ao trazer os relatos de experiências, o quotidiano do ato de assistir em saúde mental na Pensão, faz com que possamos observar que solidariedade/café tem como significado soUdadeque traduz a solidariedade como um ato de amizade. O ser solidário e amigo com o sofredor psíquico lhe faz sentir-se bem, lhe produz uma sensação de acolhimento. O que é reforçado pelo entendimento de Foucault(12) sobre ética, ou seja, que é necessário se construir um tipo de ética que retrate uma estética da existência.

Embora a participação do sofredor psíquico se no âmbito das políticas públicas, o alcance desse aspecto, por parte do grupo pesquisador, demonstra a necessidade de se aprofundar os laços culturais e sociais do sofredor psíquico residente na Pensão com a comunidade a qual pertence. O grupo-pesquisador nos apresenta a reforma psiquiátrica como um processo complexo que impõe diversidade de ritmos e que exige respeito ao sofredor psíquico. Esse processo vem provocando aos trabalhadores de saúde mental em sua sensibilidade, no ato de assistir, e na sua coragem para enfrentar os novos desafios que o exercício da reforma em sua construção diária Ihes impõe. Nessa vivência e construção da nova atenção em saúde mental, foram feitas algumas descobertas pelo grupo- pesquisador, entre elas, a de que: a liberdade é terapêutica; que todos somos diferentes; todos somos singulares, e que é preciso acolher referências éticas como norte.

8 Considerações finais Ao procurar juntar as partes ao todo, e o todo às partes, dentro de uma analítica interpretativa da presença ou ausência das estratégias de poder disciplinar nas relações, entre o trabalhador de saúde mental e o sofredor psíquico, constatamos a pertinência e atualidade deste estudo para a efetivação do processo de Reforma Psiquiátrica vigente no Estado do Rio Grande do Sul.

Assim, tendo a experiência da Reforma Psiquiátrica e a legislação de proteção ao sofredor psíquico como contexto, ambos inscritos num dispositivo estratégico do poder disciplinar, buscamos dar conta da materialização das relações de poder entre o trabalhador de saúde mental e o sofredor psíquico no serviço de atenção à saúde mental. Seja como for, isso indica insofismavelmente uma precisa direção estratégica realizada pela leitura de Foucault, ao assumir um ponto de vista a partir de um contexto circunscrito e de um dispositivo específico que, sempre, coexistem ao lado de outros também presentes, ao mesmo tempo, no espaço social. As estratégias ensejam combates diferentes: a passagem de um modelo hospitalocêntrico de atenção à saúde mental baseado nos mecanismos de exclusão, isolamento e culpabilização do próprio sofredor e da família para um modelo de atenção integral à saúde mental cujas premissas estão centradas no envolvimento familiar e social no processo de reabilitação psicossocial do sofredor psíquico; redefine a abordagem em saúde mental. Isto não significa inexistência de conflitos, pelo contrário, implica um modo de se relacionar que conta da complexidade das relações entre o trabalhador de saúde mental e o sofredor psíquico em um processo que propõe o resgate, ou melhor dito, a (re)construção de cidadania do sofredor.

A inexistência, a priori,de um conteúdo pronto, acabado, próprio à atenção em saúde mental que amplie a instrumentalização do fazer quotidiano nos serviços alternativos de atenção à saúde mental, ainda inexiste no cenário da Reforma.

Experiências iniciais no País e, mesmo, a experiência apresentada no estudo do trabalho realizado na Pensão Pública Protegida Nova Vida demonstram, ainda hoje, que é no dia-a­dia que se constrói o conhecimento em saúde mental, que não existem receitas prontas e que é preciso dar significado a determinados achados ou descobertas e procurar contextualizá­los em situações similares para superar os conflitos próprios da mudança de modelo(3). Os limites e possibilidades de comprometimento e compromisso do trabalhador de saúde mental com o processo de Reforma são, ainda, uma questão mais próxima do pessoal do que da inserção do próprio trabalhador num conhecimento histórico-político do processo em questão.

A criação de estratégias de cuidado em saúde mental, aliada aos princípios da legislação de proteção ao sofredor psíquico, como foi demonstrado no momento da análise, não é necessária, mas urgente do ponto de vista da nova política de atenção em saúde mental. Esta idéia é reafirmada na análise do grupo- pesquisador, ao destacar a ausência de um conhecimento pronto, acabado que conta das ações em saúde mental e da necessidade, portanto, de se construir esse conhecimento. A percepção de fatores emocionais, ambientais, técno- políticos, econômicos e administrativos, presentes no "fazer" em saúde mental, interagem com os dispositivos de poder disciplinar no quotidiano das relações, no modo de cuidar e perceber o sofredor psíquico, projetando recortes finos no ambiente relacionaI do serviço.

Esta percepção reafirma o sentimento, portanto, da necessidade de realização de um trabalho que proporcione uma reflexão sobre o descompasso percebido entre a vitória no campo jurídico; o novo discurso da Reforma Psiquiátrica e uma prática que parece negar a condição de cidadão, outorgada pela lei, ao sofredor psíquico. A Reforma, em sua aplicação prática, apresenta uma certa inércia política, uma multiplicidade de ações confusas e uma posição lacunar entre um referencial teórico arcaico (próprio ao antigo modelo) e um novo referencial, ainda deveras incipiente em sua ação prática. Os serviços de atenção integral à saúde mental ou rede substitutiva buscam, na atualidade, reverter o modelo hospitalocêntrico de atenção em saúde mental. É um momento de construção de políticas públicas, da busca de caminhos e de rumos inovadores.

Fica claro, portanto, a necessidade de investimento na formação e capacitação dos trabalhadores de saúde mental, com ênfase numa abordagem antimanicomial, centrada na pessoa como um ser complexo e não somente na doença. Destacamos, ainda, a necessidade de todo serviço assistencial proporcionar suporte aos familiares como forma de aproximar o sofredor psíquico do convívio familiar e social. Este aspecto é reforçado na análise do grupo-pesquisador como essencial para a re-socialização e aproximação do sofredor psíquico de seu ambiente familiar e social. Um outro aspecto importante a ser enfocado é a participação mais efetiva do sofredor psíquico e de seus familiares nas instâncias de fiscalização e controle das políticas públicas em saúde mental como forma de resistência ao poder histórico e hegemônico dos trabalhadores e gestores em saúde mental e como forma, também, de implementar as novas políticas em saúde mental.

Finalizando, observamos que a busca da ética está presente no quotidiano da atenção em saúde mental marcando vários nortes, ou seja, o trabalhador de saúde mental em busca da mestria de si mesmo, ao mesmo tempo, que procura reconhecer o sofredor psíquico como um mestre de si. Portanto, não basta afirmar que, apesar dos crescentes avanços da legislação de proteção ao sofredor psíquico e da implantação da Reforma, o sofredor continua sendo objeto e instrumento do exercício do poder disciplinar. É necessário que se afirme, também, que existe uma nova lógica permeando e dando vida nova ao cuidado no serviço de atenção integral à saúde mental: um ato de engajamento no processo da Reforma; um ato de imaginação no viver quotidiano da saúde mental; um hiato na obsessão do poder-saber que atrai a humanidade na busca da verdade e um grifo no reconhecimento da oportunidade do momento para o pensamento renovado sobre a emergência de uma atenção ética, complexa, contextualizada e não somente governada pelo poder normalizador. Enfim, uma ética diferente que pode nos oferecer uma auto-compreensão maior e melhor de nós mesmos e que faça da Vidauma Estética da Existência.


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