Eu digo não, ela diz sim: a violência conjugal no discurso masculino
PESQUISA
"Eu digo não, ela diz sim": a violência conjugal no discurso masculino
"I say no, she says yes": matrimonial violence according to male speech
"Lo digo no, ella dice sí": violencia matrimonial según lo discurso del hombre
Sandra Lúcia Belo AlvesI; Normélia Maria Freire DinizII
IEnfermeira, Mestre em Enfermagem pela Universidade Federal da Bahia. Bolsista
do CNPq pelo Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde - PITS (Ministério
da Saúde)
IIProfessora Adjunto do DECOM/EEUFBA; Doutora em Enfermagem pela UNIFESP.
Pesquisadora do Grupo de estudos sobre a Saúde da Mulher - GEM
1. INTRODUÇÃO
A violência vem sendo estudada com mais ênfase a partir dos anos 80. É o que
revela um estudo realizado por Minayo(1) sobre a produção científica da
violência no período compreendido entre os anos 60 e os anos 80. Assim, segundo
dados dessa pesquisa, antes dos anos 70, o índice era de apenas 3%, nos anos
70, passa a 11% e nos anos 80, a 86%. Segundo a autora, o aumento, em termos
percentuais, dessa produção pode ser dado em decorrência de uma maior
consciência social por parte dos intelectuais sobre o problema.
Minayo(2) ainda refere que a violência constitui uma forma própria da relação
pessoal, política e cultural, ou ainda é resultante das interações sociais e,
por vezes um componente cultural naturalizado. A violência passa, então, a ser
definida como "uma relação humana", compreendida também como um comportamento
apreendido e culturalizado, dando a falsa impressão de integrar a natureza
humana. Daí a necessidade de que a violência seja interpretada em suas várias
faces, de forma interligada, em rede e através dos eventos em que se expressa,
repercute e se reproduz.
Para Chauí(3), a violência nega a autonomia à parte da relação submetida, nega-
lhe a possibilidade de ser sujeito, de construir-se e constituir-se como capaz
de autonomia na relação. A violência apresenta-se como a ação que trata um ser
humano não como sujeito, mas como coisa; as relações de força materializam a
violência porque coisificam pessoas, indivíduos. Esse conceito, quando aplicado
às relações sociais entre os sexos, significa dizer que são violentas porque
tornam diferentes em desiguais, determinando uma relação assimétrica e
hierárquica.
Nesse contexto, conforma assevera Grossi(4), a violência contra a mulher
apresenta-se como uma das violações mais praticadas e menos reconhecidas no
âmbito dos direitos humanos no mundo. Ela se manifesta de diferentes formas,
desde as mais veladas até as mais evidentes, cujo extremo é a violência física.
Para a autora, a violência também pode ser invisível, disseminada nas relações
sociais. Aí, o agente da violência não aparece, está nos índices de
analfabetismo, miséria, desemprego e fome, problemas que afetam a qualidade de
vida do ser humano.
Todavia, os atos violentos contra a mulher atingem, ainda que de formas
diferentes, indistintamente, mulheres pobres e ricas. Acontece que, usualmente,
as ricas têm recursos para enfrentar, de forma privada, os problemas jurídicos
e de saúde decorrentes da violência, o que explica que, nas Delegacias de
Defesa da Mulher - DPM, predomine o atendi-mento à população pobre.
Segundo Schraiber & Oliveira(5), foi a partir dos anos 80, que a situação
de opressão da mulher na sociedade, nem sempre expressada em violência física,
embora fosse a forma de expressão mais trágica, passou a ser questionada pelos
grupos feministas organizados. Isso possibilitou a denuncia e o combate a
violência contra a mulher que ocorria entre quatro paredes, nomeada de
violência conjugal, e que, volta e meia chegava a público através da imprensa,
que noticiava os crimes passionais.
Outro fator importante foi a introdução da categoria de gênero no âmbito dos
estudos sobre a mulher, em especial nas Ciências Sociais, que, segundo Izumino
(6), "trouxe novo fôlego aos estudos sobre mulheres, permitindo que as análises
teóricas acompanhassem as rápidas mudanças que ocorreram nos últimos anos na
sociedade brasileira".
Para Scott(7), pioneira no uso dessa categoria, "o gênero se torna, aliás, uma
maneira de indicar as construções sociais a criação inteiramente social das
idéias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. É uma maneira de
referir as origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens
e das mulheres".
O uso dessa categoria designa as relações sociais entre os sexos, rejeitando,
abertamente, as justificativas biológicas como aquelas que encontram um
denominador comum para as várias formas de subordinação no fato de que as
mulheres têm filhos e os homens têm a força muscular superior.
Nesse sentido, conforme assevera Izumino(6), para os estudos sobre violência
contra a mulher, o constitutivo da categoria de gênero permite a proposição de
uma nova interpretação das relações estabelecidas entre a vítima mulher e o
agressor masculino.
Tradicionalmente presente nos relacionamentos amorosos, a violência conjugal
está associada à violência doméstica e é compreendida como violência de gênero,
estando, sobretudo presente no cotidiano doméstico e conjugal das mulheres,
mediante a definição do seu papel feminino na sociedade.
Essa forma de violência comum e, até então, mantida oculta no mundo privado,
ganhou o espaço público nos primeiros anos da década de 80, quando crimes
contra as mulheres de classe média, praticados por seus maridos ou ex-maridos
foram acompanhados de grande mobilização por parte do movimento feminista, no
sentido de se tentar evitar a absolvição dos criminosos, com base nos
argumentos de "legítima defesa da honra" e caráter passional do crime.
Nesse momento, o movimento feminista denuncia a impunidade para com os crimes
de violência conjugal e a manipulação dos processos de julgamento, solicitando
que esses crimes tivessem o tratamento similar aos crimes de mesma natureza
ocorridos entre desconhecidos, nas ruas, sob a alegação de que os direitos
deveriam ser iguais para todos. A violência doméstica e conjugal é, então,
enunciada, tornando-se uma questão pública.
É comum pensar em violência como atos que provocam algum tipo de lesão física.
Todavia, segundo Verardo(8), ela pode assumir tanto a forma física,
caracterizada pela ocorrência de empurrões, tapas, murros, queimaduras, ameaças
com arma mortal, cárcere privado, entre outros; como também as formas de:
violência emocional, caracterizada por humilhações que objetivam diminuir e,
até, acabar com a auto-estima da companheira, ameaças e acusação de traição;
violência sexual, quando ocorre a imposição, de relações sexuais com outras
pessoas, de práticas sexuais que não agradam e que colocam em risco a saúde da
companheira, críticas ao desempenho sexual.
Embora esse tipo de violência ocorra preferencialmente no espaço doméstico, não
é raro ela se dar no ambiente de trabalho da mulher, onde esta é agredida
diante de colegas de trabalho. Em um grande número de casos, depois de ser
espancada várias vezes pelo marido-companheiro, a mulher decide se separar,
passando a morar em outra casa, e em inúmeras vezes continua sendo importunada
pelo ex-marido.
Para Safiotti(9), as relações violentas tendem a obedecer a uma escalada
progressiva através dos anos de relacionamento, iniciando com agressões
verbais, passando para as físicas e/ou sexuais, podendo chegar a ameaça de
morte e até mesmo a homicídio.
Segundo Soares(10), não se pode se pensar em violência contra a mulher em
episódios isolados e discretos, mas num processo contínuo e repetitivo. Dessa
forma, a violência apresenta-se como cíclica. O ciclo da violência, conforme
apresenta a autora, é composto de três fases distintas. A primeira fase, a de
construção da tensão, caracteriza-se pela ocorrência de agressões verbais,
ciúmes, ameaças, destruição de objetos. Nessa fase, a mulher acredita ser capaz
de controlar a situação, mostrando-se dócil, prestativa e culpada, atribuindo a
si própria a responsabilidade pelos atos do marido, desenvolvendo, inconscien-
temente, um processo constante de auto-acusação.
Na segunda fase, a tensão aumenta, atingindo seu ponto máximo. Surgem, então,
agressões mais agudas, os ataques tornam-se mais graves e o processo
experimentado na fase anterior torna-se inadministrável. Essa fase é mais
breve, sendo seguida pela terceira fase, denominada de lua de mel. Após terem
cessado os ataques violentos, o agressor torna-se temeroso de perder a
companheira, mostrando remorso, proferindo promessas, jurando não repetir as
agressões e implorando perdão. Tem início, então, um período de calmaria, sem a
tensão acumulada na primeira fase e descarregada na segunda fase.
A autora ressalta, ainda, que os agressores não se encontram inscritos em um
grupo específico da população. Eles podem ter qualquer idade ou escolaridade,
bem como pertencer a qualquer classe ou etnia. Todavia, maridos violentos,
freqüentemente, foram vítimas e/ou testemunhas de violência doméstica quando
crianças, fazem uso abusivo de álcool ou drogas, apresentam dupla
personalidade, possuem baixa auto-estima e são inseguros, estão apegados a
visões estereotipadas sobre papéis de gênero, vivendo ansiosamente a
necessidade de demonstrar sua própria masculinidade.
Embora existam, são raros os episódios violentos perpetrados por mulheres. Na
prática, na vida diária, são os homens que estabelecem até onde as mulheres
podem ir e qual o seu papel, tornando a violência parte integrante da
normalização, enquanto importante componente de controle social. Segundo Diniz
(11)"os limites nas relações humanas, no eixo do gênero, são fixadas por
homens. Eis porque a maioria dos agressores é constituída por homens e a
maioria das vítimas da violência, seja ela física ou sexual, é de mulheres".
Historicamente, os maus-tratos às mulheres eram aceitos e até enaltecidos como
práticas corretivas de manhas e erros. No Brasil colonial, segundo Cabral(12),
era permitido aos maridos corrigirem suas mulheres pelo uso da chibata. As
agressões físicas e psicológicas contra as mulheres apresentam- se como parte
das nossas raízes culturais, que determinavam às mulheres a função de servir a
seus maridos e filhos, dedicando-se, exclusivamente às tarefas domésticas, em
que pudessem manifestar seus dons maternais.
Desde pequenas, as meninas eram educadas para acreditar que deviam obedecer a
seus maridos; entretanto, os meninos eram educados para acreditar que tinham
poder para corrigir suas esposas. Com isso, a sujeição feminina poderia ser
enfatizada pelos constantes espanca-mentos da esposa por seu marido. No
entanto, como salienta Davis(13), algumas mulheres rebelaram-se, chegando a
atormentar e espancar seus maridos; outras davam um jeito de manipulá-los, de
forma que eles se acreditavam os únicos a tomar decisões.
Refletindo sobre a socialização e construção da identidade masculina, Nolasco
(14)refere a excessiva polarização na forma do homem perceber e compreender o
mundo, levando-o a opor masculino e feminino, dever e prazer, controle e
descontrole. Esse padrão de comportamento, construído a partir do modelo
tradicional patriarcal, acompanha o homem desde seu nascimento, como uma
referência. Assim, o mesmo passa a ter o seu cotidiano permeado de estimulações
que determinam sua incapacidade em contatar as próprias emoções e demanda
afetiva, que, por sua vez, delineia o aspecto violento e agressivo da
masculinidade. Segundo o autor, são esses atributos que potencializam, em nível
social, a manutenção e o incentivo à violência.
O autor afirma ainda que, através desse modelo, o homem concebe a idéia de
diferença como conceito biológico, que, por sua vez, funciona como um indicador
de oposição entre ele e a mulher. Essas diferenças passam a ser compreendidas
por ele como uma ameaça e criam-se mecanismo de defesa. Desse modo, a
desvalorização social a que as mulheres ficaram submetidas pode ser entendida
como uma forma de reação a essa ameaça.
Os indivíduos são transformados, através das relações de gênero, em homem ou
mulher, cada uma destas categorias-identidade excluindo a outra. Basicamente,
são essas relações de gênero que estruturam a relação entre o casal
heterossexual, as relações dos homens entre si e as relações entre as mulheres.
São elas que darão sustento ao modo de representar e simbolizar os direitos e
proibições masculinas e femininas.
Desse modo, além de serem definidas como relações sociais, as relações de
gênero são também relações de poder. Poder este, classificado por Bourdieu(15),
como simbólico, conceituado como o poder de construção da realidade, que tende
a estabelecer uma ordem de sentido imediato do mundo, em especial, do mundo
social. Os símbolos constituem os instrumentos de integração social que tornam
possível o consenso sobre o sentido do mundo social, que, por sua vez,
contribui, fundamentalmente, para a reprodução da ordem social.
Em sua análise da dominação masculina, o autor ressalta ainda que, as
estruturas de dominação são produtos de um incessante trabalho de reprodução,
para o qual contribuem os homens com suas armas, como a violência física e
violência simbólica; e instituições; como Família, Igreja, Escola e Estado.
2. METODOLOGIA
O estudo possui um caráter descritivo com abordagem qualitativa, tendo como
objetivos identificar as formas de expressão da violência na relação conjugal,
bem como identificar as causas para a sua ocorrência. O cenário da pesquisa foi
a comunidade do Calafate, pertencente ao bairro de San Martin, locada na cidade
de Salvador-BA.
Os sujeitos que participaram do estudo foram, dez homens adultos residentes na
referida comunidade do Calafate; com faixa etária compreendida entre 25 e 46
anos e que convivam conjugalmente ou tenham tido uma convivência conjugal,
através de casamento civil e/ou religioso ou relação consensual, de pelo menos
dois anos. Como técnica de coleta de dados foi empregada a entrevista semi-
estruturada.
A técnica de análise escolhida para trabalhar os dados obtidos no estudo foi a
análise temática, que, segundo Bardin(16), "consiste em descobrir os núcleos de
sentido que compõem uma comunicação cuja presença ou freqüência signifiquem
alguma coisa para o objetivo analítico visado".
Visando não ferir os princípios éticos estabelecidos Resolução N0 196/96 do
Conselho Nacional de Saúde(17) em relação aos indivíduos sujeitos da pesquisa
foram-lhe garantidos os seguintes direitos: a livre decisão de participar ou
não da pesquisa, o anonimato, sendo os mesmos identificados com nomes
fictícios, e o sigilo das informações; assim como lhes foi solicitado a
permissão das gravações, tendo-se como resposta a assinatura do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido.
3. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS
Violência no Cotidiano Conjugal
Nesse tema, discutimos a violência conjugal enquanto vivência, quais as formas
de expressão que ela assume no cotidiano conjugal dos sujeitos entrevistados,
tendo em vista as representações sociais desses sujeitos com relação a essa
violência, anteriormente discutidas, bem como sua função de organizadora das
condutas e comportamentos.
Violência Física
Apresentada como uma representação da violência conjugal, a violência física é
evidenciada, aqui, como prática no relacionamento conjugal de alguns sujeitos
entrevistados. Ela se caracteriza pelo uso da força física empregada através de
socos, tapas, pontapés, empurrões, dentre outros.
... bater, tanto chega a bater que a gente já foi duas vezes para a
delegacia e é chato, viu? (H1)
Já ocorreu murro, de eu e ela e quem começava primeiro era eu. (H2)
Um outro aspecto de destaque em algumas falas diz respeito à autoria feminina
dos atos violentos. No entanto, na compreensão das falas, observamos que essa
violência é desencadeada após algum ato de violência cometido anteriormente
pelo marido-companheiro.
Na minha relação tem xingamento, física, moral (traição) só da minha
parte, e física mais da parte dela do que do meu. Você fala A ela
fala B e não tem diálogo, aí no caso ela parti para cima, e é natural
do ser humano se defender e, quando você se defende, você passa a
atacar também, não fica só na defesa. Então, ela não teve controle
emocional, eu tive mais controle para segurar, mas poucas vezes
aconteceu isso, mais por causa de traição minha, no meu caso a
violência apareceu por causa das traições. (H3)
No momento que eu digo não e você diz sim, gerava violência, não vai
fazer e faz, eu dei murro nela, ela deu murro em mim, chegava na
minha cara passava o dedo no meu rosto e dizia isso, isso e isso, ou
me dava um murro como ela me deu, eram poucas agressões mas eram
equilibradas .(H4)
Desse modo, essa violência perpetrada pela mulher estar em equivalência ao
modelo feminista que, segundo Soares(10), reconhece e entende a ocorrência de
episódios violentos praticados pelas mulheres e como gestos de autodefesa.
Conforme esse modelo, a violência que afeta a mulher é, necessariamente, uma
violência de gênero, ou seja, uma violência masculina, que se exerce contra a
mulher pela necessidade de controlá-la e de exercer seu poder sobre ela. Trata-
se de um padrão de comportamento aprendido e, de várias formas, defendido pela
sociedade.
Para a autora(10), esse modelo de violência doméstica, em especial em suas
versões mais radicais, desconsidera o fato de que a violência pode ser
substancialmente diferente, para homens e mulheres, mesmo que as agressões
possam ser, quantitativamente falando, equivalentes. Todavia, mesmo que alguns
homens possam ser humilhados, desqualificados e atacados física e verbalmente
por uma mulher, é difícil imaginá-lo permanentemente aterrorizado,
sobressaltado, devastado em sua auto-estima, pela sensação de desesperança.
Violência Emocional
Segundo os sujeitos, no seu relacionamento conjugal, está presente, também, a
violência emocional na forma de xingamento e traição.
Até agora nunca chegou a violência física na minha relação, chega até
a violência verbal, às vezes um xinga o outro, saindo um porra aí,
outro aqui. (H5)
Tem violência no meu relacionamento, quem não tem? Mais a violência
emocional, que para mim é a pior violência, porque fica a vida toda,
embora quem mais cede sou eu. (H6)
Sempre ocorria a violência quando ela não me ouvia, faca e revólver
não, só bater boca, um xingar o outro. (H2)
Na minha relação, tem xingamento, física, moral(traição) só da minha
parte, e física mais da parte dela do que do meu. (H3)
No entanto, essa forma de violência não foi evidenciada, de fato, como uma
representação da violência conjugal no tema anterior. Isso se deve,
provavelmente, ao fato dessa violência passar desapercebida. Conforme assinala
Miller(18), a violência não-física, como também é conhecida, está lá, de formas
tão sutis que os sujeitos não conseguem reconhecê-la. Ela tem como objetivo
destruir o auto-respeito e a auto-estima, assumindo várias formas, que vão
desde o xingamento à humilhações em público, acusações de ter amantes,
humilhações para com a família, cárcere privado, proibição de fazer amizades,
privação econômica, dentre outros. Para a autora, a violência emocional pode
vir a ser um sinal que precede a violência física.
Explicação da Violência na Relação Conjugal
Nesse tema, foram agregadas as categorias que, segundo os sujeitos, explicam a
ocorrência da violência no seu cotidiano conjugal.
Medo
Como explicação da ocorrência da violência no relacionamento conjugal,
destacamos, nas falas dos sujeitos, o sentimento de medo, descrito como: medo
de perder o controle e o poder como autoridade e provedor econômico da família;
e de ser traído. O fato da mulher trabalhar caracteriza-se como uma grande
ameaça à ordem social, visto que possibilita à mulher uma relativa
independência econômica e de se relacionar com outras pessoas fora do círculo
familiar.
Homem casou e para ele a mulher tá trabalhando, mas ele é o cabeça da
casa, ele é quem comanda, né? O homem é que tem que assumir, a gente
não deve baixar as rédeas para a mulher, não... Para manter as
rédeas, eu procuro não demonstrar que preciso dela, exijo respeito. A
mulher não deveria ganhar mais que o homem, na cabeça dele ela vai
ter muitas coisas, assim... para fazer o que bem entender. Homem é
para ser ajudado pela esposa na falta de alguma coisa, mas não para
ficar na dependência dela... Ela diz que a gente se casou e é para
essas coisas mesmo, um ajudar o outro, mas isto me incomoda porque
ela, um dia, pode me jogar na cara, eu acho assim, né? O medo é este,
eu vou me sentir muito humilhado, e homem não pode ser humilhado pela
mulher. (H5)
Como podemos observar na fala acima, o fato da esposa trabalhar fora constitui
para o homem uma ameaça e uma humilhação para a sua condição de provedor e
chefe da família, principalmente se a esposa-companheira tiver um salário maior
que o dele. O sentimento de medo, assim, está vinculado ao estereótipo de macho
que, determinado pela construção social de gênero, impõe ao homem o trabalho
como sua primeira marca de masculinidade. À ele é conferido o papel de provedor
da família, não lhe sendo permitido falhar nessa tarefa, pois, justamente, isso
representa ser sustentado ou ajudado pela esposa.
A incorporação da mulher ao mercado de trabalho, conforme afirma Butto(19),
contradiz os padrões sociais tradicionais que orientam a divisão sexual do
trabalho e provoca o acirramento das tensões dentro da família, uma vez que
enfraquece o papel de provedor, repercutindo nas relações econômicas da
família, nos padrões de autoridade, na hierarquia, distribuição de
responsabilidades e nas decisões do casal.
Evidencia-se, nas falas, o medo de ser traído, medo de perder o controle sobre
a sexualidade da mulher, mediante o ingresso desta no mercado de trabalho, e os
estereótipos sócio-culturais que orientam o comportamento feminino. Nesse
sentido, a mulher é representada como um ser de juízo fraco, influenciável à
ação de amigas e colegas de trabalho, que poderiam induzi-la a trair seus
maridos. Em virtude disso, o marido não pode deixá-la à vontade, ou seja, ela
não deve ficar à vontade para sair com as amigas. Ela deve obedecer, ouvindo o
marido, com relação às amizades ou, caso contrário, a violência é desencadeada.
Quando a mulher não quer ouvir o marido, aí é o quê? Aí é partir para
briga, eu acho assim, a mulher precisa ouvir o homem, se ela ouvir o
homem não tem briga. Ela diz: "eu vou sair com uma amiga aqui, ir no
pagode aqui", é o que isso aí? Vai quem quer, tem amiga que diz: "ah,
fulano não tá aqui não, vá trair o marido". É isso! Amizade demais
não presta... O homem não deve deixar a mulher à vontade, à vontade
para sair mais a amiga, sozinha. Vem mil coisas na mente, traição.
(H2)
A violência chegou porque a mulher, quando trabalha, ela muda o
aspecto dentro de casa, sei lá, mas que muda, muda! Assim, em termos
de ter uma autoridade alta. A mulher que trabalha tem mais amizades e
tem muitas amizades que procuram desviar, e quando a pessoa tem o
juízo, a mente fraca pode até se guiar nesse elemento e vai embora.
(H8)
No momento que eu digo não e você diz sim, gerava violência, não vai
fazer e faz. (H4)
A gente queria ser uma pessoa liberal, aí tinha hora que eu não
gostava que ela saísse, mas ela queria sair, passar dos limites,
sair, chegar de manhã, então a gente começava a brigar e aí a gente
quebrava o pau, e era quebrar o pau mesmo, não era brincadeira não!
Brigar mesmo, de jogar garrafa, pegar pau e um quebrar a cara do
outro, era uma violência total. (H9)
Expectativa dos Papéis Masculinos e Femininos no Relacionamento Conjugal
Outra explicação para a ocorrência da violência no relacionamento conjugal dos
sujeitos da pesquisa, refere-se às expectativas que eles têm com relação aos
papéis sociais destinados à mulher, em especial, o papel de dona de casa,
submissa aos desejos do marido. A violência passa a ser justificada pela
inadequação da mulher a esse padrão de comportamento estabelecido.
Discordâncias em casa, quer um exemplo? Eu detesto um prato dormir
sujo na pia. Hoje, de acordo com uma reunião de casais que tem aqui
no salão da igreja, hoje eu já estou fazendo para evitar. Eles deram
conselho e todo sábado tem esta reunião: "você não gosta que durma
prato sujo na pia, ela não gosta de lavar, então, se tiver, você
lava". Então eu tou fazendo isto agora. Antes eu não fazia, eu
achava, eu não sei, antes eu fazia porque minha mãe mandava eu fazer,
quando não tinha quem fazia, ela fazia, meu pai nunca lavou um prato,
nunca varreu uma casa, eu nunca vi. Era a criação, o jeito da minha
mãe: era café na mesa, ela mesmo que tirava, sabe? Não era a parte do
meu pai, a parte dele era cumprir com as obrigações dentro de casa:
não deixava faltar nada para gente, colégio, farda... (H1)
Podemos observar, na fala acima, que as expectativas com relação ao papel a ser
desempenhado pela companheira, estão fundamentadas na construção social de
gênero que prescreve papéis socais para o homem e a mulher como próprias e
naturais de seus respectivos gêneros e que, por sua vez, foram apropriadas
pelos sujeitos através do cotidiano conjugal dos pais. Conforme salienta
Marodin(20), a família é a fonte fundamental de transmissão de valores e normas
aos indivíduos, os quais permeiam o pensar sobre casamento e modo de ser marido
e esposa.
Os papéis de gênero estabelecem modelos de comportamento que devem ser seguidos
em todas as esferas sociais. No âmbito jurídico, Izumino(6), ao analisar os
casos de conflito de gênero sob a ótica da justiça, refere que um dos
argumentos, até recentemente utilizado, era o de legítima defesa da honra. Nos
inúmeros casos de homicídio praticados por maridos ou ex-maridos, os agressores
eram absorvidos porque alegavam, em parte, que suas mulheres desejavam levar
uma vida independente e pública, não mais dedicada apenas à manutenção do lar e
aos cuidados com a família. Desse modo, a justificativa do crime dava-se
através de questões relativas ao comportamento, neste caso específico, da
mulher e da sua adequação aos papéis sociais.
Por outro lado, o rompimento da mulher com o modelo de comporta-mento, segundo
a fala abaixo, proporciona uma falsa independência da mulher, uma vez que ela
perde o respeito do homem ao tentar ser igual a ele. Ser igual significaria
compartilhar direitos, manter uma relação sujeito-sujeito, incompatível com a
ordem social androcêntrica que estabelece relações assimétricas entre os
gêneros, nas quais a mulher é colocada como objeto de desejo masculino, não
sujeito da relação.
Então, essa falsa independência da mulher, ela pode fazer isso, mas
ela vai perder muito, aquele respeito que o homem tem por ela. Isso
em casa também, ela diz: "vou para o Coletivo de Mulheres. Olhe! Você
não manda em mim, eu tenho direitos". Eu proibi e proíbo a hora que
eu achar que devo, "não vai para a reunião não, venha para cá ficar
com seu marido". Não é o Coletivo que está errado, porque eu não sei,
mas espero que aqui mostre o que é ser independente, que não é ser
igual ao homem. Se eu tiver uma mulher dentro de casa que é igual a
mim , eu vou ter um homem na minha casa, e eu quero uma mulher, não
quero uma mulher que faça tudo que eu faço. (H3)
Existe ainda a expectativa da fidelidade na relação conjugal, em especial na
fidelidade feminina, todavia, a traição masculina é apontada pelos sujeitos
como motivo para a ocorrência de violência conjugal. Ao mesmo tempo, ela é
justificada por fazer parte da natureza masculina, um dom ou, mesmo uma doença,
com conotação de fraqueza.
A violência apareceu por causa das traições. Infelizmente, é uma
doença, acho que existe alguma coisa no organismo do homem que faz
que ele seja mais caçador; a sociedade também ensina isso, né?
Infelizmente, o homem já tem aquele dom, que não sei o que acontece.
Acho que o cara tem que ter muita fé para segurar a onda. (H3)
Conforme salienta Izumino(6), os papéis sociais de gênero servem, também, para
regular o exercício da sexualidade feminina e os limites socialmente
estabelecidos para o seu exercício, não sendo questionado o comportamento
sexual masculino. Isso se deve ao fato da traição masculina, no imaginário
social, figurar como inerente ao homem, sendo, portanto, incontrolável e
legitimada pela sociedade.
Alcoolismo
A associação da violência ao uso do álcool é expressa nesta categoria enquanto
vivência da violência no relacionamento conjugal, como forma de explicar e, ao
mesmo tempo, desculpar sua conduta violenta, mediante os efeitos que o álcool
produz.
Teve uma época, que eu bebia e aí eu passava do limite, ficava uma
pessoa agressiva, muitas vezes não por causa de mim, mas por causa do
álcool.(H10)
Segundo Minayo(21), inúmeros estudos têm concluído que o álcool é a substância
mais significativa na articulação com várias formas de violência. No entanto,
ainda há muita incerteza quanto ás explicações causais. A autora refere que o
uso do álcool pelo homem apresentou-se como um significativo fator de risco
para a violência entre o marido e a mulher; todavia seu uso por mulheres não
foi detectado como fator de risco nas relações de violência entre parceiros.
Conclui, então, que o importante papel que o álcool desempenha nos contextos da
violência, fica em grande medida dependente de fatores, individuais, sociais e
culturais.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observa-se que a violência conjugal, compreendida através dos relatos dos
sujeitos, traduz a construção social de gênero que determina as relações de
gênero hierarquizadas, mediante a delimitação dos papéis sociais masculinos e
femininos, a partir da identificação da vivência da violência na relação
conjugal, bem como, através da explicação da ocorrência dessa violência no
cotidiano conjugal. O homem apresenta-se como hierarquicamente superior, ou
seja, numa posição dominante, esperando e exigindo da mulher uma posição de
subordinação e obediência.
Os sujeitos da pesquisa se apóiam, diretamente, no processo de socialização do
homem e da mulher, para definirem o modo de ser marido e mulher na relação
conjugal, numa perspectiva assimétrica e hierarquizada, na qual os referenciais
de masculinidade definidos pela sociedade, assim como, a inadequação da mulher
ao seu papel social, são apontados como explicação para a ocorrência da
violência na relação conjugal.
Embora tenha havido mudanças nos padrões de família com a crescente
participação das mulheres no mercado de trabalho, principalmente no que tange à
maior participação dos homens na realização de tarefas domésticos e cuidados
com os filhos, os ideais de família, com base no modelo patriarcal, ainda
permanecem vigentes no imaginário social masculino. Nesse sentido, o marido
deve ser o chefe da casa e principal provedor da família e as mulheres devem
ser responsáveis pelas tarefas domésticas e pelo cuidado dos filhos.
Para a maioria dos sujeitos da pesquisa, o fato de a mulher ter ingressado no
mercado de trabalho se apresenta como uma assustadora ameaça ao status de
autoridade, de chefe da família e ao monopólio do exercício da sexualidade da
esposa-companheira, visto que confere a mulher uma certa autonomia e maior
"criatividade" na sua relação com ele e com o mundo. Essa mulher deve ser
controlada, não deve ser deixada à vontade, para isso se utiliza da força ou
coerção física e emocional, o que corresponde às formas de expressão da
violência conjugal, presente na relação conjugal dos sujeitos entrevistados.
Isso nos leva a considerar que, combater essa violência significa repensar e
romper com os modelos sociais que impõem a supremacia de um gênero em
detrimento do outro. Conforme ressalta Bourdieu(22), a maior mudança reside no
fato de que a dominação masculina não se impõe mais como evidência de algo que
é indiscutível, isto graças ao trabalho crítico do movimento feminista que, em
determinadas áreas do espaço social, conseguiu romper o circulo do reforço
generalizado. Para mudar as condições de produção das relações de dominação, só
uma ação política que leve em consideração os efeitos de dominação através da
cumplicidade entre as estruturas incorporadas, tanto entre homens quanto entre
mulheres, e as estruturas de grandes instituições nas quais se realizam e se
produzem, não só a ordem masculina, mas também toda a ordem social (Estado e
Escola).