Acolhimento: tecnologia leve nos processos gerenciais do enfermeiro
PESQUISA
Acolhimento: tecnologia leve nos processos gerenciais do enfermeiro
Welcoming: soft technology in nurse's management processes
Acogimiento: tecnología leve en los procesos gerenciales del enfermero
Flávia Raquel RossiI; Maria Alice Dias da Silva LimaII
IProfesssora do Curso de Enfermagem da Universidade de Caxias do Sul. Mestre em
Enfermagem pela UFRGS. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva e
Serviços de Saúde
IIProfessora Adjunto da Escola de Enfermagem da UFRGS. Doutora em Enfermagem
pela Universidade de São Paulo
1. INTRODUÇÃO
As tecnologias leves são tecnologias de relações, como acolhimento, vínculo,
autonomização, responsabilização e gestão como forma de governar processos de
trabalho(1). A utilização destas tecnologias nos processos gerenciais do
enfermeiro pode interferir na produção do cuidado. O grande compromisso e
desafio de quem gerencia o cuidado é o de utilizar as relações enquanto
tecnologia, no sentido de edificar um cotidiano, por intermédio da construção
mútua entre os sujeitos. E, através dessas mesmas relações, dar sustentação à
satisfação das necessidades dos indivíduos e os valorizar (trabalhadores e
usuários) como potentes para intervirem na concretização do cuidado.
Para dar conta desse cuidado o enfermeiro pode inserir-se nos processos de
trabalho, ocupando todos os espaços que lhe dizem respeito, quer seja junto ao
usuário ou às equipes de saúde, de forma consciente e direcionada às
necessidades especificas dos sujeitos em busca da humanização, ou seja, de
relações dialógicas que proporcionem o desenvolvimento de cada pessoa, nas
quais a individualidade, as crenças, as características pessoais, a linguagem,
entre outras coisas, sejam respeitadas(2,3).
Ao ser feito um recorte dos processos de trabalho em saúde, direcionando o
olhar especificamente para os processos gerenciais do enfermeiro, pode-se
reconhecer um universo de ações desse profissional que transita na interface
constante entre a produção propriamente dita e a busca de condições que
garantam a continuidade e concretização desse cuidado.
Para a concretização dos processos de trabalho em saúde são utilizadas
diferentes tecnologias que podem ser classificadas em tecnologias leves (como
no caso das tecnologias de relações do tipo produção de vínculo, autonomização,
acolhimento, gestão como uma forma de governar processos de trabalho), leve/
duras (como no caso de saberes bem estruturados que operam no processo de
trabalho em saúde, como a clínica médica, a clínica psicanalítica, a
epidemiologia, o taylorismo, o fayolismo) e duras (como no caso de equipamentos
tecnológicos do tipo máquinas, normas, estruturas organizacionais)(1).
O aporte e a consolidação do uso dessas tecnologias acontece de forma distinta
para os enfermeiros, de acordo com as relações que estabelecem com os
diferentes sujeitos participantes dos processos de trabalho, ou em diferentes
momentos com o envolvimento dos mesmos sujeitos.
Nesse sentido, o momento da construção da relação do enfermeiro com os sujeitos
participantes dos processos de trabalho no contexto estudado é ímpar, dinâmico
e contingencial e como tal, consolida-se em movimento. Nesse movimento, os
sujeitos trabalhadores, usuários e familiares - transitam e posicionam-se de
acordo com suas necessidades, intenções, competências e subjetividades que
emergem e marcam cada momento de interação. O movimento é composto de
interações que percorrem desde o contato impessoal, calculado e metódico, até
aquelas personalizadas, afetuosas e acolhedoras entre os indivíduos, as quais
imprimem características contraditórias nos resultados dos processos gerenciais
do enfermeiro.
A utilização das tecnologias leves contempla a existência de um objeto de
trabalho dinâmico, em contínuo movimento, não mais estático, passivo ou
reduzido a um corpo físico. Esse objeto exige dos profissionais da saúde,
especialmente do enfermeiro, uma capacidade diferenciada no olhar a ele
concedido a fim de que percebam essa dinamicidade e pluralidade, que desafiam
os sujeitos à criatividade, à escuta, à flexibilidade e ao sensível.
Dentro deste contexto é importante salientar que são necessários processos
gerenciais que reconheçam o cuidado como foco possível e necessário de ser
gerenciado dentro do universo organizacional e que extrapolem o tecnicismo.
O estudo em questão teve o objetivo de identificar a utilização de tecnologias
leves nos processos gerenciais do enfermeiro e sua interferência na produção do
cuidado.
2. METODOLOGIA
A pesquisa é de natureza qualitativa, na qual os conhecimentos sobre os
indivíduos são possíveis através da descrição da experiência humana, tal como
ela é vivida e definida por seus próprios atores(4). Caracterizou-se como um
estudo de caso, que consiste em "uma categoria de pesquisa cujo objeto é uma
unidade que se analisa profundamente"(5).
A coleta de dados foi realizada no período de dezembro de 2002 a fevereiro de
2003, em um hospital localizado em um dos municípios que compõem a 5ª.
Coordenadoria Regional de Saúde do Rio Grande do Sul. É um hospital geral, de
grande porte, público e de ensino, com 267 leitos. Optou-se por desenvolver a
pesquisa em um setor de internação de clínica médico-cirúrgica por ser capaz de
retratar o cotidiano do trabalho nos processos gerenciais do enfermeiro em um
hospital geral. O critério para a escolha do setor foi a presença de um
enfermeiro em todos os turnos de trabalho.
Obteve-se aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Participaram do estudo todas as enfermeiras da unidade
selecionada que trabalhavam nos turnos da manhã, tarde e noites, constituindo-
se em quatro os sujeitos da pesquisa. As enfermeiras aceitaram participar do
estudo, mediante preenchimento de um Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido. Foram utilizados nomes fictícios, inspirados nas deusas da
mitologia grega, para a identificação dos sujeitos. Os dados utilizados na
análise foram validados pelos sujeitos participantes da pesquisa.
A técnica de coleta dos dados foi a observação livre, na qual a compreensão do
fenômeno que se observa acontece com a ausência total ou parcial do
estabelecimento de pré-categorias para o entendimento do fenômeno estudado(5).
Realizou-se observação livre do trabalho do enfermeiro, priorizando aspectos
referentes à utilização das tecnologias leves durante sua prática gerencial.
Os diferentes turnos de trabalho dos sujeitos da pesquisa foram considerados na
coleta de dados, perfazendo 86h05min de observação. Para o encerramento da
coleta de dados foi utilizado o critério de saturação, quando as informações
tornaram-se repetitivas e redundantes(4). Os conteúdos resultantes das
observações foram registrados em diários de campo.
A análise dos dados constituiu-se de três fases(6): a ordenação, a
classificação dos dados obtidos e a análise final. A ordenação dos dados foi
realizada através da organização do material obtido através da observação,
registrados nos diários de campo e posteriormente digitados em ordem seqüencial
de tempo. A classificação dos dados foi feita através de leituras repetidas dos
textos obtidos por intermédio do registro das observações com identificação de
estruturas de relevância: a relação do enfermeiro com o usuário, com seus
familiares e a relação do profissional com a equipe de saúde. Essas estruturas
posteriormente foram agrupadas em duas categorias empíricas: o acolhimento e o
vínculo. São apresentados neste artigo, os resultados referentes ao
acolhimento, assim como alguns fatores que o configuram.
3. RESULTADOS
3.1 O acolhimento nos processos gerenciais do enfermeiro
No que se refere ao contexto hospitalar é possível identificar situações de
afetividade, de solidariedade, de boa educação entre o enfermeiro e os
indivíduos envolvidos nos processos de trabalho em saúde. No entanto, para a
consolidação do acolhimentoª enquanto tecnologia realmente potente para
humanizar o cuidado, é necessário um olhar mais profundo direcionado à
identificação e entendimento de alguns elementos que o configurem.
No contexto estudado foi possível identificar na prática gerencial do
enfermeiro, alguns desses elementos que são: a centralidade dos indivíduos nos
processos de trabalho, a escuta e a resolutividade das ações do enfermeiro,
respeito ao indivíduo, à sua historicidade e autonomia.
3.2 A centralidade dos indivíduos nos processos de trabalho
No contexto de internação hospitalar a aproximação do enfermeiro com o usuário
inicia, na maioria das vezes, com a necessidade de avaliação das condições
gerais do mesmo, com a visualização do resultado de intervenções técnicas já
realizadas por ele ou por outros profissionais, assim como em algumas
situações, a sua própria execução.
Constatou-se que essa relação se estabelece com o objetivo de garantir o
projeto terapêutico elaborado para os usuários, o controle de padrões e a
reprodução da ordem instalada pelo modelo clínico de assistência, reforçando
que os trabalhadores em saúde no âmbito hospitalar são sujeitos que estão numa
relação de trabalho com o objetivo de operar transformações no usuário(7).
Embora exista, por parte dos enfermeiros e do próprio estabelecimento, que
serviu de local de estudo, um discurso a respeito da necessidade de humanização
e alguns ensaios de flexibilização nas concepções de trabalho, o gerenciamento
do cuidado aparece permeado de contradições e heterogeneidades contrapondo
constan-temente a normatização e a humanização. Nesse contexto, o enfermeiro
desenvolve suas ações, sendo que muitas delas emergem e concretizam-se através
de relações centradas em procedimentos ou em protocolos organizacionais.
Existe um "sentir-se à vontade" por parte do enfermeiro no sentido de invadir,
interferir e intervir junto ao usuário no momento em que lhe convém, em nome de
execução de tarefas. É possível visualizar o exercício do poder inquestionável
de um indivíduo sobre o outro. O enfermeiro utiliza, em muitas circunstâncias,
sua autoridade profissional, sua independência e livre arbítrio para gerenciar
situações de forma a enfatizar ainda as necessidades de ordem do serviço, dos
próprios profissionais em detrimento ao ser cuidado, na luta por espaços,
reproduzindo o modelo de assistência vigente, carente de acolhimento.
A relação que se estabelece no processo de trabalho, em algumas circunstâncias,
não é entre o enfermeiro e usuário, mas sim entre o profissional e os ajustes/
desajustes do sistema que emergem nas diferentes situações do cotidiano.
São poucos os profissionais, incluindo aqui o enfermeiro, que visualizam o
processo de trabalho como um espaço que se abre em uma gama de possibilidades
de um "fazer diferente", de um "qualificar a vida", conforme forem as suas
interações e intenções junto ao usuário e à equipe de saúde.
Essas inadequações ou dificuldades têm a ver com os referenciais que ainda hoje
dão sustentação para as ações de saúde e conseqüentemente para as formas de
gerenciamento, que estão calcadas na intervenção, na racionalidade científica e
econômica, na solidariedade mecânica que prima pelo caráter do poder e
dominação, da relação sujeito e objeto, que configuram o cuidado de forma não
personalizada submetido ao controle gerencial normativo(8,9).
Neste contexto é importante salientar que, para colocar o indivíduo no centro
dos processos de trabalho, é impreterível que estejam inclusos na concepção de
resolutividade não apenas os ganhos e curas obtidos através da eficiência
técnica e científica, mas também o respeito a integridade e dignidade dos
indivíduos que utilizam os serviços de saúde.
No tocante à equipe de enfermagem, em grande número de situações, o técnico ou
o auxiliar de enfermagem são porta - vozes das necessidades dos usuários e
fornecem subsídios para as tomadas de decisão do enfermeiro.
Neste aspecto é possível identificar, em determinadas conjunturas, a existência
de um enfermeiro que toma decisões sem avaliar o usuário, que não leva em
consideração a solicitação dos técnicos de enfermagem, demonstrando um processo
gerencial distante do usuário e pobre no reconhecimento dos trabalhadores
enquanto indivíduos potentes para intervirem de forma significativa no contexto
de saúde.
É importante salientar que o usuário procura na relação com o trabalhador um
acolhimento que seja capaz de interferir no seu problema(10). É oportuno fazer
uma associação e explorar essa idéia também no que concerne ao âmbito das
relações do enfermeiro com os membros da equipe de enfermagem, tendo em vista
que eles também esperam ser acolhidos em suas necessidades no desenvolvimento
de seu trabalho.
Os acolhimentos concretizados através de ações resolutivas e respeitosas do
enfermeiro para com os técnicos e auxiliares de enfermagem, assim como para os
demais integrantes da equipe de saúde, podem ser um diferencial também no
acolhimento ao usuário e na solidificação do cuidado humanizado. Os indivíduos
só podem doar aquilo que tem, e, dentro dessa lógica, se os funcionários não
vivenciam e não recebem acolhimento no seu cotidiano podem sentir-se
descomprometidos em acolher outros indivíduos, incluindo o usuário.
Vale ressaltar que o enfermeiro também, em muitas instâncias, pode ser incluído
no grupo de indivíduos não acolhidos, se considerarmos, no mínimo dois
aspectos. O primeiro é relativo ao envolvimento e ao desempenho individual de
cada membro da equipe de saúde nos processos gerenciados pelo enfermeiro.
Muitas vezes os posicionamentos e as respostas dos auxiliares e técnicos de
enfermagem, assim como de outros profissionais que compõem a equipe de saúde
ficam aquém do necessário e/ou estipulado para a concretização do cuidado ao
usuário e ao funcionamento da equipe, provocando resultados insatisfatórios no
que concerne ao gerenciamento do cuidado. O segundo aspecto é inerente aos
processos organizacionais dos serviços de enfermagem e dos próprios
estabelecimentos de saúde nas suas totalidades. Em algumas instâncias esses
processos encontram-se empobrecidos no que se refere à escuta, à atenção
direcionada à resoluções de problemas e à criação de espaços reais para a
participação dos enfermeiros que gerenciam o cuidado. Esses fatores deixam o
enfermeiro, muitas vezes, com pouco apoio, pouco reconhecimento e fragilizados
para as tomadas de decisões, não tendo, dessa forma, outra alternativa que não
seja a de reproduzir as inadequações existentes no sistema.
A centralidade dos indivíduos nas ações gerenciais do enfermeiro aparece também
como fator dependente do tipo de intervenção do profissional ao relacionar-se
com os diferentes sujeitos. Observou-se que o enfermeiro, em ocasiões nas quais
executa intervenções técnicas, torna-se auto-suficiente em função de seu
conhecimento estruturado e tende a relegar os demais aspectos do indivíduo que
está sendo atendido, que não estejam contemplados pelo procedimento executado.
No entanto, nesse contexto paradoxal existem momentos em que o profissional,
quando em equipe multidisciplinar, advoga pelo paciente, zela pela sua
segurança e direitos como se ao advogar por ele, o acolhesse à distância, ou
mesmo presencialmente dependendo da situação que se instala.
3.3 A escuta e a resolutividade das ações do enfermeiro
A escuta do enfermeiro para com os diferentes sujeitos que participam do
processo gerencial é o portal de entrada para a satisfação das necessidades dos
indivíduos e conseqüentemente um elemento importante na consolidação do
acolhimento.
Foram encontradas duas formas de escuta: a individual e a compartilhada. A
escuta individual é aquela traduzida por momentos em que o enfermeiro dirige
sua atenção para um único indivíduo e a compartilhada é aquela onde a atenção
do profissional é dividida entre os inúmeros sujeitos que participam de
diferentes momentos do processo de trabalho e o levam a envolver-se com
múltiplos eventos concomi-tantemente.
Ao envolver-se com múltiplos eventos, a enfermeira tenta dar conta de vários
acolhimentos concomitantemente, perpassando, muitas vezes, por esse
envolvimento e solicitude em responder a demandas simul-tâneas, o conceito de
competência profissional.
Essas demandas são provenientes e pertinentes a uma certa regularidade
existente no processo de trabalho em saúde e o fato do enfermeiro respondê-las
simultaneamente, na maioria das vezes, não prejudica a resolutividade das
interações entre os sujeitos, se estas forem consideradas apenas enquanto
finalização de tarefas. No entanto, se forem considerados os critérios de
respeito aos indivíduos, de personalização do cuidado, da individuação dos
sujeitos, do sigilo e da ética, em muitos casos, há um considerável
empobrecimento na qualidade das mesmas.
Existe portanto, um imperativo nessas circunstâncias de escuta que acontecem de
forma simultânea que é o fato do enfermeiro assumir junto a cada indivíduo
participante do processo - como se ele realmente fosse o único - o compromisso
de resolutividade que emergiu no momento em que se estabeleceu a relação.
Devemos levar em consideração, que além do compromisso com a resolutividade, a
capacidade de inclusão do usuário que está sendo cuidado como foco inicial e
principal da atenção do enfermeiro, é uma habilidade necessária ao profissional
nos processos de gerenciamento, tendo em vista que não é o fato da atenção do
profissional estar sendo dividida entre diferentes indivíduos que
caracterizaria a falta de acolhimento ou falta de humanização, mas sim o como
essa divisão é feita.
Deve haver especial zelo para que não ocorra simplesmente a troca de foco da
atenção do enfermeiro de um indivíduo a outro. É necessário um cuidado
particular em inserir o sujeito que está sendo atendido no contexto dos eventos
que acontecem espontaneamente nos ambientes de cuidado e que impõem a divisão
da atenção e escuta do profissional com outros sujeitos participantes do
processo de trabalho.
A inserção do indivíduo, tão necessária para que ele não se sinta preterido ou
desacolhido, pode ser feita através de um simples olhar explicativo, de um
toque que represente: ainda estou contigo, de um pedido de licença, ou até,
desde que eticamente possível, da sua inclusão nas questões que estão sendo
socializadas pelos outros indivíduos que invadem, naquele momento, o seu espaço
de cuidado.
3.4 Respeito ao indivíduo, à sua historicidade e autonomia
Considerar o indivíduo em suas particularidades e demonstrar real interesse ao
momento particular pelo qual passa é de grande importância para a concretização
do cuidado humanizado.
No contexto estudado, o respeito às particularidades e individualidade dos
sujeitos, assim como a afetividade aparecem nas ações do enfermeiro. No
entanto, existem também momentos nos quais transparece a existência de
limitações, de predisposições, talvez de preconceitos e gradientes
diferenciados de empatia entre o profissional e o usuário.
Constata-se a inconstância do profissional em acolher os indivíduos em suas
particularidades e individualidades, pois observa-se que a mesma enfermeira que
cobre carinhosamente a cabeça de um usuário, não consegue fixar seus olhos nos
olhos de outro.
A presença de expressões como - "É, mas não precisa ter muita pena não!",
referindo-se ao usuário e socializada pela enfermeira junto à equipe de saúde
aponta para possibilidades de que o enfermeiro esteja legitimando e permitindo,
através de sua atuação, ações distanciadas ou pouco focadas na valorização dos
sujeitos, em suas particularidades e forma de ser.
Ao analisar esse aspecto é importante considerar também o fato de que o próprio
enfermeiro pode sentir-se desrespeitado dentro da estrutura da qual faz parte.
No entanto, mesmo valorizando essa possibilidade, é oportuno levar em conta que
o enfermeiro é, na maioria das vezes, referência e exemplo para a equipe de
saúde, em função das suas ações gerenciais, da sua forma de estar e ser no
trabalho, imprimindo marcas e criando modelos nos ambientes de cuidado.
Suscita-se a existência de uma violência institucionalizada, associada à não
articulação de respostas aos problemas dos usuários (9).Cabe ressaltar que essa
violência parece extrapolar os aspectos relativos à articulação de respostas
aos problemas dos usuários no que diz respeito às resolutividades operacionais,
técnicas ou científicas, penetrando no âmbito do respeito, da ética e da
manutenção da dignidade dos indivíduos.
Ainda no que se refere ao respeito às particularidades de cada indivíduo,
aparecem situações em que o enfermeiro não reconhece a historicidade do sujeito
atendido, relegando-o a um mero objeto do plano terapêutico. No âmbito geral da
saúde, as necessidades são apresentadas como se fossem de todos, são
identificadas sobre os indivíduos, negando o seu modo de vida, não levando em
conta os processos que os originam. Há portanto uma interpretação a-histórica
das necessidades(11).
O enfermeiro, ao fazer o gerenciamento do cuidado, em muitas circunstâncias
atua sobre os indivíduos, coloca-se em um patamar diferenciado em função de seu
saber estruturado, que muitas vezes o cega ou ensurdece diante dos apelos do
usuário. Identifica-se um posicionamento seletivo onde é descartada a
possibilidade do usuário sentir-se acolhido.
Em algumas situações existe ainda o agravante de que o conhecimento estruturado
do enfermeiro não dá conta de particularidades próprias de cada usuário, tendo
em vista que o costume em lidar com ocorrências semelhantes faz com que queixas
sejam banalizadas e investigações sejam feitas com pouca atenção.
Na atenção individual ao usuário, há pouca preocupação com a autonomia, com o
direito e a capacidade dos mesmos em exprimirem suas preocupações e desejos. O
sujeito que sofre a intervenção é quase sempre tomado como um objeto passivo,
como se fosse incapacitado de qualquer reação às ações dos profissionais de
saúde(7) .
O indivíduo visto como um objeto passivo é resquício de um saber clínico bem
estruturado que ainda impregna as ações dos profissionais da saúde(7), estando
presente também no cotidiano do enfermeiro. Esse saber estruturado que compõe
as tecnologias leve-duras ainda aparece soberano nas tomadas de decisões e
intervenções do enfermeiro junto ao usuário, restringindo o reconhecimento das
múltiplas dimensões do ser humano e sendo reducionista no que se refere às
diferentes possibilidades de relações entre causas e efeitos.
O reducionismo existente nos saberes e práticas reforça a concepção das pessoas
enquanto objetos, reduzindo os sujeitos à condição de receptores, ficando com a
doença, descartando as responsabilidades com a história individual,
empobrecendo e restringindo as possibilidades de mudanças necessárias, diante
da complexidade apresentada pela história real de cada sujeito e de cada
sociedade(12).
Ao constatar esses aspectos é importante visualizar que não há uma atualização
na configuração das tecnologias, direcionada para a possibilidade de que elas
venham a dar conta do produto que está sendo esperado como resultado dos
processos de trabalho em saúde, ou seja, o usuário respeitado em sua
individualidade, potencialidade e autonomia. Existe um hiato entre o desejado/
idealizado e o vivido/concretizado nos processos de cuidado do enfermeiro.
Vale pontuar que existe também o tipo de abordagem, na qual o profissional,
embora com intenção de acolhimento ao usuário, adianta-se às possíveis
necessidades do indivíduo, desrespeitando, de certa forma, seu potencial para
tomar as próprias decisões, como no caso de uma solicitação de avaliação
cirúrgica não desejada por um usuário.
Mesmo com o intuito da ajuda, a enfermeira prevê em algumas situações
necessidades que não são significativas para o usuário naquele determinado
momento. Retomando o exemplo acima, embora o acessob, possibilitado ao usuário
no momento em que o profissional sugere a avaliação cirúrgica seja um dos
quesitos importantes para que o acolhimento se concretize, ele não tem por
princípio ser baseado nas necessidades do profissional e sim nas do usuário.
Em situações como essa, a competência e o saber profissional estruturado podem
deflagrar processos de pouca valorização da capacidade de autonomia dos
sujeitos que utilizam os serviços de saúde em tomarem suas próprias decisões.
Essa abordagem suscita também uma reflexão de que a resolutividade dos
problemas de saúde dos usuários vem sendo visualizada, na grande maioria das
vezes, através de atitudes profissionais de "fazer por" e não "fazer com" o
usuário, distanciando-se em parte da essência do acolhimento. Embora exista o
interesse da enfermeira em propiciar acesso ao usuário, nem sempre ele é
visualizado como o centro dessa ação e as condutas ainda acontecem
padronizadas, caracterizando a dificuldade do enfermeiro em romper com o
caráter normativo das suas ações e também com a "pseudo" soberania do saber
profissional sobre a vontade dos indivíduos.
Os indivíduos são encaixados nas composições tecnológicas, estando, em muitos
casos, disponível ao usuário apenas o que passa pela ótica e entendimento dos
profissionais do que é necessário para cada um.
Em muitas situações o enfermeiro reafirma a sua responsabilidade de orientar,
de colocar o seu saber e as normas do estabelecimento como imprescindíveis para
assistência ao usuário, demarcando o controle do enfermeiro no processo de
trabalho, tanto no sentido de reproduzir aspectos organizacionais como na
dimensão de responsabilização do profissional.
No entanto, a responsabilização dos profissionais pela assistência do usuário
implica na soma das ações do profissional ao usuário em busca da melhoria da
qualidade de vida(13). Em momento algum, a responsabilização implica em anular
ou não reconhecer o usuário como agente de sua existência.
Responsabilização não implica necessariamente que o profissional se entenda
como responsável pelo usuário, pelas suas ações e decisões, quando esse tem
condições de responsabilizar-se por si e de decidir autonomamente o que deseja
para si. "Apresentar uma lista de proibições, de deveres, de obrigações a serem
seguidas pode significar negar a condição do sujeito"(13).
Sabe-se que em ambientes organizados burocraticamente, tudo passa a ser
controlado de forma racional, sendo a vida dentro dos estabelecimentos regrada
nos seus mínimos gestos. A existência da supremacia do individualismo que
provoca uma desapropriação da vida de cada indivíduo, uma vez que, o que tem
predominado nesse processo é a planificação, a imposição e a repressão,
resultando numa existência cotidiana sem expressão humana(9). Essas situações
distanciam, criam barreiras entre o usuário e o profissional, dificultando o
acolhimento a partir do momento em que a decisão do profissional e as normas do
estabelecimento aparecem como soberanos, como caminhos únicos no auxílio ao
usuário.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No sentido de acolher os indivíduos podem ser utilizadas abordagens
construtivas e dialógicas nas interações entre o enfermeiro e o usuário, nas
quais seja permitido ou incentivado que o mesmo se coloque na situação
instalada. Qual seria a diferença em nível de tempo disposto ou de energia por
parte do enfermeiro se ele optasse por trocar a utilização da informação
normatizada/protocolar pela possibilidade de envolver o usuário em um diálogo
onde ele pudesse manifestar suas opiniões em uma forma mais criativa e
personalizada de interagir?
Essas interações podem conduzir a um acolhimento através de diálogos. Através
de fatores simples e mais sensíveis de interação que extrapolem o domínio
normativo e direcionado, fazendo um chamamento aos aspectos de saúde do usuário
através da possibilidade dele enxergar-se, de pensar, de sentir e optar em
cuidar de si ou não, enfim, em utilizar sua autonomia.
No entanto, não é possível falar em autonomia absoluta, visto que, os espaços
de liberdade são restritos dentro dos serviços de saúde, mas é perfeitamente
possível pensar em políticas e práticas fora do domínio pré-estabelecido
(14,15). Nessa concepção, o enfermeiro ao possibilitar abertura de espaços a
uma prática diferenciada no sentido de envolver e centralizar o usuário no
processos do seu cuidado estaria rompendo gradativamente, nas instâncias
possíveis do seu micro espaço de trabalho, com o domínio existente nos
contextos hospitalares e contribuindo para a construção de uma assistência mais
humanizada.
No entanto, não pode haver ingenuidade. Em função de abordagens dessa natureza,
descompassos podem acontecer, alguns relativos ao usuário, como uma possível
estranheza pela forma de abordagem e de relação entre ele e o profissional e
outros relativos ao próprio enfermeiro, que deverá conviver com a instabilidade
e ansiedade que podem surgir em função das novas práticas, com a sensação de
protocolos não cumpridos, com a potencialidade, muitas vezes desconhecida do
usuário, com a criação de novas demandas de ações, assim como com o receio e as
conseqüências da possível desestabilização da lógica organiza-cional.
Esses são apenas alguns dos ônus que devem ser sustentados quando destaca-se a
centralidade do usuário nos processos de trabalho em saúde, a construção de
sujeitos e a humanização do cuidado, tendo em vista que o reconhecimento do
usuário como um sujeito da história, e de forma especial da sua própria
história, pode ser um fator importantíssimo para a consolidação do acolhimento
nos estabelecimentos de saúde.