A expressão de necessidades no campo de atenção básica à saúde sexual
PESQUISA
A expressão de necessidades no campo de atenção básica à saúde sexual
The expression of needs in the field of the basic attention to the sexual
health
La expresión de necesidades en el campo de la atención primaria a la salud
sexual
Edir Nei Teixeira Mandú
Doutora em Enfermagem pela USP/EERP, Professora da Faculdade de Enfermagem e
Nutrição da Universidade Federal de Mato Grosso. enmandu@terrra.com.br
1. INTRODUÇÃO
A efetivação de projetos de atenção integral, no contexto do Sistema Único de
Saúde e de sua qualificação permanente, é essencial à concretização da saúde
como um direito. Esse é um desafio que requer mudanças na organização do
trabalho e nas práticas cotidianas de atenção, orientadas, entre outros
aspectos, por uma interpretação abrangente de saúde e pela consideração à
complexidade dos sujeitos e suas necessidades, segundo as especificidades de
vida, saúde e doença.
A saúde humana depende largamente da satisfação de necessidades criadas/
recriadas na vida social, abrangendo tanto a manutenção e qualidade da vida
física, psíquica e social, como a expressão dos potenciais humanos, em meio a
condições sociais materiais e não materiais. Assim, o setor saúde tem como uma
de suas finalidades contribuir para a satisfação individual e coletiva de
necessidades, o que faz lidando com complexas questões de subsistência,
condições e manifestações da vida, com processos e problemas decorrentes dos
padrões de sociabilidade de igualdade/desigualdade coletivamente estabelecidos,
e com o desenvolvimento dos potenciais humanos(1).
A construção de bases mais flexíveis e abrangentes de interpretação de
necessidades e a adoção de medidas de incorporação e atenção a estas, segundo a
sua heterogeneidade, encontram-se intimamente relacionadas à possibilidade de
materializar a integralidade no cuidado à saúde(2).
Contudo, essa é uma questão complexa. Nela se encontram envoltos aspectos
diversos, referentes à constitucionalidade das necessidades, à sua diversidade,
vivência e expressão nos serviços de saúde e fora deles, e às formas políticas,
técnicas e práticas adotadas à sua apreensão e cuidado pela própria população,
pelos serviços de saúde e/ou outras instituições.
Assim, a perspectiva de integralidade, tão cara à transformação do sistema de
saúde e de suas várias práticas de cuidado, passa necessariamente pela análise
e enfrentamento abrangente de questões, entre outras, como: que necessidades em
saúde requerem atenção dos serviços de saúde? Como elas se apresentam a estes?
Como os serviços as reconhecem, apreendem ou recusam? Sob que abordagem
político-ética e técnica estas devem ser captadas e acolhidas para convergirem
para projetos de atenção integral?
Neste artigo, pretende-se contribuir com parte desse importante debate,
tratando do tema das necessidades no específico campo da saúde sexual,
enfocando a sua contraditória expressão no espaço social da atenção básica à
saúde. A integralidade dos cuidados à saúde sexual, que se constitui parte do
projeto mais abrangente de atenção no campo da saúde, encontra-se intimamente
relacionada à consideração complexidade e especificidade dos exercícios da
sexualidade (sexualidade é entendida como processo complexo e integrante da
totalidade de homens e mulheres, pertinente à experiência erótica, ao prazer,
sexo, à autopercepção, afetividade, independentemente da reprodução, ainda que
seja com esta intercambiável. Esses elementos configuram-se de modo relacional,
em meio à vida, sendo mediados através de corpos individuais e coletivos, como
produtos de dinâmicas e integradas expressões biológicas, psico-emocionais e
socioculturais(3)) e, também, à sua expressão peculiar através de necessidades
diversas.
Assim, toma-se, aqui, como objeto de debate a relação necessidades demandas
nesse específico campo, buscando, primeiro, evidenciá-la como uma questão
importante do ponto de vista da organização tecnológica do trabalho nas
unidades básicas e, segundo, objetivando mobilizar algumas análises e
indicações em torno da sua relação com os cuidados assistenciais.
2. METODOLOGIA
O tema em discussão constitui a pesquisa de doutoramento da autora(3). A
perspectiva analítica adotada estabelece conexões entre as peculiaridades da
atenção básica à saúde sexual e reprodutiva, as características históricas das
políticas e práticas em saúde, as dimensões culturais que orientam um dado
olhar e agir sobre os corpos, e a dinâmica micropolítica processada no
cotidiano da instituição analisada.
As fontes de dados utilizadas incluíram a organização e o funcionamento da
instituição básica de saúde eleita para o estudo (um dado Centro de Saúde), a
localidade em que esta se situa, documentos e registros do setor saúde
municipal, além de relatos profissionais e da clientela. Para a sua coleta
foram utilizadas diversas técnicas, como observação direta assistemática e
sistemática, entrevistas abertas e semi-estruturadas (individuais e grupais),
consulta a documentos e registros de informações em saúde.
Aqui, apresentam-se em especial dados de observação direta da unidade básica
selecionada e, também, de entrevistas semi-estruturadas realizadas com a sua
clientela. As entrevistas foram organizadas a partir de questões gerais sobre
necessidades e vivências em saúde sexual e reprodutiva e experiências como a
unidade de saúde, incluindo relatos, explicações e pontos de vista.
Participaram das entrevistas quatorze mulheres e treze homens de diferentes
idades (excluindo-se crianças), com experiências em situações de maternidade,
paternidade, e/ou com problemas e necessidades no campo da reprodução e
sexualidade. Na apresentação das falas dos entrevistados, tal como na pesquisa
original, utilizam-se denominações que resguardam as suas identidades. A
pesquisa foi submetida à avaliação e parecer de Comitê de Ética em Pesquisa, e
obteve consentimento livre e esclarecido dos participantes conforme
regulamentado nacionalmente.
3. RESULTADOS
A contraditória expressão de necessidades e demandas na atenção básica à saúde
sexual
Na atenção básica à saúde e saúde sexual, é possível reconhecer a expressão,
por parte da clientela, de uma série de necessidades relativas às condições de
vida, ao acesso a tecnologias médicas, e às várias experiências peculiares de
vida, conexas à complexidade vital e à dinâmica da sexualidade e reprodução. O
espaço da consulta médica, o da visitação domiciliar, o do atendimento formal e
informal no interior da unidade básica, assim como o espaço das práticas
educativas grupais, dentre outros, são ricos em manifestações pertinentes à
vivência de diversas necessidades. Contudo, nem todas as necessidades vividas
por homens e mulheres, em diferentes fases de suas vidas, exprimem-se nos
serviços de saúde, ou nem sempre necessidades são manifestas, nestes, de forma
explícita, como demandas de cuidado.
Observou-se, na atenção analisada, que certas necessidades ao serem
apresentadas como problema ou solicitação de cuidados o mote geralmente é o das
manifestações orgânicas, acompanhadas da demanda de consulta (médica),
informação, recursos diagnósticos e/ou terapêuticos, e/ou outros apoios
assistenciais externos ao serviço. Apresentam-se tais necessidades, por
exemplo, como busca de resolução de um dado problema traduzido como físico,
demanda de informações sobre ele, solicitação de exames e/ou de sua
interpretação, acesso a medicamentos, a recursos contraceptivos, a um cuidado
preventivo (imunização, exame de próstata, exame colpocitológico, avaliação
ginecológica), ou, ainda, como busca de acesso à assistência em outros serviços
(para laqueadura, vasectomia, internação, etc.).
Em síntese, necessidades explicitamente manifestas (traduzidas em demanda), de
modo formal/informal, na consulta médica e em outros espaços do serviço,
espelham, primeiramente, a busca de resolução e/ou prevenção de um possível
problema, apresentando-se como demanda geral, obstétrica ou ginecológica,
segundo o modo de organização tecnológica do trabalho local.
Por detrás desses acionamentos, no entanto, enunciam-se processos mais
abrangentes vividos no âmbito da sexualidade (assim como em outras dimensões da
vida), como conflitos familiares, sofrimentos psico-afetivos e sexuais, medos,
discriminações, estereótipos, auto-estima comprometida, etc., não traduzidos,
por quem os vive, como necessidades, problemas e/ou demandas explicitas de
tecnologias específicas dirigidas ao serviço.
Como se pode ver no registro a seguir, relativo a um fragmento da atenção
acompanhada, por detrás do problema orgânico manifesto, localiza-se o desejo de
confirmar a fertilidade e superar medos, cobranças e culpas:
Eu queria fazer um exame para ver se está tudo bem porque eu tenho
vontade de ter outros filhos. Parece que meu útero está fraco. (...)
Eu não sei como eu posso, porque fico com uma pessoa e sinto bastante
prazer, mas depois eu sinto frio, me dá cólica e aí desce um
sangramento. (...) Não sei o que eu tenho, eu quero saber. Você não
tem como se posicionar, que você não tem nada. A Igreja cobra de
você. Você se cobra. Eles querem saber se você tem alguma coisa. Eu
queria fazer de novo USG, exame de cabeça, das minhas vistas. Eu
tenho medo de câncer e derrame. Agora eu fiz ultra-som e diz que não
deu nada. Mas eu queria ver o que era essa dor (anal) que eu estou
sentindo (Cléo, 30 anos, depois de mencionar que autoprovocou um
aborto).
Um outro exemplar do que se declara na retaguarda de uma demanda é quando esta
incide, à primeira vista, em informações em torno de uma condição vital ou
problema vivido, e sobre os recursos que o serviço dispõe para enfrentá-lo:
Eu não sou burra, mas era meio tapada com as coisas da menopausa. Eu
não sabia que dava problemas nos ossos, de hormônio, que tinha que
fazer exames. Nada disso eu nunca soube. Eu achava que o jeito de se
relacionar (referindo-se a atividade sexual) era para sempre. Mas com
o passar dos anos, como está acontecendo comigo, vai acontecendo com
várias mulheres, muda tudo. Não tem uma orientação e isso seria
ótimo. (...) Eu vim falar com o médico, eu expliquei para ele. Eu
perguntei se tinha um remédio (Juce, 50 anos).
Mas, mais que isso, a busca é por um apoio amplo a um sofrimento relacional/
familiar, psico-afetivo e sexual enfrentado:
Meu marido cobra de mim sexo, porque ele não tem em casa. Diz que eu
vou me arrepender na hora que ele arrumar outra; se satisfizer ele,
sai de casa. Ele tem 54 anos. Eu sou mais velha do que ele, mas a
vida dele, sobre isso, é normal. Toda vida nós transamos normal.
(...) Agora me machuca e eu fico nervosa. Eu quero explicar para ele
e ele não entende. Ele falou para eu comprar algum lubrificante, mas
eu não sei o que comprar. (...) Eu conversei com o clínico, eu
expliquei para ele e ele não me disse nada. Ele me mandou fazer esses
exames. (...) Ele disse que é porque eu não tenho mais hormônio.
(...) Depois que fizer os exames ele vai ver se tem algum remédio
para que eu possa melhorar. Ele vai explicar depois dos exames (Juce,
50 anos).
Através do modo de uma cliente relacionar-se com o próprio corpo, manifestam-
se, em certos momentos do atendimento, necessidades relativas à percepção e
aceitação corporal, que não são, contudo, apresentadas e traduzidas claramente
como demanda de cuidado:
Em uma consulta médica, no momento do exame, a profissional diz:
vamos fazer o preventivo? A cliente responde: Não estou uma belezura.
Ah, eu tenho vergonha. Diz a profissional: Não se preocupe. É tudo
igual, só muda a cor. A cliente tira toda a roupa e deita
envergonhada. Não há lençol para cobri-la.Conversam rapidamente sobre
o uso de hormônios após a menopausa. A profissional examina. Diz que
há corrimento, mas não ferida no colo, que está tudo bem e pode
descer. Orienta o uso de um medicamento para o corrimento, chegando
ao fim do atendimento (Nota de observação de uma consulta médica).
De outro modo, dadas necessidades vividas no âmbito da sexualidade, que não são
compatíveis com os esquemas historicamente organizados de atendimento, são
canalizadas, de algum modo, como solicitação de cuidado. Assim, se localizam
expressas necessidades psico-afetivas e sexuais que, como nas situações abaixo
registradas, são recusadas ou medicalizadas pelo serviço.
Cliente (C): apresenta o resultado de uma USG pélvica solicitada em
consulta prévia; diz que ainda não fez a mamografia e que o exame
preventivo não deu certo
Médica (M): olha o resultado da USG.
C: fala que sente dor no abdômen e que não tem mais vontade de ter
relação.
M: pergunta se perde urina aos esforços.
C: diz que só quando ri muito.
M: faz um diagnóstico olhando a USG.
C: volta a falar que o marido não a procura, que não tem vontade de
ter relação e que às vezes fica até dois meses sem ter relação.
M: ignora a demanda e pergunta sobre a dor na mama; diz que aguarda
os resultados dos exames já solicitados. Faz um encaminhamento para o
HST e diz à paciente que ela precisa de cirurgia para resolver seu
problema (Nota de observação).
Qual sua idade? 52.
É casada? Tô descasando.
Continuam as interrogações até o exame. (...)
Após o exame, a profissional diz: desce e pode pôr a roupa. A cliente
veste-se.
Vou pedir USG e mamografia, mas os resultados demoram.
Por que esses resultados demoram tanto?
(Conversam rapidamente em torno disso).
A cliente pergunta: mas por que eu não tenho vontade de fazer sexo?
Porque está na menopausa. Às vezes problema com o marido ou em casa
atrapalha. Vou pedir os exames.
Uma psicóloga me ajudaria?
Ajuda, mas é difícil (não dá continuidade). Repassa os pedidos de
exames e se despede (Nota de observação).
Pois bem, necessidades abrangentes vividas na esfera da sexualidade são então,
de alguma maneira, mobilizadas no espaço do atendimento, articuladas ou em meio
a tecnologias comumente ofertadas e/ou demandadas.
A doença e sofrimentos são experiências que comumente transtornam a vida das
pessoas. Isso implica em que a procura e uso do serviço de saúde, ainda que
orientados primeiramente para a resolução de um problema traduzido como
orgânico, também abrigue, como visto, manifestações e necessidades da vida como
um todo.
Um outro modo através do qual se exprimem necessidades mais amplas ao serviço é
mediante processos de avaliação e projeções da clientela em torno do que a
unidade de saúde deveria ofertar. Necessidades manifestas dessa forma, ainda
que não se concretizem primeiramente em demandas explícitas no dia-a-dia do
atendimento, também são indicativas, em alguma medida, da tentativa de
recomposição da amplitude da vida, além de evidenciar restrições ou
incorporações dos serviços no acolhimento de carências e sofrimentos vividos.
Um exemplo disso encontra-se na concepção explicitada, a seguir, de que a
atenção básica deve disponibilizar um suporte mais abrangente e favorável à
constituição de novas relações familiares, sendo considerada a singular
experiência de uma gravidez adolescente e de um casamento não planejado:
Eu acho que se pudesse surgir um curso para ajudar, na nossa vida,
como nos prevenir, como mudar a rotina do casal para não atrapalhar.
Se tivesse um psicólogo ajudando casais, com isso teria menos casais
se separando por pouca coisa, não agüentando a pressão do
relacionamento. Nós somos praticamente adolescentes, têm muitas
coisas... Vamos passar barreiras. (Val, 18 anos, grávida).
De um outro modo, através da avaliação positiva do que se encontra disponível
no atendimento, manifesta-se a expectativa de que os profissionais de saúde
considerem a globalidade de suas vidas, integrando o apoio psico-emocional à
atenção:
Esse médico é bom porque além de tudo ele vê o lado psicológico da
pessoa, ele ajuda você também pessoalmente. Ele não é aquele tipo de
médico que faz as coisas, te dá o remédio, acabou e vai embora. Ele
fica sabendo coisas da sua vida, do seu trabalho, que você mesmo fala
para ele. Se precisar, ele vai na sua casa e te ajuda, como fez
comigo quando meu pai morreu (Dida, 33 anos, falando de um
profissional de outra unidade de saúde).
A despeito da lógica que prevalece no âmbito da atenção à saúde, que recorta
uma dada complexidade por referência à restrição e fragmentação da totalidade
da vida humana, certamente não há nela linearidade. A complexidade que
comumente se desloca nesse contato não se encontra, como se viu, dele ausente,
colocando em questão e confronto a qualidade da assistência prestada. Essa
tensão entre complexidades distintas, a recortada no serviço de atenção básica
e a concretamente vivida pela clientela, manifesta-se nos seus espaços, em suas
brechas, com toda força seja como demanda, expressão implícita de necessidades,
ou como modos de pensar, criticar e valorar a atenção.
Há várias razões que explicam a procura ou não dos serviços de saúde, a
apresentação individual e/ou coletiva de dadas necessidades, e sua tradução em
demandas tecnológicas específicas.
Do ponto de vista da expressão individual, o que se identificou no estudo é que
tal procura, a tradução e apresentação de necessidades e demandas guardam
relação com vários processos: com a vivência de situações interpretadas como
problema; a rede de apoio social extra-serviço de saúde encontrada;
interferências do problema no cotidiano e, deste, na procura do serviço. De
igual modo, essa expressão correlaciona-se: a dadas condições subjetivas
(afetivas e culturais); à interpretação de processos vividos como problemas e
demandas a serem canalizados aos serviços de saúde; e ao reconhecimento, ou
não, de responsabilidades, espaços e condições de acolhimento nos serviços ao
que se vive, busca apoio e resolução.
Pois bem, necessidades abrangentes vividas, relativas à sexualidade, não se
transformam em demandas explícitas em função de razões diversas: porque são
"naturalizadas", reprimidas ou negadas (em função de medos, estereótipos e
valores culturais incorporados); não são percebidas como tal ou não são
priorizadas em dado momento; porque não são concretamente absorvidas pelos
serviços ou, estes, não são vistos como espaço e com qualidade para tal.
Certas condições subjetivas, como medos (de dor, julgamento, exposição),
vergonhas, preconceitos, modos de ver e de sentir o uso de certas tecnologias,
que podem, inclusive, ser consideradas campo de necessidades e alvo de atenção,
podem redundar em um distanciamento do serviço:
Ah! Eu fui uma vez só, nunca precisei de médico. Eu tenho vergonha,
mas eu tenho problema. Eu não falo porque tenho muita vergonha. Eu
tenho vergonha até de falar com minha mãe (Adolescente, manifestando-
se em uma visita domiciliar).
Quando eu era moça eu tinha uma ferida; falou que se eu não tratasse,
ela poderia ficar uma ferida grande, podia virar um câncer. Muitas
amigas minhas depois de casada tiveram que fazer cauterização. (...)
Eu fui uma das únicas que não fiz. O que é pior é que todo mundo fala
que dói. (...) Você vai e não se sente bem com um homem, mesmo que
tenha uma assistente. Agora com a mulher é mais fácil porque o corpo
é o mesmo. (...). Minha mãe vivia dizendo: filha fecha essas pernas,
porque o homem não pode ver essas coisas. Você cresce assim, ai de
repente você vai lá e você tem que ficar lá, daquele jeito (Tati, 18
anos, grávida, falando do exame ginecológico).
A gente fez esse exame (avaliação da próstata), fizemos radiografia e
várias coisas. É muita dificuldade para fazer. A primeira coisa é
machismo. (...) Já passamos por várias palestras, com psicólogos,
médicos, com tudo. Então a gente foi indo, como no dizer do povo, foi
se soltando (Ri). Mas dentro do preconceito do homem, de modo geral,
ele não vai. No exame de próstata a gente se sente coagido (Dito, 54
anos).
A sexualidade, socialmente, é tida como referente ao universo privado. Assim,
há quem a traduza como "um caso seu":
Eu não procuraria ninguém, porque eu acho que este seria um caso meu
(Ana, 52 anos, justificando a não procura da unidade para resolver
problemas vividos na esfera sexual).
Há, ainda, quem negue a abordagem de problemas vividos nessa esfera até mesmo
com a companheira:
Eu tive problema de uns quinze anos para cá, questão de 47, 48 anos
para cá. Hoje mesmo eu estou quase morto. (...) Eu não sei por quê;
se é muita doença, porque eu nunca mais me senti bem. Negócio de
sexo, eu nunca procurei o médico para resolver não, porque às vezes
eu até me acanho de falar ao médico. (...) Não converso com ninguém
sobre isso, nem com minha mulher. Ah! Mas ela sabe, ela é minha
companheira (Gera, 67 anos, falando de uma provável impotência).
Nem sempre se reconhece o espaço dos serviços como uma referência indispensável
em questões de saúde sexual. Este aspecto evidenciou-se particularmente entre
clientes homens, ao valorizarem outras unidades sociais (religiosa, familiar,
grupo social de referência) como alternativas mais apropriadas de apoio.
Assim, se julga que o Centro de Saúde só pode atuar dentro de determinado
âmbito (na prevenção e cura de doenças), não sendo uma referência primeira para
questões relacionais e sexuais:
Como eu te disse, nosso espelho vai ser a família. O que é conturbado
e sabemos que não é certo vamos tentar deixar de lado. Se nós tivemos
uma boa criação temos onde nos espelhar. O Centro de Saúde ajudaria
se oferecesse cursos, palestras a respeito do relacionamento sexual
entre um casal, na vida do dia-a-dia também. Apesar de que ajudaria
pouco, mas poderíamos tirar algum proveito. A família é que é o
espelho. Mas sobre sexualidade poderia ajudar em prevenção,
tratamento (Alex, 19 anos).
Essa forma de traduzir necessidades, problemas, e apoios pode ser interpretada
através de ângulos distintos: como decorrente de um modo cultural de lidar com
as questões da sexualidade, tida como relativa ao âmbito do universo privado;
ou como parte da recusa da população aos processos de medicalização da vida
adotados pelo setor saúde.
Nas sociedades modernas, os processos dirigidos pela razão encontram-se
fortalecidos, cultuando-se idéias e informações. Nela, o corpo exprime-se
simbólica e ideologicamente por referência a esses componentes. Em contraponto,
a sua dimensão sensível e sexual mostra-se subalternizada, em meio a um certo
desprezo por essas dimensões do corpo, ligado à difusão de idéias cristãs. A
nudez e a atividade sexual, na modernidade, tornaram-se "confinadas" a um
espaço privado, sobretudo no âmbito da estrutura familiar. Desenvolveu-se o
pudor associado ao sexo e às funções corporais, sobretudo às de eliminação.
Surge uma nova moral em torno do corpo e da sexualidade, que os lança ao
domínio privado, ao tempo em que estes passam a ser controlados e escondidos,
sobretudo em sua dimensão sexual(4).
A sexualidade ocupa um lugar privilegiado no centro dos valores associados à
intimidade da pessoa moderna e ainda que sancionada por um discurso público,
como um dos universos de normatização e legitimação do social, ela tem sido
limitada a espaços íntimos e fechados, com uma certa predominância que ainda se
mantém(5-6).
Essa perspectiva cultural, absorvida pelas pessoas, resulta em dificuldades de
expressão de questões relativas à afetividade, ao erotismo e sexo. Estes são
traduzidos e vividos como referentes ao universo reservado da vida, resultando
também em limitada absorção e abordagem nos serviços, onde profissionais também
apresentam, em alguma medida, dificuldades no lidar com a sexualidade para além
de seus domínios privados.
No capitalismo, os corpos ganham marca de propriedades privadas, uma vez
considerados "bens de produção", tornando-se alvos de controles. Nessa
inserção, são vistos como corpos que produzem e consomem(4), impondo-se um dado
modelo corporal. A esse modelo atrelam-se desejos, imagens e aprendizados,
sendo os corpos ensinados a se esquecerem de suas outras dimensões(7), o que os
inscreve em certa homogeneização e em modos "assexuados" de apresentar-se
publicamente.
À historicidade da propriedade de bens de produção, correlata ao crescimento da
privatização dos espaços físico-sociais, segue-se uma história de apropriação
privada dos próprios corpos. Diferentemente, os corpos medievais tinham um
caráter público, trocavam fluidamente entre si, eram expansivos, misturados com
outros corpos e matérias, sem o sentido de privacidade, disciplina e vergonha
presentes na vida moderna. Contemporaneamente, os corpos não só se separam
entre si como os homens distanciam-se de seus próprios corpos. Exige-se, frente
às tensões sociais, um "bom comportamento", construído com base numa
objetividade em relação à própria subjetividade, no autocontrole emocional, na
domesticação do corpo, o que, contraditoriamente, opõe sua privatização a uma
certa insensibilidade e abstração de si(4).
Nesse transcurso, configuram-se autocontroles corporais, medos, preconceitos,
repressões, sentimentos de vergonha e culpa, dentre outros, expressões dos
controles sociais sobre o corpo e dos correspondentes distanciamentos nele
produzidos.
O que se exclui da vida coletiva e se atribui à ordem do privado também é, de
certo modo, excluído da convivência e da esfera política. Assim, imersos nessa
cultura, os que recorrem, ou não, aos serviços de saúde têm dificuldades em
exprimir processos vividos no âmbito da sexualidade e em demandar direitos como
o de acesso a cuidados nesse específico campo.
Contudo, essa micropolítica do corpo não se expressa unicamente pelos
distanciamentos, ocultações e fragmentações, mas também por resistências. Não
há completa absorção dessa cultura na vida das pessoas sem qualquer oposição,
como não há isolamento do orgânico de outras dimensões do corpo, sem que este
mobilize e realce a sua totalidade(4).
Coexistem, assim, modos mais amplos e mais restritos de representar e
apresentar o próprio corpo. É por essa razão que, como se demonstrou,
necessidades amplas no campo da sexualidade apresentam-se de algum modo nos
serviços básicos de saúde, a despeito do recorte cultural predominante em que
se inscrevem e de dificuldades decorrentes.
Também é importante considerar que o projeto cultural construído na modernidade
se associou à lógica da produção incessante de mercadorias e consumo, em que
necessidades são continuamente criadas e respostas, a elas, demandadas. O
consumo faz parte dos objetivos sociais sendo, assim, continuamente estimulado,
absorvido e traduzido como demanda social(8). Essa lógica estende-se também ao
setor saúde, que amplia a sua esfera de atuação sobre a vida e seus processos
medicalizando-os, gerando continuamente novas tecnologias, necessidades,
demandas, consumo e, também, formas diversas de recusa.
Desse modo, de um ângulo, a restrita apresentação de necessidades explícitas no
campo da sexualidade articula-se ao seu domínio privado, historicamente
construído, e, de outro, revela-se como decorrente de uma possível rejeição ao
controle médico exercido sobre a vida; particularmente considerando que os
clientes a que se fez menção reconhecem outros espaços ou instituições da vida
social (religião, família, grupo de referência) como alternativas de apoio.
Esses dois aspectos, em particular, problematizam o modo de os serviços lidarem
com a questão: afinal, o que estes devem ofertar à clientela? Como se aproximar
daquele universo? Como atuar de um modo a não reforçar a sua medicalização?
Essas questões só podem ser adequadamente respondidas, entre outros aspectos,
com a participação dos sujeitos nelas implicados. A complexidade da vida, se em
perspectiva, envolve e considera interesses, relações de poder, contextos,
processos culturais, subjetividades e os sujeitos envolvidos. Esses aspectos,
portanto, devem ser considerados como ponto de partida de possíveis definições/
redefinições em torno de aonde chegar, com que intenção, alcançando que
sujeitos, com que conteúdos e formas. Nesse processo, é fundamental a crítica
tanto ao modo histórico de a sociedade e os serviços de saúde lidarem com o
corpo como às suas marcas e intromissões na vida e subjetividade das pessoas.
Outro aspecto que se desprende em torno da relação necessidades em saúde sexual
- demanda - serviços básicos é a canalização de necessidades explícitas,
atreladas ao que se encontra disponível nos serviços de saúde (do que neste se
reconhece como significativo frente a necessidades percebidas).
Entre homens e mulheres, há quem julgue que a apresentação de demandas
específicas, afeitas à esfera sexual e afetiva, depende de certas condições:
como acesso a um profissional que entenda do campo, e que seja visto como de
confiança (uma das condições de acolhimento especificada):
Eu acho que deveria ter psicólogo para esse tipo de pessoa (que tem
problema com os filhos), para criança com problema, ou mesmo para
nós, os pais, que temos algum problema em casa e não temos com quem
falar. Se o postinho tivesse um psicólogo seria muito bom, porque têm
filhos que têm pais que precisam de psicólogo, têm filhos que apanham
do pai, da mãe (Ira, 37 anos).
Eu tive aqui, na semana passada, e conversei com o Dr. R. o meu caso.
Eu estou sentindo muito fria. (...) Eu o conheço há bastante tempo,
por isso falei (Ana, 52 anos).
A apresentação de necessidades referentes à dimensão sexual encontra-se sujeita
à possibilidade concreta de a demanda ser remetida ao serviço ou, de outro
modo, ao reconhecimento de uma abertura, neste, à sua expressão e acolhimento:
Eu não procuraria o serviço para um problema sexual. (...) Eu acho
que não ia ter a informação lá (no serviço). Na consulta não dá
tempo. Se ela (a profissional) estivesse ali para isso eu falaria com
ela, sem dúvida. Mas as consultas são muito rápidas. Eu acho que nas
consultas as pessoas deveriam ter mais liberdade para falar o que
querem, o que sentem (Mari, grávida).
Assim, a demanda pode não ser canalizada em função da não identificação, no
serviço, de referências possíveis, como sugere a fala a seguir: Eu não sabia
que aqui tinham profissionais que podiam ajudar a gente na área da sexualidade,
por isso eu não vim (Juce, 50 anos)
Depreende-se das observações feitas e conteúdo das entrevistas que, ao tempo em
que necessidades são vividas e tendem a se manifestar nos serviços, barreiras
de ordem interna (sociocultural, subjetiva) e externa (referentes ao contexto
de vida e à organização e qualidade do atendimento) influem em sua expressão
como demanda e em sua incorporação como objeto de cuidado.
A busca de respostas, na atenção básica, a necessidades vividas encontra-se
limitada ao modo como nesta se produz o cuidado à saúde e, especificamente à
saúde sexual. Em dadas situações, se algum espaço é aberto a sua expressão,
necessidades tendem a se manifestar de modo explícito; se este é restrito,
estas não se transformam necessariamente em demandas formais, embora não deixem
de se apresentar, de algum modo, como processos integrantes da vida e
experiências humanas.
É complexa a inter-relação necessidades - demandas - serviços de saúde. Isto
porque a saúde em qualquer esfera depende, entre outros fatores, das condições
e qualidade de vida, dos contornos de proteção social do setor saúde e de
outros setores, e dos cuidados sociais direcionados à satisfação de
necessidades humanas.
Nesse sentido, cabe demarcar que esse encontro, no que se refere aos serviços
de saúde, articula apenas uma parte das necessidades e demandas de vida e
saúde, sendo considerada a complexidade da questão saúde e a lógica histórica
de organização dos cuidados nesse âmbito. Concretamente, como se viu, há
necessidades em saúde que não são absorvidas ou compatíveis com os atuais
serviços de atenção básica e há as que nem mesmo chegam a se expressar neles
como demandas ou pura expressão de sofrimentos vividos.
Necessidades em saúde incorporadas pelos serviços públicos de assistência
básica, entre outros aspectos, guardam relação com a transição das doenças, com
construções epidemiológicas (tradução e reconhecimento do que tem socialmente
importância), e com o marco de proteção social da saúde. Esses aspectos, em
última instância, resultam em maior ou menor aproximação dos serviços locais da
complexidade de vida e saúde-doença dos sujeitos e grupos a que se voltam.
Historicamente, os serviços de saúde organizam sua atenção tomando por
referência, em alguma medida, definições políticas (nacionais, estaduais e
locais), informações epidemiológicas (mais ou menos específicas), direitos
legais (de forma mais ou menos abrangente), propostas e demandas (expressas
mais amplamente, ou não, via controle social e no dia-a-dia dos serviços).
Ocorre que o marco de proteção social, no Brasil, sobretudo a partir do século
XX, segundo interesses do Estado/Sociedade, vem sendo encaminhado lado a lado
com a classificação de doenças, demarcado pela paulatina transferência de
responsabilidades para os indivíduos, ampliada nos tempos atuais no contexto de
defesa e aprofundamento da privatização dos serviços sociais em geral.
Assim, no campo da saúde sexual, na atualidade, recortam-se como alvos
prioritários de controle certos problemas identificados como de significativa
expressão epidemiológica, em torno dos quais há exigências sociais, como as
DSTs, a aids, o câncer de colo uterino e mama em mulheres e o de próstata em
homens, dentre outros.
A questão relevante é que face à simplificação da vida e sexualidade que
sustenta essa organização de cuidados, a partir de uma proteção social limitada
a um quadro restrito de morbidades, deslocam-se necessidades mais amplas.
Nos modelos históricos de atenção construídos, ao lado da restrição do cuidado
a certas necessidades, ocorre também a sua fragmentação, via fragmentação do
próprio atendimento, assim como a sua apreensão através de uma racionalidade
orientada especialmente para o diagnóstico e tratamento clínico.
O olhar e agir dos profissionais sobre os sujeitos e suas necessidades
estruturam-se em consonância com saberes e práticas médico-científicas
predominantes, parte da racionalidade científica moderna, que é caracterizada
por nichos de especificidade profissional e pela fragmentação do conhecimento e
da prática assistencial(9).
Nessa racionalidade, a prática profissional em saúde, com predomínio, compõe-se
de fundamentos das ciências biomédicas e da epidemiologia clínica;
conhecimentos que restringem o olhar e a atuação sobre a complexidade de vida
dos sujeitos e suas necessidades em saúde. A complexidade pensada e
concretizada é a médica, em que o sujeito é considerado apenas parcialmente -
em seu processo orgânico-funcional - pelo recorte do tipo de ajuda que se
entende socialmente que deva corresponder aos diferentes níveis de acessamento
da atenção à saúde(10). Nessa lógica, o núcleo de atuação de cada profissional
sobrepõe questões de vida e sofrimentos humanos que, como se viu, acabam por se
apresentar de algum modo no serviço de saúde.
No paradigma científico dominante, as oposições binárias construídas em torno
do corpo permitem o privilegiamento da dimensão física sobre as demais. A idéia
é a de abstração das vivências concretas das pessoas dos valores e
subjetividade que a acompanham. Nessa forma fragmentada de fazer ciência, os
sujeitos são vistos e tratados de forma isolada e impessoal, afastados de suas
emoções, sentimentos, valores e, portanto, de seus próprios corpos(11).
Desse modo, a dialética mente/corpo, razão/emoção, vivência/subjetividade não
se constitui comumente em fonte de conhecimento, em aprendizado profissional e
em prática, resultando daí a contínua reafirmação da fragmentação e
simplificação das experiências vitais e, particularmente, da sexualidade.
Dados esses processos históricos, na atenção básica incorpora-se uma
responsabilidade pública em torno de questões de saúde-doença consideradas
"menos" complexas, ao que se agregam proposições tecnológicas "coerentes" ou
tidas também como menos complexas. Sob essa direção, privilegiam-se, então,
problemas considerados "simples", apoiados em tecnologias também entendidas
como simples, em torno dos quais se constituem espaços e processos
correspondentes à expressão e acolhimento de certas necessidades e à exclusão
de outras. Isso implica em prévia classificação dos problemas, de tecnologias
aplicáveis à prevenção e cura e, ainda, no recorte acerca do que requer ou não
suporte no denominado primeiro nível de atenção, acompanhando outras tantas
definições - aplicação de recursos financeiros, composição de equipes,
investimento em equipamentos e materiais, capacitação, dentre outras.
Assim, também os restritos investimentos na organização da atenção, no que diz
respeito à composição das equipes, ao tempo profissional disponível à
clientela, aos investimentos na integração do trabalho profissional, contribuem
para a restrição do cuidado. É impossível acolher de forma abrangente a
expressão de necessidades administrando um tempo exíguo de atendimento
(conforme o preconizado para consultas pelo Ministério da Saúde do Brasil) e,
de igual modo, na ausência de um trabalho integrado de equipe.
As relações de trabalho em saúde, historicamente, compõem-se de dadas
dicotomias e hierarquias básicas: entre formuladores de projetos - prestadores
- clientelas; entre serviços de saúde - grupos populacionais; trabalhadores
clientelas; e saberes científicos - saberes populares. Essas dicotomias
implicam, diretamente, em quem são os envolvidos nas definições, em como estas
se processam, para quê, atingindo a quem ou o quê e como.
Desse modo, na perspectiva de organização que ora predomina, a apreensão de
necessidades e a atenção à saúde e, especificamente, à saúde sexual não se
encaminham mediante interações efetivas entre os sujeitos envolvidos
(sociedade, gestores, trabalhadores, clientela). Isso, considerando as
situações de convergências e/ou divergências (atreladas às diferenças e à
vocalização de interesses), e os processos socioculturais e as subjetividades
que se exprimem de forma conflituosa no espaço social da atenção.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para uma aproximação e abordagem integral das necessidades em saúde e saúde
sexual dos sujeitos alvos da atenção, nos limites do setor saúde, é relevante a
adoção e criação de tecnologias mais abertas à complexidade humana e da
sexualidade, e às especificidades do adoecimento.
Nesse sentido, é importante tanto o apoio em um leque mais amplo e crítico de
referências científicas, como o suporte em alternativas tidas como não
científicas (que valorizam trocas intersubjetivas e saberes práticos), para que
os trabalhadores, ao lidarem com necessidades, configurem uma face ética e
humanizada ao atendimento individualizado.
Também é fundamental a crítica ao modo cultural de a sociedade e os serviços de
saúde aproximarem-se e lidarem com os corpos e as necessidades criadas/
recriadas nas relações, somada ao compromisso ético e técnico com a criação de
tecnologias que promovam maior absorção de necessidades, a despeito dos
históricos limites dos serviços de saúde.
A organização dos processos de trabalho (assistencial e gerencial) deve
permitir tanto o reconhecimento quanto o acesso mais amplo e flexível a
respostas às diversas e específicas necessidades que extrapolam os tradicionais
recortes assistenciais, apoiados em integradas ações multiprofissionais locais
e em outros níveis do sistema(2).
Novas alternativas nos vários campos profissionais devem abrir espaço, nos
vários âmbitos de atuação, ao acolhimento de sofrimentos vividos, como
processos relevantes que são, e também ao sentido de interação e construção
corporal que se processa, queira-se ou não, nos vários momentos de atuação. É
preciso considerar que a atenção à saúde em geral (e não somente a dirigida à
sexualidade) realiza-se por meio e em torno dos corpos humanos, participando
dos processos mais gerais de sua construção social(12) e, portanto, da
construção social da própria sexualidade e emancipação humana. Assim, mesmo
quando necessidades amplas em sexualidade não são apresentadas como demandas
peculiares, pela característica do objeto do trabalho em saúde, aquela e toda
sua complexidade inscrevem-se no setor. Negá-las significa obscurecer
ideologicamente as relações de poder que se processam em sua volta, e o
restrito modo como os serviços participam de sua construção/reconstrução.
O uso de referências e práticas provenientes de uma orientação social
mecanicista, em face de suas limitações e insuficiências, deve dar lugar ao
diálogo, à ação humanizadora, à convivência autêntica, que considerem e
respeitem o ser humano em suas singularidades, aspirações, e em suas
necessidades fundamentais(13).
A crítica às presentes formas de inter-relação entre profissionais e clientela
deve consubstanciar novas formas de interação que permitam a expressão e o
acolhimento de necessidades. A abertura à troca, a confiança, a aproximação, o
respeito, a sensibilidade, o vínculo e comprometimento permitem, na expressão
da própria clientela: superar vergonhas e medos; ter segurança, tranqüilidade e
conforto; sentir-se respeitada(o); expressar o que se sente, os problemas tal
como vividos, e mudar atitudes.
No trato com a sexualidade, dado o fato de esta ser socialmente tida como
relativa à esfera do privado, todos esses elementos ganham uma significação
ímpar, como balizadores das intermediações necessárias a expressões nessa
esfera e a ações mais eficazes sobre os sofrimentos vividos ou que se deseja
evitar.
As metodologias de atendimento, quebrando esquemas rígidos de investigação e de
diagnóstico apoiados unicamente em uma abordagem clínica e investigatória dos
problemas, devem dar lugar e espaço ao sujeito, às suas expressões e
manifestações de interesses e vivências, conteúdos a partir dos quais as
relações e ações devem se processar.
Para lidar com a sexualidade em sua abrangência faz-se necessário resgatá-la
como objeto de preparação profissional, extrapolando a perspectiva biomédica
privilegiada. Ou seja, há que se confrontar o despreparo dos profissionais para
esse trabalho, na medida em que este é predominantemente tratado como um campo
de formação técnica e não de construção de vivências, valores e inter-relações
que permitam superar restrições e preconceitos construídos.
O modo político-ético de o profissional colocar-se diante dessas questões pode,
ou não, significar um diferencial para o projeto de integralidade. Do mesmo
modo, pode, ou não, incrementar a "naturalização" histórica dos recortes
assistenciais, sua priorização em detrimento do que o extrapola, reafirmando,
ou não, a histórica banalização do que foge à esfera do orgânico.
É fato que a racionalidade científica, da eficácia e efetividade, entre outros
processos de organização e regulação da assistência, sobretudo no atual
contexto restritivo de gastos, exerce cada vez mais controle sobre o trabalho
do profissional, restringindo sua autonomia no modo de fazê-lo(14). Entretanto,
é preciso considerar que essa inscrição social na ação profissional, entre
outras, não é mecânica, face à possibilidade histórica de recriá-la no próprio
decurso do trabalho, considerando as potencialidades, tensões, reflexões que a
envolvem(15). São essas condições que inserem a possibilidade de participação
mais ativa e criativa dos trabalhadores e podem abrir espaço à superação das
restrições presentes nos serviços, particularmente no que se refere à
apresentação e apreensão de necessidades no campo da sexualidade, favorecendo a
construção de projetos de atenção integral em saúde.