Insuficiência Cardíaca: antiga síndrome, novos conceitos e a atuação do
enfermeiro
REVISÃO
Insuficiência Cardíaca: antiga síndrome, novos conceitos e a atuação do
enfermeiro
Heart Failure: old symdrome, new concepts and nurse's role
Insuficiencia Cardiaca: viejo síndrome, nuevos conceptos y la práctica de la
enfermera
Maria Carolina Salmora FerreiraI; Maria Cecília Bueno Jayme GallaniII
IAluna do 8º semestre do Curso de Graduação em Enfermagem - FCM - Universidade
Estadual de Campinas - SP mcarol124@fcm.unicamp.br
IIEnfermeira. Professor Doutor. Departamento de Enfermagem - FCM - Universidade
Estadual de Campinas - SP cecilia@fcm.unicamp.br
1. INTRODUÇÃO
Nos Estados Unidos da América, a mortalidade por IC aumentou em até quatro
vezes na última década, sendo diagnosticados a cada ano mais 550 mil casos
novos. A IC é a maior causa de internação e re-internação, sendo que a
incidência de internação por IC teve um aumento superior a 100%, de 1973 a 1995
e a taxa de mortalidade cresceu consideravelmente nas últimas três décadas(1-
6).
Em 2002, no Brasil, houve cerca de 398 mil internações por IC com 26 mil
mortes, o que correspondeu a mais de 30% das internações e a 33% dos gastos com
doenças do aparelho cardiocirculatório, tornando-se a primeira causa de
internação de pacientes com mais de 65 anos no SUS. Em 2003, a IC foi a maior
causa de internação e óbitos dentre as doenças do aparelho circulatório,
correspondendo a aproximadamente 29% das causas. As internações por IC em 2003
implicaram em custo de R$ 194.575.595,97 (U$ 6.300.000,00). O valor médio de
cada internação em 2003 foi de R$ 554,63. O número de internações e óbitos por
IC foi maior do que por Aids, em 2003(7,8).
A importância epidemiológica e socioeconômica da IC impulsionou o
desenvolvimento de estudos que permitiram uma evolução marcante na compreensão
de sua fisiopatologia, levando nos últimos 10-15 anos a inovações terapêuticas
que têm mostrado serem capazes de modificar a evolução natural da doença. Ainda
assim, persistem muitos desafios a serem vencidos no diagnóstico e tratamento
desta afecção.
Uma das grandes mudanças no tratamento da IC relaciona-se à demonstração de que
a atuação em equipe multidisciplinar pode modificar de maneira bastante
positiva o curso natural da IC. Destaca-se nesta equipe o trabalho do
enfermeiro, cujas intervenções implementadas a partir de planejamento
cuidadoso, têm mostrado reduzir os episódios de descompensação; de re-
internações e conseqüentemente do custo do tratamento(9).
Este artigo tem como finalidade contextualizar os avanços na compreensão da
fisiopatologia e do tratamento da Insuficiência Cardíaca, bem como uma breve
revisão sobre a atuação de Enfermagem, junto aos pacientes portadores desta
síndrome.
2. AVANÇOS NA COMPREENSÃO, DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO DA IC
De maneira extremamente simplificada tem-se como claro que a IC ocorre quando o
coração é incapaz de receber um fluxo adequado de sangue e, assim, é incapaz de
bombear uma quantidade suficiente de sangue para os órgãos e tecidos. O rápido
avanço na compreensão desse fenômeno ocorreu somente nos últimos 25 anos,
culminando com o advento de marcante modificação da terapêutica indicada nesta
condição(10).
Assim, na década de 60, era preponderante o Modelo Cardio-Renal da IC. Como o
edema é a apresentação inicial da doença e sua principal manifestação, a
congestão do paciente era o principal foco do tratamento, sendo considerado na
época, a chave para sua explicação. A principal terapêutica para IC nesta
década foi constituída pelos diuréticos e digitálicos(11,12).
Apesar do sucesso no controle do edema, persistiam as anormalidades
hemodinâmicas que limitavam a capacidade do sujeito em exercitar-se e realizar
atividades de vida diária. Surge então o Modelo Cardiocirculatório/
Hemodinâmico, reconhecendo-se a necessidade de melhor compreensão dos fenômenos
da dispnéia ao esforço e da fadiga. Surgem na terapêutica os agentes
vasodilatadores periféricos e os agentes inotrópicos positivos(10).
Na década de 80 surgiu o Modelo do Metabolismo Celular, que deflagrou os
estudos sobre os canais de cálcio, e sua ação sobre o músculo cardíaco, levando
à indicação da terapia com os bloqueadores do canal de cálcio, que proporcionou
uma melhora, em curto prazo, das manifestações clínicas da IC. Estudos
subseqüentes, entretanto, levaram à contestação do emprego dos inibidores de
canal cálcio na IC(13).
Na década de 90 surge modelo Renina/Angiotensina/Aldosterona. Apesar da
proposição inicial de uso voltado para melhora da terapia antihipertensiva, foi
observado que pacientes que utilizavam inibidores de ECA (enzima conversora de
angiotensina), por um longo período de tempo, tinham benefício significativo no
retardo do desenvolvimento de IC, principalmente na inibição da hipertrofia
ventricular esquerda. O tratamento com o inibidor da enzima conversora de
angiotensina (IECA) tem demonstrado a melhora dos sintomas da IC, reduzido as
internações por piora progressiva da função ventricular e prolongado a
sobrevida dos pacientes. É estimado que nos Estados Unidos da América, o
tratamento da IC com IECA leve a uma diminuição de até 100.000 internações e a
queda significativa nos custos com a doença(14-17). O sucesso da terapia com
IECA na IC depende da adesão ao tratamento, porém, aproximadamente um terço dos
pacientes com IC em uso de IECA reportam não adesão ao medicamento(18).
Vários estudos feitos no final do século XX mostraram que, ao contrário do que
foi pensado originalmente, o uso dos beta-bloqueadores protegia o músculo
cardíaco, o que foi ratificado por estudos subseqüentes que indicam que os beta
bloqueadores têm um papel muito importante na inibição da ação
simpaticomimética nociva sob o miocárdio em pacientes com IC(19). Foi
demonstrado que o uso de beta-bloqueadores resulta em uma diminuição de até 34%
nas taxas de internação(17,20-22).
Paralelamente ao avanço nos modelos teóricos para explicar a clínica da IC,
deve-se destacar o crescimento ocorrido nas duas últimas décadas no que se
refere ao conhecimento sobre o evento do remodelamento ventricular.
Inicialmente usado para descrever mudanças ocorridas no tamanho e contorno do
ventrículo esquerdo após o infarto do miocárdio(23), o remodelamento hoje é
visto como um processo extremamente complexo e intimamente relacionado à piora
progressiva da disfunção ventricular na IC, que ocorre em resposta a diferentes
estímulos extracelulares, como a própria isquemia miocárdica e a sobrecarga
pressórica, como na hipertensão arterial. Os eventos celulares ligados ao
remodelamento ventricular incluem hipertrofia do cardiomiócito, proliferação do
fibroblasto, apoptose (perda celular) e modificação da expressão genética do
cardiomiócito. Postula-se atualmente, que os estímulos externos, de natureza
bioquímica, mecânica ou iônica, ativam elementos receptores específicos
associados ao sarcolema, que traduzem e amplificam os sinais através da
ativação de mecanismos bioquímicos múltiplos, os quais servirão como
intermediários na comunicação entre o estímulo extracelular e fatores de
transcrição genética específicos(24). Assim, a modificação no fenótipo do
cardiomiócito na IC decorre da modificação na expressão genética de várias
proteínas, ligadas, por exemplo, à homeostasia do cálcio e ao relaxamento e à
contratilidade cardíaca(23).
O grande desafio para o futuro no tratamento da IC continua a ser tratar o
mecanismo subjacente e bloquear os complexos sinais que estimulam o processo de
remodelamento. Assim, continua a busca de novas terapias: medicamentosa,
celular e genética que possam levar à diminuição da incidência e da mortalidade
por IC.
Outra modificação importante na abordagem do paciente com IC diz respeito à
equipe de trabalho. Cada vez mais, a literatura aponta para a necessidade do
trabalho interdisciplinar, sendo comprovada a importância da função do
enfermeiro na mudança da história natural da doença. A visão global do paciente
proporcionada pela forma de pensar da enfermagem e sua ciência tem sido vista
como promissora na abordagem deste paciente.
3. ATUAÇÃO DO ENFERMEIRO
Foram realizadas buscas sobre o tema na base de dados MEDLINE, LILACS e BDENF
(BIREME), utilizando-se os descritores Nursing Caree Heart Failure e
Insuficiência Cardíaca e Enfermagem.Foram identificados 736 artigos, sendo 719
da base MEDLINE e 17 trabalhos nas bases LILACS e BDENF (Tabela_1).
Observa-se que a produção mundial de estudos de enfermeiros sobre a IC é
expressiva, porém, quando a produção brasileira é comparada à de enfermeiros de
outros países, tratando dos mais diversos aspectos da interação do enfermeiro
junto ao paciente com IC, nossa produção no país, ainda é restrita, apontando
para a subutilização do poder de atuação do enfermeiro brasileiro junto a esse
paciente.
Podem ser observadas duas grandes tendências nos estudos levantados: uma delas,
de estudos voltados aos aspectos clínicos da IC desde revisão e aspectos atuais
da fisiopatologia à evolução da síndrome fatores relacionados à descompensação
e re-internações, intervenções de enfermagem e também sobre experiências de
criação e implementação de clínicas nas quais existe destaque para o trabalho
do enfermeiro na abordagem do paciente com IC.
O trabalho do enfermeiro tem ganhado destaque nas últimas décadas, uma vez que,
o tratamento farmacológico da IC tem melhorado a cada dia, porém o tratamento
não farmacológico tem demonstrado ser cada vez mais importante, justificando o
desenvolvimento de clínicas e programas de IC, a maioria, administrados por
enfermeiros, que detêm o manejo das intervenções não farmacológicas.
Como resultados do cuidado de enfermagem a pacientes com IC, têm sido
relatados: reduçãoda re-internação, do tempo de internação, do custo do
tratamento e da mortalidade; e, melhora: do padrão funcional e da qualidade de
vida(25-27).
Na Espanha há programas desenvolvidos por enfermeiros, desde 2001, baseado em
modelos europeus e norte-americanos, já implantados no Canadá e em outros
países europeus, com enfoque no tratamento não farmacológico da IC. Um fator
comum nesses programas é a promoção da educação e do autocuidado promovido por
enfermeiros. O paciente é educado sobre a IC, as medicações que devem ser
utilizadas, a importância da dieta com baixo teor de sódio, da auto-
monitorização diária de peso e dos sinais e sintomas da descompensação e da
adesão a esses fatores. Em geral, tais programas partem do pressuposto de que o
conhecimento da doença e do tratamento pode ajudar o paciente a aderir melhor
ao tratamento e ao autocuidado(27-29).
Estudos nos Estados Unidos da América, Inglaterra, Europa, Nova Zelândia e
Austrália verificaram o impacto positivo de programas multidisciplinares no
manejo da IC. Alguns envolveram o cuidado inicial nos serviços de saúde e
continuaram o acompanhamento com visitas domiciliares e acompanhamento
telefônico(9,30). Outros promoveram educação do paciente e família em programas
de controle de doenças e contavam com uma enfermeira disponível para consulta
telefônica e educação com enfermeiras com ou sem visita domiciliária
(9,25,31,32).
Desta maneira obtém-se, do grupo de estudos revisados, o respaldo da literatura
para a criação de serviços semelhantes, reiterando a importância da atuação do
enfermeiro junto aos pacientes com IC.
A segunda tendência observada nos estudos de enfermagem relacionados à IC
volta-se para os aspectos psicossociais do cliente acometido pela síndrome.
A perspectiva de mensuração de variáveis psicossociais tem ampliado a
abrangência da avaliação do paciente, oferecendo mais subsídios para que o
tratamento implementado melhore a vida do paciente não somente em termos
quantitativos, mas também em qualidade(33-35).
A medida das variáveis psicossociais, um conceito anteriormente tido como
imensurável, tem sido buscada pelos profissionais da área da saúde, em especial
psicólogos, desde o início do século passado. Desde então, muitas formas de
medida foram propostas, chegando-se na atualidade a um denominador quase comum,
havendo o consenso de que qualquer instrumento desta natureza deva ser
submetido a processos que comprovem sua confiabilidade e validade, garantindo a
base científica das medidas que tais instrumentos proporcionam (34, 35).
A literatura dispõe, hoje, de instrumentos que são voltados a mensurar
conceitos como crenças de saúde, qualidade de vida, ansiedade, depressão,
adesão, dentre outros. É essencial que este diagnóstico seja feito antes de uma
intervenção, primeiro, para que esta possa ser bem delineada e, depois, porque
o diagnóstico preliminar quando comparado à avaliação final permitirá avaliar a
magnitude da resposta à intervenção. Desta maneira, cada vez mais se impõe a
necessidade de medida.
Especificamente na IC, destaca-se o emprego de instrumentos de qualidade de
vida genéricos e específicos em estudos que têm demonstrado que a síndrome
afeta negativamente a vida diária do indivíduo. Homens relatam falta de energia
e perseverança e mulheres relatam, além dos efeitos físicos negativos, a perda
da auto-estima, preocupações e ansiedade. Devido à cronicidade e ao caráter
progressivo da IC, tem havido um interesse cada vez maior, por parte de
enfermeiros em medir a qualidade de vida desses pacientes para buscar medidas
de intervir de forma positiva e eficaz na sua adaptação à nova condição de vida
(25).
O estudo retrospectivo sobre a medida da qualidade de vida, com instrumentos
genéricos, de pacientes com IC sob a perspectiva do enfermeiro, realizado na
Suíça em 2004, revelou a importância de instrumentos de medida de qualidade de
vida na IC, e como eles podem evidenciar parâmetros importantes para o cuidado
desses pacientes(27).
O conceito de medida também tem sido aplicado para a avaliação da adesão a
comportamentos de saúde desejáveis como seguir uma dieta hipossódica, realizar
auto-monitorização do peso e do edema, e uso das medicações. Nestes estudos têm
sido empregados instrumentos que são, em grande parte, fruto de estudos
realizados por enfermeiros, principalmente europeus e norte-americanos, o que
chama atenção para abrangência do trabalho da enfermagem e sua importância
social e na vida dos pacientes com IC.
4. ADESÃO AO TRATAMENTO E QUALIDADE DE VIDA
Um grande enfoque tem sido dado nos estudos à importância da adesão ao
tratamento. Estudos destacam a não-adesão ao tratamento como uma causa
significativa para o elevado número de hospitalizações desnecessárias,
estimando que cerca de um terço das hospitalizações por IC poderiam ser
prevenidas(36). Por outro lado, a adesão à terapia medicamentosa e não
medicamentosa tem sido associada com redução dos episódios de descompensação e
re-internação por IC(25-27).
O emprego de escalas psicométricas para mensurar as crenças sobre adesão ao
tratamento medicamentoso e não medicamentoso, bem como a própria adesão parece
mostrar-se um meio efetivo para auxiliar o delineamento de intervenções
educativas, bem como para mensurar o efeito de tais atividades(37,38).
Os pacientes com IC em geral, apresentam sintomas importantes e progressivos,
como dispnéia, fadiga e angina, que sendo debilitantes, interferem de modo
significativo no cotidiano do sujeito e na sua qualidade de vida. Para o
controle destes sintomas e da evolução da IC são necessários esquemas
terapêuticos complexos, na maioria das vezes, associados a restrições
dietéticas de sal e de atividade física, o que pode conflitar com os desejos,
tradições e cultura do paciente/família(39).
Visando a compreensão do comportamento de adesão do paciente com IC ao
tratamento medicamentoso e dietético, e assim tornar viável o desenvolvimento e
implementação de intervenções mais efetivas, enfermeiras norte-americanas
construíram um conjunto de escalas para avaliar a adesão aos tratamentos
medicamentoso e dietético e à auto-monitorização dos sinais e sintomas na IC, a
partir dos constructos de benefícios e barreiras percebidas do Modelo de
Crenças de Saúde(36,39).
Essas escalas já foram utilizadas, com sucesso junto a pacientes norte-
americanos, proporcionando uma visão ampla dos conceitos e características
individuais que levam à adesão ao tratamento(40,41).
Embora, na atualidade, existam no Brasil diversos instrumentos adaptados para
medida da qualidade de vida, não há disponível ainda um instrumento que permita
avaliar adesão dos pacientes com IC ao tratamento medicamentoso e não
medicamentoso. Considerando o importante auxílio que estes instrumentos podem
fornecer na abordagem do paciente com IC, também em nosso meio, as escalas
sobre adesão na IC estão sendo submetidas ao processo de adaptação cultural, e
em breve, estarão disponíveis para utilização junto aos pacientes brasileiros
(41).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na última década houve uma evolução importante na compreensão do fenômeno da
IC, ancorada dentre outros fatores, no expressivo aumento de sua prevalência e
custos sociais. Os estudos revisados apontam para a singularidade das ações do
enfermeiro, na contribuição para a melhor evolução clínica e psicossocial do
paciente com IC. A produção científica brasileira sobre IC na área da
enfermagem ainda é muito pequena. É importante que em nosso meio haja estímulo
ao desenvolvimento de estudos de diagnóstico e de intervenção junto a estes
pacientes, pois é indispensável o reconhecimento das peculiaridades do nosso
contexto, para que os programas de atenção à saúde destes sujeitos possam ser
delineados, implementados e avaliados de maneira racional.