Utilização de instrumento de registro de dados da saúde da criança e família e
a prática do enfermeiro em atenção básica à saúde
PESQUISA
Utilização de instrumento de registro de dados da saúde da criança e família e
a prática do enfermeiro em atenção básica à saúde
Use of a tool for record of child and family health information and nurse's
practice in basic health care
Utilización del instrumento de registro de datos sobre la salud del niño y de
la familia y la práctica del enfermero en la atención básica a la salud
Juliana Coelho PinaI; Débora Faleiros de MelloII; Simone Renata LunardeloIII
IEnfermeira. Pós-Graduanda, nível Mestrado, da Escola de Enfermagem de Ribeirão
Preto da Universidade de São Paulo (EERP/USP)
IIEnfermeira. Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil
e Saúde Pública da EERP/USP
IIIEnfermeira. Mestre em Enfermagem em Saúde Pública. Núcleo de Saúde da
Família IV CSE/FMRP/USP
1. INTRODUÇÃO
O impacto de fatores biológicos, psicossociais (individuais e familiares) e
ambientais no desenvolvimento infantil tem sido objeto de vários estudos,
ampliando a idéia de contexto do desenvolvimento humano(1). Outro fato que
contribuiu para essa ampliação é a evolução do estudo das interações e relações
no contexto familiar que, inicialmente, se focalizava na díade mãe-criança e,
posteriormente, na tríade mãe-pai-criança, sendo que, a partir do final dos
anos 80, iniciou-se a preocupação com os sistemas familiares(2).
É de suma importância considerar as modificações na dinâmica familiar e o
redimensionamento do espaço privado que o nascimento de uma criança traz
consigo, alterando papéis, modificando antigas relações e delineando novas
funções(3).
Para que uma criança cresça de maneira saudável, o contexto no qual ela se
insere deve promover condições de proteção, atenção à saúde, socialização e
educação(4), papéis que são desempenhados pela família, pelos setores de
educação e saúde e pela comunidade.
Na literatura, os temas saúde, doença, famílias e enfermeiras foram estudados
separadamente durante muito tempo. A reciprocidade e a relação entre esses
elementos são relativamente novos e, a partir desse entendimento, é possível
promover um cuidado de saúde individual e familiar(5). Com essa ampliação dos
cuidados de enfermagem junto às famílias torna-se necessário, em saúde da
criança, estruturar a avaliação que envolve a criança, o grupo familiar e o
ambiente, buscando abordar o desenvolvimento infantil.
Este estudo visa descrever a elaboração e utilização de um instrumento de
entrevista e observação da criança e da família em visitas domiciliares e
consultas de enfermagem, com vistas a contribuir para a prática do enfermeiro
em atenção básica à saúde.
2. METODOLOGIA
Esta investigação configura um estudo descritivo sobre a elaboração e a
utilização de um instrumento de registro de dados da saúde da criança e família
para a prática do enfermeiro em visitas domiciliares e consultas de enfermagem.
A pesquisa descritiva objetiva a observação, descrição e documentação de
aspectos de uma situação, sendo delineada para caracterizar um fenômeno(6).
A partir da revisão de literatura, buscando reconhecer os instrumentos de
coleta, registro e avaliação de dados acerca de crianças, observando seus
conteúdos, formas de apresentação, aplicação e tipos de dados que fornecem,
elaboramos o conteúdo e a forma do instrumento que propomos neste estudo. Após
a revisão de literatura e elaboração do instrumento proposto, passamos à etapa
da utilização do mesmo em uma realidade contextualizada, com aprovação em
Comitê de Ética em Pesquisa.
O local selecionado para o estudo foi o Núcleo de Saúde da Família IV (NSF-IV),
vinculado ao Centro de Saúde Escola (CSE-FMRP/USP), na cidade de Ribeirão Preto
SP, o qual foi escolhido por apresentar uma expressiva demanda de crianças.
Os participantes do estudo foram crianças de 0 a 24 meses de idade e suas
famílias, cadastradas e acompanhadas no NSF-IV. As crianças foram selecionadas
segundo mês de nascimento, a contar de 01 de abril de 2002 até 31 de março de
2004. Os responsáveis pelas crianças foram esclarecidos a respeito do caráter
do estudo e seu objetivo, solicitando-se sua participação e consentimento,
garantindo o sigilo dos dados coletados. Receberam também informações a
respeito de sua liberdade em se recusar a participar ou retirar seu
consentimento em qualquer fase da pesquisa, sem penalização alguma. Tendo
ciência do exposto acima, aqueles que aceitaram participar assinaram o termo de
consentimento livre e esclarecido.
Após consentimento, participaram dez famílias, sendo duas crianças para cada
uma das seguintes faixas etárias: 0 a 3 meses, 4 a 8 meses, 9 a 12 meses, 13 a
18 meses e 19 a 24 meses.
As informações para compor o instrumento proposto foram coletadas em
prontuários dos sujeitos observados e entrevistados e durante consultas e
visitas domiciliares, na prática de enfermagem em saúde da família. Sua
aplicação deu-se por meio de entrevista com os membros da família e observação
do ambiente, da criança e das relações intrafamiliares.
Neste estudo, a coleta de dados em prontuários e por meio de entrevistas e
observações, originou um volume de informações descritivas e narrativas. A
análise dos dados deu-se a partir dessas informações, com vistas a descrever
aspectos contemplados ou não nos tópicos do instrumento proposto, segundo sua
pertinência e relevância para a assistência do enfermeiro na atenção básica à
saúde.
Cabe ressaltar que não foram avaliadas e descritas as informações individuais
das crianças e famílias, apenas realizamos uma breve caracterização geral da
população estudada, demonstrando como as informações obtidas contribuem para o
conhecimento da estrutura e dinâmica das famílias por parte da equipe. A
confecção de um instrumento e sua utilização é o foco deste estudo, visando uma
aproximação da realidade das famílias e ampliação da prática do enfermeiro.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
A partir de uma revisão bibliográfica acerca do desenvolvimento infantil no
contexto familiar, realizada anteriormente, as temáticas abordadas com maior
freqüência nas produções foram aquelas relativas à família, ao contexto físico
e social do desenvolvimento - englobando ambiente, interação, apego,
comunicação e cultura - entrelaçando-se ao papel do enfermeiro no
desenvolvimento infantil.
Ainda como fruto dessa revisão, identificamos a utilização de instrumentos no
estudo do desenvolvimento infantil. Tais instrumentos são roteiros para
observação, anamnese e entrevista, escalas, questionários e ainda um
instrumento para apresentar os resultados da avaliação do crescimento e
desenvolvimento. Eles têm a finalidade de analisar aspectos relativos à criança
e às atividades que ela realiza, à relação mãe-filho, à estrutura e dinâmica
familiares, ao ambiente e aspectos sócio-culturais. Alguns estudos utilizam
vários instrumentos para alcançar seus propósitos, especialmente quando buscam
realizar uma análise global do desenvolvimento infantil.
Esses aspectos levantados pela revisão bibliográfica nos apontam para a
necessidade da construção de instrumentos que se destinem não apenas à
avaliação do desenvolvimento infantil, mas à abordagem desse complexo processo,
considerando todos os aspectos envolvidos biológicos, sociais, culturais e
interacionais.
Entre os 29 instrumentos levantados por revisão bibliográfica, 13 (44,8%) foram
localizados na Biblioteca Central do Campus de Ribeirão Preto da Universidade
de São Paulo e em outras bibliotecas brasileiras através do Programa de
Comutação Bibliográfica (Comut), sendo adquiridos. São eles: Denver
Developmental Screening Test (DDST)(7); Home Observation Measure of the
Environment (HOME)(8,9); Ficha de Acompanhamento do Desenvolvimento do
Ministério da Saúde(10); Procedimentos para Observação dos Organizadores da
Psique de Spitz(10); Roteiro para Observação do Ambiente Familiar(10); Anamnese
da Criança(10); Anamnese da Família(10); Roteiro de Entrevistas com as Mães
quanto ao Sentido atribuído ao Desenvolvimento Infantil(10); Roteiro de
Observação da Relação Mãe/Criança(10); Anamnese de Acompanhamento(10);
Instrumento GAPEFAM (Grupo de Assistência, Pesquisa e Educação na Área da Saúde
da Família) para Apresentação de Resultados da Avaliação do Crescimento e
Desenvolvimento da Criança e suas Interações com a Família, Escola e Comunidade
(11); Inventario de Hechos y Eventos Vitales de la Vida Familiar (FILE)(12);
Guia Washington para promover o desenvolvimento de crianças pequenas(13). Deve-
se ressaltar que o Denver Developmental Screening Test (DDST) foi substituído
pela sua nova edição, o Denver II(14), que foi adquirido para esse estudo em
detrimento do DDST.
Com base nesses instrumentos e também na experiência do Grupo Hospitalar
Conceição Porto Alegre, que utiliza um instrumento relevante para o seguimento
de crianças, foram selecionados aspectos, agrupando-os nos seguintes tópicos:
Histórico da Criança; Desenvolvimento Psicomotor; Histórico da Família; Apego e
Interação Mãe-Filho-Família; Ambiente Físico e Social.
No tocante ao trabalho do enfermeiro em atenção primária à saúde, no Brasil, as
ações e/ou intervenções de enfermagem são pouco estruturadas em relação a ter
instrumentos para guiar a assistência. É preciso que haja a compreensão de que
uma linguagem padronizada sobre a prática de enfermagem faz-se necessária, mas
não se configura como um gesso. Ao contrário, visa colocar o fazer do
profissional sob observação de forma ordenada, favorecendo, assim, seu
refinamento, desenvolvimento e transformação constantes(15). Nesse sentido,
associações de classe, conselhos profissionais, instituições de ensino e órgãos
governamentais têm preconizado e incentivado a sistematização da assistência de
enfermagem (SAE). Tal sistematização contribui para a organi-zação dos serviços
de saúde, planejamento de ações e estabelecimento de prioridades, repercutindo
em melhoria da qualidade da atenção à saúde da população.
Considerando-se que o presente estudo explora um instrumento em potencial para
viabilizar a sistematização da assistência de enfermagem em saúde da criança,
na estratégia saúde da família, espera-se que o produto dessa pesquisa seja
utilizável na prática. Para tanto, faz-se necessário considerar as expectativas
e necessidades do serviço de saúde em relação a esse instrumento.
As expectativas que nos foram manifestadas pelos profissionais de saúde do NSF-
IV relacionavam-se com a estruturação do seguimento da criança, ou seja, a
sistematização das consultas de puericultura, entrelaçada ao acompanhamento da
família.
Além disso, após a aplicação do instrumento inicialmente proposto a duas
crianças/famílias, notou-se a sua característica relativamente focada no tempo,
pois sua estrutura não permitia um real seguimento dos sujeitos em estudo, à
medida que não havia espaço para o registro de mudanças ocorridas (excetuando-
se o tópico Desenvolvimento Psicomotor). Fazia-se necessário, sim, um registro
histórico da criança e da família, porém aliado a uma flexibilidade à dinâmica
e evolução características da criança e do grupo familiar.
Diante desse quadro, optou-se por realizar modificações no conteúdo e na forma
do instrumento inicialmente proposto, visando atender à demanda dos
profissionais de saúde daquela unidade e à necessidade de adequação para o
seguimento de crianças e suas famílias, detectada pelas pesquisadoras. Essas
modificações dizem respeito a:
- Agrupamento dos tópicos Histórico da Criança, Histórico da Família, Apego e
Interação Mãe-Filho-Família e Ambiente Físico e Social nas primeiras páginas,
de modo a facilitar o acesso a essas informações para direcionar a intervenção;
- Confecção de tabelas para o histórico da alimentação e vacinação da criança e
para a estrutura familiar, organizando as informações e propiciando melhor
acesso visual;
- Inclusão de um espaço de anotações, para serem registradas mudanças na
estrutura/dinâmica familiares;
- Valorização do Acompanhamento, passando de subtópico do Histórico da Criançaa
um grande tópico, com uma folha para cada época da puericultura (1ª semana de
vida visita domiciliar - , 15 dias, 1º mês, 2º mês, 4º mês, 6º mês, 9º mês, 12º
mês, 18º mês e 2 anos), compondo um roteiro para a realização das consultas de
puericultura com anamnese, exame físico, orientações a serem dadas e elementos
aos quais o profissional deve dirigir sua atenção. O Desenvolvimento
Psicomotordeixa de ser um tópico e é incorporado dentro do Acompanhamento.
Feitas essas modificações, prosseguiu-se com a aplicação do instrumento final
(APÊNDICE 1), que se demonstrou eficaz em reunir as informações desejadas.
Nesse ponto, pode-se questionar se o instrumento que propomos destina-se apenas
à coleta de dados ou realmente consiste em um instrumento de abordagem mais
ampla do desenvolvimento infantil no contexto familiar. Quanto a isso,
ressaltamos que a obtenção de dados não se dá um em único momento, mas é um
processo que requer vários encontros, dentro da dinâmica do Programa de Saúde
da Família (visitas domiciliares, consultas, acompanhamentos, etc.),
pressupondo a criação de vínculo e conhecimento entre os profissionais e a
família. Além disso, os próprios dados coletados nos traduzem o modo de vida de
cada família, como ele poderia influenciar o desenvolvimento de cada criança e
nos conduzem a uma reflexão de como agir.
Nesse sentido, o levantamento de dados que realizamos nos indicam que, em
geral, a população do estudo mora em microárea de risco (favela), com condições
de saneamento básico precárias, sem espaço potencial para as crianças nos
cômodos e recebem ajuda do governo. Os pais possuem baixa escolaridade (1º grau
incompleto), não são ligados por laços oficiais, sendo comum a mãe ter filhos
de pais diferentes e ser solteira. Na divisão das responsabilidades, prevalece
o cuidado da casa e dos filhos a cargo da mulher e o sustento da família a
cargo do homem, embora a administração do dinheiro seja compartilhada por
ambos. Outra particularidade é a tendência dos filhos mais velhos (porém ainda
crianças) serem responsáveis pelo cuidado dos mais novos, enquanto os pais
trabalham, pois a creche do bairro não absorve toda a demanda.
Apesar de se tratar de uma população pobre, na qual o aleitamento materno
traria benefícios não somente à saúde das crianças mas também financeiros, pela
economia de alimentos, o que se observa é a introdução precoce de outros
líquidos e alimentos, especialmente quando a avó mora com a família e tende a
assumir o lugar da mãe.
Mesmo em meio a situações socioeconômicas precárias, a maioria das crianças
estudadas encontra-se dentro do esperado para o desenvolvimento
neuropsicomotor, sugerindo que podem haver fatores protetores e de
enfrentamento eficazes no grupo familiar e na comunidade.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nesse estudo descritivo, julgamos que o instrumento final tem o
potencial de propiciar uma base segura para o seguimento da criança e sua
família, pois nele o enfermeiro encontra, de forma ordenada, informações sobre
antecedentes pré-natais, parto, histórico alimentar e vacinal, estrutura e
dinâmica familiares, ambiente físico, relações intrafamiliares e sociais e
acompanhamento da criança até o 2º ano de vida. Acreditamos que, desse modo, o
profissional capacitado poderá interligar as informações disponíveis, guiando a
assistência prestada a nível individual e familiar.
Consideramos, no entanto, que a viabilidade dessa situação depende de análises
mais profundas sobre o produto final desse estudo, aplicando-o em amostras
maiores, em um seguimento contínuo desde o nascimento, a fim de verificar sua
capacidade de armazenar e disponibilizar as informações necessárias ao
acompanhamento de enfermagem às crianças menores de dois anos e suas famílias,
na atenção básica à saúde.