Trajetória e tendências dos cursos de enfermagem no Brasil
AUTORES CONVIDADOS
Trajetória e tendências dos cursos de enfermagem no Brasil
Trajectory and trends of Brazilian nursing diploma courses
Trayectoria y tendencias de los cursos de graduación en enfermería en Brasil
Elizabeth TeixeiraI; Eucléia Gomes ValeII; Josicelia Dumêt FernandesIII; Mara
Regina Lemes De SordiIV
IDoutora. Professora do Curso de Enfermagem da Universidade do Estado do Pará,
Belém, PA
IIDoutoranda em Enfermagem na UFC. Professora da Faculdade Católica Rainha do
Sertão, Fortaleza, CE
IIIDoutora. Professora Titular da Escola de Enfermagem da Universidade Federal
da Bahia, Salvador, BA
IVDoutora. Professora da Faculdade de Enfermagem da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas, Campinas, SP
INTRODUÇÃO
Conhecer a realidade da educação em enfermagem, sua trajetória, tendências e as
contradições que a perpassam é decisivo. Mas exige apropriação qualificada,
matizada pela reflexão das conseqüências éticas destas tendências.
Nesse entendimento, foram tomadas como base referencial, as Diretrizes
Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem, documentos emanados
do Instituto Nacional de Pesquisas (INEP/MEC), Censo da Educação Superior e
ENADE.
Os dados do Enade se constituem em um dos indicadores de qualidade dos cursos
de graduação. Os dados do Censo Escolar possibilitam compreender a situação dos
cursos no país, com seus desequilíbrios regionais, permitindo levar em conta
estes cenários na interpretação dos resultados dos exames. Os dados do
questionário do Enade, respondido pelos ingressantes e concluintes dos cursos,
tentam capturar seu perfil sócio-cultural-econômico para favorecer um
tratamento adequado dos cursos a estas variáveis.
Os indicadores adotados para fins de análise foram: cursos, candidatos, vagas,
ingressantes e concluintes, segundo regiões e categorias administrativas das
IES fornecidos pelo Censo da Educação Superior e Relatório do ENADE 2004, tendo
como abrangência, o período de 1991 a 2004.
TRAJETÓRIA DA EDUCAÇÃO EM ENFERMAGEM NO BRASIL
A primeira tentativa de sistematização do ensino de enfermagem no Brasil
ocorreu em 1890, quando da criação, na cidade do Rio de Janeiro, da Escola
Profissional de Enfermeiros, no Hospício Nacional de Alienados, com a
finalidade de preparar enfermeiros para os hospícios e hospitais civis e
militares(1,2).
Essa tentativa emergiu de um processo político que, ultrapassando as fronteiras
do Hospício Nacional de Alienados, pôs em confronto o poder da Igreja, o poder
do Estado e a classe médica(2,3).
Por volta de 1901, foi criado, sob a orientação de enfermeiras inglesas, um
outro curso, no então Hospital Evangélico (hoje Hospital Samaritano), em São
Paulo. Esse curso foi criado com o objetivo de preparar pessoal para o referido
hospital que se destinava ao atendimento de estrangeiros residentes no Brasil.
Com as repercussões da Primeira Guerra Mundial, a Cruz Vermelha Brasileira deu
início, por volta de 1916, na cidade do Rio de Janeiro, a um curso de
enfermagem (Escola Prática de Enfermeiras da Cruz Vermelha), com a finalidade
de preparar voluntários para as emergências de guerra(2,3).
Esses cursos foram criados para atender às necessidades emergenciais de cada
momento histórico, sem, contudo, atenderem aos padrões da enfermagem moderna,
semelhantes aos que, em 1860, já havia sido estabelecido em Londres, por
Florence Nightingale.
Durante o predomínio do modelo econômico agrário-exportador, não havia, por
parte do Estado, uma política explícita que indicasse uma preocupação com a
saúde da população e, conseqüentemente, com uma mão de obra de enfermagem
qualificada(2,3).
A problemática da Saúde Pública, configurada na crise econômica da década de
20, demandou novas e amplas respostas do Estado que criou o Departamento
Nacional de Saúde Pública e, posteriormente, em 1923, a Escola de Enfermeiras
desse mesmo Departamento. Essa escola, que mais tarde passou a chamar-se Escola
de Enfermeiras D. Ana Néri, foi criada dentro dos moldes nightingalianos, daí
ser considerada a primeira escola de enfermagem moderna do país.
A emergência do ensino de enfermagem moderna em nosso país coincide, pois, com
o momento em que surgem os primeiros traços de uma política de saúde por parte
do Estado, ou seja, com o momento em que a questão da saúde ganha uma nova
dimensão, passando a ser uma das atribuições do Estado(2,3).
O processo de reorganização econômico-política, a partir da década de 30,
evidencia a necessidade de uma força de trabalho qualificada e com saúde. No
bojo desse processo, começou a evolução dos cursos de enfermagem moderna no
país. Essa evolução, contudo, só é acionada na década de 40 com a aceleração do
processo de substituição das importações e fortalecimento do processo de
industrialização.
Nesse contexto, e atendendo a lógica de produção de serviços de saúde, o
Estado, através da Lei nº 775 de 06/08/1949, propõe a ampliação do número de
escolas, tornando obrigatória a existência do ensino de enfermagem em todo
centro universitário ou sede de faculdades de medicina, além de definir um
ensino voltado para a área hospitalar, centrado no modelo clínico e com
aderência ao mercado de trabalho à época(4).
O ensino de enfermagem, destarte, apesar de ter sido institucionalizado em
1923, sob a influência do sanitarismo, só a partir do desenvolvimento
industrial e modernização dos hospitais é que passa a ser consolidado. A
institucionalização do ensino de enfermagem no Brasil, portanto, está contida
num contexto que ganha suas amplas dimensões quando remetida aos problemas de
organização e funcionamento da sociedade e do Estado.
Em 1968, através da Reforma Universitária, apregoa-se a ampliação do número de
vagas e a modernização do ensino superior, além da conseqüente necessidade de
revisão dos currículos mínimos dos cursos.
Como integrante do aparelho universitário, o ensino de enfermagem seguiu as
determinações da Reforma Universitária, que, em síntese, estavam dirigidas para
a formação de maior número de profissionais e na reestruturação de um novo
currículo mínimo, formalizado pelo Parecer nº 163/72 e Resolução 4/72 do,
então, Conselho Federal de Educação. Um currículo voltado para o modelo
biologicista, individualista e hospitalocêntrico, marcado por uma visão
tecnicista da saúde, dificultando a compreensão dos determinantes sociais do
processo saúde/doença.
Com o processo de redemocratização do país, a partir da década de 80, dois
marcos merecem ser destacados: a VIII Conferência Nacional de Saúde e a
promulgação da Constituição em 1988, pois se constituíram expressão de um
processo de luta de diferentes atores da sociedade por ampliação de direitos
sociais.
A Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), como um dos atores engajados
nesse processo de luta, desencadeia um amplo debate por meio dos Seminários
Nacionais e Regionais sobre "Perfil e Competência de Enfermeiros" e "Proposta
de Currículos Mínimos de Enfermagem", mobilizando docentes, discentes e
profissionais dos serviços, objetivando a construção coletiva de um projeto
educacional para a enfermagem brasileira. A troca de experiências e a riqueza
das discussões geradas nesse movimento subsidiaram o Parecer 314/94 do, então,
Conselho Federal de Educação, homologado pela Portaria 1.721 do Ministério da
Educação, em 15/12/1994.
Ademais, a ABEn, mantendo-se vigilante ao desenvolvimento do ensino de
enfermagem no país, cria, a partir de 1994, os Seminários Nacionais de
Diretrizes para a Educação em Enfermagem (SENADEns) que trouxeram contribuições
significativas para a construção das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso
de Graduação em Enfermagem, além de se constituírem em espaços para
aprofundamento da construção coletiva das políticas e propostas que dizem
respeito à educação em enfermagem.
Em 1996 é aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei
9.394 de 20/12/1996(5), que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, abrindo espaços para a flexibilização dos currículos de graduação,
para a expansão de cursos e vagas na educação superior, além de direcionar a
construção de Diretrizes Curriculares para cada Curso de Graduação.
A partir da LDB, concretizou-se, em 7/8/2001, o Parecer 1133 do CNE/CES(6), que
veio reforçar a necessidade da articulação entre Educação Superior e Saúde,
objetivando a formação geral e específica dos egressos/profissionais, com
ênfase na promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde. Após esse
Parecer, foi aprovada a Resolução CNE/CES Nº 03 de 7/11/2001(7), que definiu as
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Enfermagem
(DCENF).
As DCENF tiveram sua materialidade concretizada, a partir de propostas que
emergiram da mobilização das (os) enfermeiras (os), por meio da sua associação
de classe, de entidades educacionais e de setores da sociedade civil
interessados em defender as mudanças da formação na área da saúde. Elas
expressam os conceitos originários dos movimentos por mudanças na educação em
enfermagem, explicitando a necessidade do compromisso com princípios da Reforma
Sanitária Brasileira e do Sistema Único de Saúde (SUS). Elas devem ser
apreendidas, destarte, como produto de uma construção social e histórica,
trazendo, no seu conteúdo, os posicionamentos da enfermagem brasileira como
ponto de partida para as mudanças necessárias à formação da (o) enfermeira (o)
e como referência para que as escolas/cursos, no uso de sua autonomia,
construam, coletivamente, seus Projetos Pedagógicos, respeitando a
especificidade regional, local e institucional.
A implantação/implementação das DCENF implica um grande desafio que é o de
formar enfermeiras (os) com competência técnica e política, como sujeitos
sociais dotados de conhecimento, de raciocínio, de percepção e sensibilidade
para as questões da vida e da sociedade, capacitando-as (os) para intervirem em
contextos de incertezas e complexidade(8).
TENDÊNCIAS DOS CURSOS DE GRADUAÇÃO EM ENFERMAGEM NO BRASIL
Até 1947 foram criados, no Brasil, 16 cursos de enfermagem. No período de 1947
a 1964 foram criados mais 23 cursos, ou seja, um crescimento de 43,75% em 17
anos.
Esse crescimento foi mais acentuado a partir do final da década de 1960, quando
se dá a expansão do ensino de enfermagem no país(3). Assim é que se em 1964
existiam 39 cursos, em 1991 passaram a existir 106 cursos, ou seja, uma
expansão de 171%.
De acordo com os dados disponibilizados pelo MEC/INEP/DEAS, em 1991 existiam
106 cursos de graduação em enfermagem. Em 2004 esse número passou para 415, o
que significa um incremento de 291,5%. Essa expansão foi mais forte a partir da
LDB, pois de 1991 até 1996 foram criados apenas 5 cursos, ou seja, um
incremento de 4,71%, enquanto que de 1996 a 2004, foram criados 304 cursos,
indicando uma expansão de 286,79%.
Essa expansão, contudo, não se deu de maneira uniforme. Ela se deu,
predominantemente, na região sudeste, passando de 50 cursos em 1991 para 220,
em 2004, ou seja, um crescimento de 340%, seguida da região sul que passou de
21 cursos, em 1991, para 84, em 2004, o que significa uma expansão de 300%.
Devido ao aumento do número de cursos na região centro-oeste, de 5, em 1991,
para 29, em 2004, essa região apresentou maior participação proporcional de
crescimento de cursos.
Essas desigualdades regionais refletem o desenvolvimento industrial das regiões
sudeste e sul, que, por sua vez, favorecem uma demanda por serviços
qualificados.
Vale destacar, ainda, que a desigualdade na oferta de cursos se faz presente
não apenas entre as regiões, mas também no interior das mesmas, ou seja, dos
220 cursos existentes na região sudeste, 109 (49,54%) estão no estado de São
Paulo. Por outro lado, observa-se uma enorme concentração de investimentos
públicos onde a capacidade instalada de recursos humanos qualificados e de
infra-estrutura pré-existentes já é consideravelmente elevada. Onde existe o
maior PIB ou maior número de cursos, o valor dos investimentos absolutos tem
sido proporcionalmente maior(9).
A figura_1 revela que o aumento de cursos em todas as regiões do país melhorou
a relação oferta de cursos por 1.000.000 habitantes, com destaque para as
regiões centro-oeste, sul e sudeste. Esse dado reclama por uma análise
qualitativa que leve em conta alguns fatores como: necessidades de saúde da
população, relação enfermeiro por habitante, quantitativo atingido e
atendimento das necessidades de sustentação do modelo de atenção à saúde
vigente no país, respeitando os parâmetros de dimensionamento de pessoal de
enfermagem e as prerrogativas da lei do exercício profissional, produzindo
impacto nos indicadores de saúde. Destaca-se que não basta ampliar os números
de cursos/vagas sem o simultâneo investimento na expansão e adequação dos
serviços, com vistas a inserção do profissional nesse mercado de trabalho. O
crescimento do número de cursos/vagas merece um efetivo sistema de regulação
por parte do Estado, no que se refere as condições de ensino, ou seja, a infra-
estrutura, a política de recursos humanos e a organização didático-pedagógica.,
tanto na rede pública como na privada.
![](/img/revistas/reben/v59n4/a02f01.jpg)
Além da desigualdade regional na oferta de cursos, observa-se, também, um
desequilíbrio na distribuição dos cursos por categoria administrativa. Conforme
ilustrado no Figura_2, o crescimento dos cursos da rede pública foi menor do
que os da rede privada. Os cursos da rede pública passaram de 61 em 1991, para
93 em 2004, representando um incremento na ordem de 52,45%, enquanto que nos
cursos da rede privada esse incremento foi de 615,55%, ou seja, passaram de 45
para 322.
[/img/revistas/reben/v59n4/a02f03.jpg]
Esse desequilíbrio entre os cursos da rede pública e rede privada expressa a
premissa mercadológica da educação superior que valorizou o mercado econômico
como elemento fundamental na criação de novos cursos e instituições.
Vale salientar que esse crescimento da rede privada tornou-se mais acentuado, a
partir de 1997. Se em 1996 existiam 45 cursos da rede privada, em 2004 esse
número passou para 322, ou seja, um incremento de 837,77%. Esse incremento
encontra respaldo na autonomia dada às instituições de ensino superior e na
flexibilização dos currículos em decorrência da LDB, a partir de 1996.
A oferta de vagas oferecidas nos cursos manteve a mesma dinâmica da
distribuição de cursos. Em 1991 existiam 7.460 vagas, passando para 70.400 em
2004, revelando um incremento de 843,7%. Esse , por sua vez, se deu
principalmente, a partir da aprovação da LDB, ou seja, se no período de 1991 a
1996, o aumento foi de 11,03%, no período de 1996 a 2004 o incremento foi de
749,93%.
Mais uma vez, a região responsável por essa ampliação foi a região sudeste que
passou de 3.785 vagas, em 1991, para 47.301 em 2004, revelando uma expansão de
1.149,7%, conforme ilustrado na Tabela_2.
O maior crescimento da oferta de vagas na região sudeste se deu no Estado São
Paulo que passou de 2.120 vagas em 1991 para 26.907 em 2004, revelando a
desigualdade inter e intra-regional.
Seguindo essa mesma dinâmica, observa-se no Figura_3 que a oferta de vagas por
categoria administrativa passou de 3.835, em 1991 para 5.597, em 2004, na rede
pública, tendo um incremento de 45,99%. Na rede privada, esse crescimento foi
de 3.625, em 1991 para 64.803, em 2004, o que revela um incremento de
1.687,66%.
[/img/revistas/reben/v59n4/a02f03.jpg]
A Tabela_3 evidencia a mesma dinâmica dos desequilíbrios regionais, apontando a
região sudeste como a de maior número de candidatos a cursos de graduação em
enfermagem, no período estudado.
O número de candidatos para cursos de graduação, também, além de ter tido maior
crescimento na região sudeste, essa expansão foi maior na rede privada, que
apresentou um incremento de 1.342,47%, conforme ilustrado no Figura_4.
[/img/revistas/reben/v59n4/a02f04.jpg]
Por meio dos Figuras_5 e 6, pode-se observar que, se por um lado o acesso aos
cursos de enfermagem apresentou importante crescimento, em termos dos
ingressantes, concentrado nitidamente na iniciativa privada (684,9%), o número
de concluintes, no período estudado revela uma queda nos indicadores. Cabe
interrogar as razões de tal fenômeno e seu significado para a definição de
políticas públicas, visto que a perda numérica é expressiva, também, na rede
pública. Se no sistema privado poderia ser atribuída alguma responsabilidade à
variável socioeconômica, o que o dado poderia representar nas escolas públicas?
O que se pode afirmar é que essa realidade indica que a capacidade instalada
está sub-aproveitada, podendo repercutir negativamente no plano social, ou
seja, o número de vagas oferecido não é plenamente utilizado. Esse resultado
nos faz pensar que o investimento no âmbito da graduação em enfermagem pode não
estar repercutindo, necessariamente, em retorno proporcional às necessidades de
saúde da população.
[/img/revistas/reben/v59n4/a02f05.jpg]
[/img/revistas/reben/v59n4/a02f06.jpg]
Por meio dos Figuras_5 e 6, pode-se observar que, se por um lado o acesso aos
cursos de enfermagem apresentou importante crescimento, em termos dos
ingressantes, concentrado nitidamente na iniciativa privada (684,9%), o número
de concluintes, no período estudado revela uma queda nos indicadores. Cabe
interrogar as razões de tal fenômeno e seu significado para a definição de
políticas públicas, visto que a perda numérica é expressiva, também, na rede
pública. Se no sistema privado poderia ser atribuída alguma responsabilidade à
variável socioeconômica, o que o dado poderia representar nas escolas públicas?
O que se pode afirmar é que essa realidade indica que a capacidade instalada
está sub-aproveitada, podendo repercutir negativamente no plano social, ou
seja, o número de vagas oferecido não é plenamente utilizado. Esse resultado
nos faz pensar que o investimento no âmbito da graduação em enfermagem pode não
estar repercutindo, necessariamente, em retorno proporcional às necessidades de
saúde da população.
PERFIL DO ESTUDANTE DE ENFERMAGEM: ENADE-2004
O Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE), se insere como um dos
instrumentos de avaliação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior
(SINAES), e tem como objetivos: aferir o desempenho dos estudantes em relação
aos conteúdos programáticos previstos nas diretrizes curriculares, suas
habilidades para ajustamento às exigências decorrentes da evolução do
conhecimento e suas competências para compreender temas exteriores ao âmbito
específico de sua profissão.
O ENADE-2004 envolveu 352 cursos de enfermagem, dos quais 52,8% encontravam-se
na Região Sudeste, 77,8% na rede privada, 54,8% em universidades e 25% dos
cursos, localizados no Estado de SP.
Participaram do exame 46.859 estudantes (76,1% ingressantes e 23,9%
concluintes). A distribuição dos mesmos seguiu o mesmo perfil de distribuição
dos cursos: 62,7% da região sudeste, 85,5% da rede privada, 55,6% de
universidades, 35% do estado de São Paulo. Todos os estudantes receberam um
questionário-pesquisa com 106 questões sobre o perfil sócio-familiar e
acadêmico dos estudantes e sobre as condições dos cursos de graduação em que
estudam. Deste universo, responderam ao questionário-pesquisa uma amostra de
40,7% de ingressantes e 57% de concluintes.
Neste estudo foram escolhidos 18 indicadores do perfil sócio-familiar e
acadêmico dos estudantes, que serão apresentados de acordo com as respostas dos
ingressantes e concluintes, respectivamente. Considerando os dados apresentados
nesses indicadores destacados e os maiores resultados, pode-se descrever o
perfil do estudante de enfermagem que respondeu ao questionário-pesquisa do
ENADE 2004 (ingressante e concluinte).
As (os) ingressantes são, predominantemente do sexo feminino, com até 24 anos
de idade, solteiras (os), apresentando-se como de cor branca, com renda entre 3
e 10 salários mínimos, trabalhadoras (es), sem nenhum financiamento para
custeio das despesas, pais com escolaridade da 1ª a 4ª série, mães com ensino
médio, cursaram ensino médio todo em escola pública, conhecimentos praticamente
nulos da língua inglesa, usam a TV para se atualizar, freqüentam razoavelmente
a biblioteca da IES, estudam de 1 a 2 horas por semana, não desenvolvem
atividades além das obrigatórias, usam, às vezes, microcomputador, acessam a
internet e usam microcomputador em casa.
O perfil das (os) estudantes de enfermagem concluintes pouco se diferencia das
(os) ingressantes. E isso merece ser problematizado especialmente em um estudo
de tendências da educação. Os dados das (os) concluintes sinalizam que estes,
de modo ainda marcante (51%), têm dupla jornada e uma importante porcentagem
(31%) não desenvolve nenhuma atividade além das obrigatórias previstas na
dinâmica curricular. Vejamos a seguir as categorias que compõem o perfil das
(os) estudantes.
No que se refere à questão do gênero, o perfil das (os) estudantes do ENADE
2004 reforça duas tendências já constatadas na literatura. A primeira diz
respeito à relação historicamente construída entre a mulher e o cuidar. A
segunda refere-se à relação socialmente construída entre a mulher e a opção
pelos cursos de enfermagem.
A permanente predominância do sexo feminino na profissão, além de indicar a
presença da mulher no mercado de trabalho, sinaliza a possibilidade de acesso
ao ensino superior em profissões consideradas como de menor status social. Cabe
ressaltar que essa crescente inserção no mercado de trabalho não tem superado
as conseqüências da divisão sexual do trabalho, que ainda trata as mulheres de
forma discriminada seja no âmbito dos salários, das tarefas e até mesmo das
possibilidades de ascensão social(10). Vale destacar um crescente interesse por
estudantes do sexo masculino pelo curso, já visível nos indicadores de
ingressantes (16%) e concluintes (13%).
Constata-se que a (o) estudante ingressante, na sua maioria, já está inserida
(o) no mundo do trabalho quando começa a estudar enfermagem, e isso pouco se
modifica entre as (os) concluintes. Assim, essas(es) estudantes passam a
conviver ao longo do curso com uma dupla jornada: trabalhar e estudar, pois ser
estudante é ter um ofício, ou seja, ter uma ocupação. Ser aluna(o) é ter
tarefas e horários a cumprir, é ser supervisionada(o), orientada(o) e avaliada
(o) pelos mais experientes, é prestar contas de deveres e também direitos.
Se considerarmos o agravamento das condições de vida da população brasileira,
seu empobrecimento, e dado que a democratização de acesso ao ensino superior se
deu às custas do sistema privado de ensino, será possível supor que para se
manterem nos cursos, os estudantes necessitarão, de forma cada vez mais
crescente, trabalhar para se sustentar no seu processo de formação. E esta
parece ser uma tendência na profissão, qual seja, a de ter como sua clientela
preferencial, estudantes que trabalham.
Outra tendência preocupante é a questão da base cultural do alunado. Destaca-se
uma reduzida presença da educação superior no nível de escolaridade de pais e
mães das (os) estudantes de enfermagem, o que pode interferir na amplitude da
formação cultural e humanística das (os) estudantes. Observa-se que 54% e 46%
das (os) ingressantes e concluintes, respectivamente, têm sua trajetória
escolar cursada exclusivamente no espaço da escola pública. Dadas às
dificuldades que hoje caracterizam a escola pública, e contrastada com os
indicadores socioeconômicos, deve-se considerar preocupante a base cultural das
(os) estudantes de enfermagem. Fato que deve merecer atenção dos cursos e seus
projetos pedagógicos, para tentar agregar valor a estudantes possivelmente
debilitados culturalmente. Tarefa essa limitada na medida em que as
circunstâncias de organização de tempo e vida das (os) estudantes sofrem
influências da dupla jornada de trabalho.
O nível de conhecimento do idioma inglês é bastante sofrível tanto na entrada
como na saída do curso, ou seja, 54% e 48% praticamente nulo, respectivamente.
Obviamente torna-se inevitável relacionar o dado com o nível socioeconômico da
família que pertencem bem como ao nível de escolaridade de seus pais.
Fica evidenciado que 65% elegem a TV como seu meio de informação preferencial
e, surpreendentemente, este índice cresce, nas (os) alunas (os) concluintes,
para 68% quando, idealmente, se esperaria um amadurecimento que as (os) levasse
a priorizar outros recursos de base mais crítica.
Qual é a diferença afinal entre um ofício qualquer e o ofício de estudante?
Parece que a diferença está no fato de o ofício de estudante ter a sua razão de
ser no favorecimento e/ou na consolidação da aprendizagem. É um ofício, por
excelência, do aprender um saber e um saber fazer, do aprender conteúdos e
atitudes, conhecimentos e habilidades, matérias e hábitos de estudo. Mas como
conviver e sobreviver diante de uma dupla jornada, ou seja, ser estudante e
trabalhador?
É necessário considerar as (os) estudantes como sujeitos que tanto resistem e
transgridem, como também se submetem e se adaptam às normas e rotinas da
organização escolar. É necessário considerar que essas (es) estudantes
constroem suas competências nesse contexto e movimento dialético.
Isto posto, como tendência , surge o desafio para os cursos de enfermagem, o de
aceitarem o perfil de entrada, como dado de realidade sobre o qual não tem
governabilidade e revisitarem suas formas de organização do trabalho
pedagógico, tentando extrair alguma positividade da experiência de trabalho que
as (os) estudantes trazem e do capital cultural que possuem.
A utilização da biblioteca, sinalizada como razoável pelas (os) estudantes, não
supre o número ínfimo de horas que dedicam ao estudo que se mantém, tanto em
ingressantes como concluintes, em torno de 1 a 2 horas semanais (40 % e 33%).
As defasagens decorrentes desses hábitos de estudo poderiam ser atenuadas pelo
acesso aos recursos oferecidos pela tecnologia da informação. As (os)
estudantes, no entanto, avaliam o uso do computador como ocasional, exceto no
que se refere ao acesso a internet. Apesar do nível sócio-econômico em que se
distribuem as (os) estudantes, concentrados em 1 a 3 salários mínimos, mais de
50% dos respondentes referem o uso de microcomputador em casa.
Observa-se um aumento da participação das (os) estudantes em atividades como
pesquisa e extensão ao longo do curso. É preocupante, no entanto, o acentuado
número de estudantes que referem nenhuma inserção nesse tipo de atividade.
Várias leituras podem ser feitas: uma primeira em relação ao interesse da (o)
própria (o) estudante; outra pela forma de organização dos tempos e espaços
curriculares; uma outra diz respeito aos impedimentos oriundos da dupla jornada
já destacada e por último a eventual escassez de investimento das IES na oferta
dessas oportunidades de formação diferenciada, limitando alguns estudantes a
uma formação reduzida à sala de aula.
As (os) estudantes ingressantes têm sido identificadas (os) com três tipos de
imaturidade11: cultural, ligada à falta de hábito de leitura; psicológica,
ligada à não definição clara de objetivos e aspirações nem a certeza de que o
curso escolhido atenderá às suas expectativas; lógica, ligada à falta de
seqüência de raciocínio, quando manifesta por escrito o que pensa. Nesse
sentido, espera-se que a trajetória no/do curso agregue esses e outros valores
ao ofício da (o) estudante, o que com os indicadores aqui analisados não nos
foi possível evidenciar, o que gera preocupação.
PERSPECTIVAS E DESAFIOS
A reflexão sobre a trajetória dos cursos de enfermagem no Brasil, triangulada
com os dados do censo escolar e o material obtido pelo Enade, estimula os
cursos a se perceberem nesse processo e a reverem suas decisões pedagógicas à
luz do novo paradigma da formação do profissional de saúde, necessário para o
país, devidamente informados sobre o perfil da clientela que busca na
enfermagem sua realização/certificação e a potência que seus processos de
ensino devem ter para agregar-lhes valor em seu percurso formativo.
Os dados apresentados sobre a trajetória dos cursos de graduação em enfermagem,
ainda que de maneira abreviada, evidenciam uma forte e desordenada expansão do
número de cursos e de vagas por eles oferecidas, no período de 1991 a 2004 e,
particularmente a partir de 1996, demonstrando assimetrias entre as diferentes
regiões, como um desafio a ser enfrentado pela categoria.
Essa realidade permite refletir acerca dos desequilíbrios regionais, que
parecem um problema a ser atacado de forma integrada e compartilhada entre o
poder central, os estados, as IES e os serviços de saúde, bem como apontam para
a necessidade da formulação de estratégias específicas visando a criação de
parâmetros norteadores para a expansão do sistema, caso contrário, nos próximos
anos, se observará a continuidade do crescimento da graduação com a permanência
das assimetrias regionais com concentração nos grandes pólos econômicos.
Em qualquer que seja a região, é necessário consolidar a graduação para
garantir sua qualidade e assegurar seu papel como instrumento de
desenvolvimento científico, tecnológico, social, econômico e cultural. É
fundamental, entretanto, a diminuição das desigualdades regionais, objetivando
um desenvolvimento sustentável, o que pressupõe, necessariamente, menos
desigualdades sociais.
Vale salientar, contudo, a necessidade de se buscar a qualidade na oferta
desses cursos/vagas. É fundamental que se atente para o que se considera como
parâmetros de qualidade nos cursos de enfermagem, de modo que a crescente e
desordenada expansão quantitativa do número de cursos/vagas oferecidas no país,
possa ser extensiva ao campo qualitativo, traduzido pela inserção de
enfermeiros conscientes de sua função social e instrumentalizados para intervir
propositivamente nos modelos de atenção à saúde.
A ampliação desordenada de vagas para os cursos de graduação em enfermagem sem
o devido monitoramento das políticas de contratação dos profissionais, bem como
a ausência de acompanhamento das ações exercidas tende a favorecer o
desrespeito à lei do exercício profissional no que se refere às ações
privativas da(o) enfermeira(o) que continuam, em algumas regiões, sendo
executadas por profissionais de nível médio. Interfere também na sustentação do
modelo de atenção à saúde, preconizado pelo SUS, que prevê a interiorização das
ações de saúde. Ressalta-se, no entanto, que a expansão do número de vagas
ainda é insuficiente para atender as múltiplas e diversas demandas de atenção à
saúde da população nos níveis locais, regionais e nacionais.
A construção da qualidade resume-se em três compromissos: fazer bem o que se
está fazendo mal,o que significa introduzir sistemas de diagnóstico do
funcionamento dos diversos setores para identificar seus pontos fortes e
fracos; fazer melhor o que se está fazendo bem, o que implica um plano
estratégico de qualificação e desenvolvimento institucional capaz de ir
consolidando e sustentando as realizações obtidas efazer o que não se está
fazendo e fazê-lo bem, isto é, incorporar dispositivos que facilitem e tornem
possíveis inovações e processos de crescimento sistemáticos12.
Na implementação da qualidade no processo de formação da(o) enfermeira(o),
parece ser consensual a necessidade do realinhamento das(os) egressas(os) dos
cursos, em conformidade com as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de
Graduação em Enfermagem.
Da análise dos dados relativos ao perfil do alunado dos cursos de graduação,
reconhece-se que as (os) egressas (os) desses cursos necessitam de competências
mais amplas para agir em prol da sustentação de um modelo de atenção à saúde
com qualidade e assentado na integralidade, universalidade, intersetorialidade
e controle social.
Os dados aqui apresentados reclamam por apropriação e interpretação pela
comunidade acadêmica, podendo subsidiar reflexões dos sujeitos envolvidos no
processo de formação das enfermeiras (os), bem como suas decisões internas na
construção dos Projetos Pedagógicos (PP) dos cursos. Poderão, ainda, auxiliar
na compreensão de que qualidade não é um conceito abstrato e depende também da
existência de condições objetivas que determinam as relações entre professor/
aluno/apropriação de competências e habilidades.
Ficou evidenciado que entre a entrada e a saída das (os) estudantes do sistema
educacional há um processo que ocorre e é nesse espaço que a proposta
institucional pode e deve fazer diferença. E isto implica contrastar os dados
de saída com o processo de construção de qualidade posto em movimento a partir
de um claro diagnóstico das condições de entrada das (os) estudantes. Isso deve
ser objeto de reflexão e pronto posicionamento do coletivo dos cursos frente
aos dados que são oferecidos e que não podem permanecer latentes nos
relatórios.
Da análise realizada, considera-se que:
· Uma boa formação em enfermagem não se reduz à competência técnica, meramente
instrumental, mas deve ocupar-se em desenvolver e problematizar questões de
amplo significado social. Isso é tarefa que deve nortear os PP dos cursos,
independentemente de sua localização geográfica ou natureza jurídica. A
concentração dos cursos na região sudeste, onde se concentram serviços de saúde
mais especializados, não deve enviesar o eixo da formação.
· A presença marcante de alunas (os) que trabalham durante o curso deve ser
explorada na positividade que contém, posto que podem enriquecer as reflexões,
trazendo um olhar peculiar do processo de trabalho em que já estão inseridas
(os). Paradoxalmente, estas (es) estudantes podem apresentar dificuldades
concretas de acompanhamento do trabalho pedagógico, sobretudo se este estiver
assentado numa pedagogia exclusivamente expositiva e enciclopédica. Sugere-se a
incorporação de metodologias ativas que favoreçam o diálogo entre as diferentes
culturas e visões que as (os) estudantes trazem. Igualmente práticas de
avaliação colaborativas devem ser acionadas para firmação dos conceitos-chave
da profissão e exercício do trabalho coletivo. A ética da solidariedade deve
alicerçar as relações entre as (os) estudantes, antecipando as possibilidades
de uma inserção no mundo de trabalho igualmente comprometida com a produção do
bem comum. A avaliação da aprendizagem deve estar rigorosamente articulada ao
processo de ensino-aprendizagem desenvolvido; séria o suficiente para impedir a
banalização da certificação e ética o suficiente para evitar a exclusão sumária
das (os) estudantes com déficits culturais sem que formas diferenciadas de
mediação pedagógica tenham sido exaustivamente exploradas.
· A realidade do processo de trabalho da (o) enfermeira (o) é o foco para a
discussão da formação e as bases do trabalho coletivo e da visão de
integralidade da assistência devem ser respeitadas. O compromisso com os
princípios norteadores do Sistema Único de Saúde precisa ser explorado em todas
as atividades curriculares, considerando-se esse Sistema, não como mero pano de
fundo da formação, mas como eixo fundante da formação em saúde/enfermagem.
· A coerência com os objetivos proclamados nos PP deve ser buscada pelos cursos
e isso implica a atenção com o não retorno ao processo de fragmentação
curricular, motivado pela crença de que não se pode abdicar da quantidade de
conteúdos e da exposição destes em sala de aula.
· Boas bibliotecas, com acervo adequado e atualizado não implicam bom ensino a
menos que o acervo seja utilizado. Para tal, há necessidade de planejamento de
horários livres para o trabalho autônomo do alunado e estratégias de ensino que
incluam e explorem estes espaços. Deve haver cuidado nos horários de
funcionamento das bibliotecas e laboratórios para diminuir as dificuldades das
(os) estudantes que trabalham.
· Trabalho coletivo é um componente vital para o bom exercício profissional, e
que deve ser exercitado no processo de formação. Logo, implica ruptura com o
conceito de que só se aprende em sala de aula e sob o comando do professor, em
estimados 50 minutos de horas-aula. Sem desconsiderar a importância da mediação
do docente, esta não deve prejudicar a experiência do trabalho grupal,
devidamente orientado pelos objetivos da formação e estes objetivos devem
nortear a composição de horários que favoreçam atividades integradoras e
problematizadoras que não cabem na ditadura do relógio curricular.
· O corpo docente deve estimular o olhar investigativo das (os) estudantes e
evitar produzir apenas para as agências de fomento, tornando-se produtivos para
a formação dos futuras (os) enfermeiras (os). Para isso, precisam de condições
de trabalho e de que as políticas de Avaliação Institucional se confrontem com
as políticas externas, especialmente as da Pos Graduação, notadamente centradas
na produção intelectual das (os) docentes sem valorizar a convergência com a
formação das (os) discentes.
· Os resultados das (os) estudantes no Enade devem servir de reflexão junto à
comunidade da escola, não para festejar ou justificar conceitos, mas para
permitir que o PP ganhe novamente primazia. A discussão sobre os resultados
deve promover ação conseqüente da comunidade intra e extracurso e sempre que
possível ação solidária entre os cursos da área . Trata-se de tentar
estabelecer uma rede de sustentação a um projeto histórico para a formação de
profissionais da saúde, ativadores de mudanças nos serviços de saúde,
imprescindíveis à sustentação do SUS. Não podem servir, portanto, ao
ranqueamento e nem devem levar à competição pura e simples por melhores notas
para ostentar no mercado.