Cooperação versus colaboração: conceitos para o ensino de enfermagem em
ambiente virtual
REVISÃO
Cooperação versus colaboração: conceitos para o ensino de enfermagem em
ambiente virtual
Cooperation versus collaboration: concepts for nursing teaching in virtual
environment
Cooperación versus colaboración: conceptos para la enseñanza de enfermería en
ambiente virtual
Ana Luísa Petersen Cogo
Enfermeira. Mestre em Educação. Professora Assistente da Escola de Enfermagem
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS
1. INTRODUÇÃO
A educação na modalidade à distância vem sendo difundida nos últimos anos na
enfermagem, demonstrando as amplas possibilidades que estes recursos oferecem
no ensino do cuidado. No atual estado do conhecimento, percebe-se que a
enfermagem tem relatado suas experiências no desenvolvimento de tecnologias
computacionais no ensino, seja no desenvolvimento de software ou de atividades
via Internet.Desta forma, com as experiências na utilização de ambientes
virtuais de aprendizagem, acredita-se que neste momento devam ser aprofundados
conceitos, como o de cooperação e o de colaboração, que subsidiem essas
práticas de ensino, em especial na enfermagem.
As tecnologias da informação e da comunicação, quando empregadas em atividades
de ensino, possuem uma lógica de funcionamento diferenciada das atividades
presenciais. Enquanto a modalidade presenciai privilegia a oralidade e as
expressões gestuais entre o educador e os alunos nas atividades em tempo
síncrono, a modalidade à distância resgata a comunicação escrita e abre a
possibilidade das atividades de aprendizagem ocorrerem em tempo assíncrono(1).
Em relação à modalidade à distância, outra característica que vem sendo
explorada é o trabalho em grupo. Esta técnica permite romper com a monotonia do
trabalho individual, servindo como estímulo mútuo entre os participantes, e
assim promove trocas de aprendizagem, rompendo com a hierarquia professor-
aluno, pois o professor torna-se um facilitador do processo. A concepção de
ensino apresentada é colocada por autores(2) como uma utilização inteligente do
computador na educação, na qual o aluno usaria as ferramentas no intuito de
construir conhecimento, criando, pensando e manuseando diferentes tipos de
informação.
Essas peculiaridades das atividades de aprendizagem mediadas por computador
requerem dos educadores a habilidade de empregarem conceitos como o de
cooperação e o de colaboração. No entanto, observam-se dúvidas entre educadores
ao buscarem um conceito que expresse a dimensão atingida nos processos de
aprendizagem mediados por computador por eles desenvolvidos. Afinal, os alunos
teriam interagido trocando informações entre si ou aprofundado esta interação
realizando trocas significativas para o seu aprendizado?
Acredita-se que o desdobramento dos conceitos de cooperação e de colaboração
merece uma investigação mais minuciosa e elaborada. Existem, com freqüência,
divergências conceituais no meio acadêmico entre cooperar e colaborar. No
entender de alguns autores, entre estes pode-se citar Campos(3), a cooperação é
um nível intermediário de compartilhamento das atividades em comunidades
virtuais, com discussão temática e estabelecimento de normas de trabalho
coletivo no intuito de realizar uma tarefa. A colaboração compreenderia a
construção de conhecimentos com objetivos estabelecidos e compartilhados com os
participantes desta comunidade virtual, sendo superior o nível de relação
social. No entanto, cooperação e colaboração são apresentadas por Piaget de
forma inversa, sendo a cooperação o grau mais elevado de socialização.
Este artigo pretende contribuir, apresentando uma revisão conceitual sobre
cooperação e colaboração; para tanto, optou-se como referencial teórico pela
teoria da epistemologia genética de Jean Piaget, por entender que a proposta
construtivista-interacionista é relevante na proposição de práticas pedagógicas
em enfermagem mediadas por computador. O texto apresentado é decorrente do
trabalho apresentado na disciplina 'As coordenações das ações sociais na obra
de Jean Piaget' do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, ministrada pela Prof.ª Dr.ª Maria Luiza Becker.
2. CONTEXTUALIZAÇÃO DOS CONCEITOS
2.1 Epistemologia Genética
A epistemologia genética pode ser compreendida como uma teoria processual, a
qual concebe a construção do conhecimento na ação do sujeito. O conhecimento,
no entendimento de Jean Piaget(4), não está pré-determinado nas estruturas
internas do sujeito, nem nas características do objeto, mas sim na interação
que ocorre entre o sujeito e o objeto. Portanto, o desenvolvimento do sujeito
epistêmico possui uma dimensão social, e não apenas individual, na construção
do conhecimento e do pensamento(5).
A concepção de que não existe um conhecimento absoluto, que cada sujeito faz o
seu percurso cognitivo passando de um patamar mais básico para um mais
elaborado de conhecimento, e especialmente que não se faz este percurso
sozinho, mas na interação com outros sujeitos, são algumas das questões
presentes nesta teoria concebida como sendo construtivista-interacionista(4).
O momento histórico vivenciado por Jean Piaget, de reflexão pedagógica na busca
de mudanças frente à denominada pedagogia tradicional, fez com que este biólogo
aproximasse os seus estudos de temas de interesse para a educação, demonstrando
uma preocupação política e intelectual pelas ações educativas na virada do
século XIX para o XX(6).
O movimento da Escola Nova, tendo como um dos seus difusores Pierre Bovet,
surgiu nesta fase de mudanças propondo métodos novos, os quais privilegiavam a
construção da autonomia e a aprendizagem pela atividade, partindo dos
interesses dos alunos. O enfoque central passa a ser no aluno, e não no
professor como nas práticas tradicionais(7).
Frente ao momento sócio-histórico, Piaget contribuiu com as fundamentações
psicológica e epistemológica necessárias para dar sustentação às propostas da
pedagogia ativa. Em 1932, às vésperas da 2ª Guerra Mundial, apresentava em um
congresso as contribuições da Educação Nova para o progresso social,
desenvolvendo a sua argumentação a partir do conceito de egocentrismo,
apontando a relação entre liberdade e constrangimento na sociedade, reforçando
que a sociedade deveria preocupar-se com a cooperação e com a reciprocidade(7).
Como foi demonstrado, a proposta da Educação Nova surgiu como um movimento, em
diferentes países, de repensar as práticas pedagógicas em um momento histórico
marcado por políticas autoritárias e de intolerâncias raciais. O argumento
central desta proposição, e que pode-se transpor ao início do século XXI, é a
força existente na educação como uma prática transformadora. Para tanto, deve-
se resgatar o fazer docente, revendo os métodos tradicionais.
Os métodos propostos pela pedagogia ativa compreendem procedimentos como o
trabalho em grupo e o self-government, que visam favorecer a formação do
pensamento, a pesquisa e a promoção da autonomia. Nesta perspectiva, as
relações professor-aluno e aluno-aluno serão construídas fundamentadas no
respeito mútuo, na reciprocidade e na cooperação. Os alunos, nas atividades do
trabalho em grupo, realizam trocas entre si, colaborando mutuamente, mas a
construção de uma lógica do pensamento ocorrerá quando a cooperação estiver
estabelecida(8).
Como está sinalizado, colaborar e cooperar possuem perspectivas qualitativas
diferenciadas no entendimento de Piaget. Essas dimensões serão analisadas a
seguir, destacando-se os aspectos psicológicos que as constituem.
2.2 Cooperação e Colaboração
O homem é essencialmente um ser social, que não pode ser pensado fora desta
perspectiva, ocorrendo através das interações sociais o desenvolvimento da
inteligência humana. A socialização do sujeito não é expressa da mesma forma
nas diferentes faixas etárias, utilizando como critério a qualidade das trocas
intelectuais. O social nas relações de uma criança é qualitativamente diferente
do social presente nas relações de um adolescente(9).
Para que haja uma compreensão dos conceitos de cooperação e colaboração, faz-se
necessário destacar alguns aspectos do desenvolvimento psicológico dos
indivíduos. Piaget(3) identificou quatro estágios do desenvolvimento que seriam
a fase sensório-motora, que precede a linguagem; a pré-operatória, que
corresponde ao período das representações iniciando com a linguagem; a das
operações concretas e a operatória formal. Essas etapas seriam sucessivas no
desenvolvimento do indivíduo, variando apenas cronologicamente.
A socialização da inteligência inicia-se com a aquisição da linguagem; antes,
na fase sensório-motora, a criança basicamente não realiza trocas sociais,
permanecendo em uma perspectiva individual(9).
Na fase pré-operatória irá sobrepujar-se o egocentrismo cognitivo, definido
como "(...) uma atitude epistêmica que impressiona por sua apreensão não-
crítica do objeto de conhecimento e sua tendência à indiferenciação, em razão
da supremacia da perspectiva própria"(10). Portanto, o termo egocentrismo
refere-se à impossibilidade do sujeito descentrar-se para poder compreender a
perspectiva de outros sujeitos(11).
A descentração corresponde à capacidade do indivíduo refazer o percurso
cognitivo de outro sujeito, buscando compreender o pensamento do outro
afastando-se da sua lógica individual. Deve-se destacar que todo indivíduo
adolescente ou adulto preservará, em menor ou maior grau, traços de
egocentrismo, necessitando descentrar-se para cooperar. O pensamento
egocêntrico constitui-se em uma fase pré-social, antecipando a cooperação
presente nos aspectos sociais do conhecimento(10).
Nesta perspectiva, não há uma separação entre social e não social, mas graus de
socialização entre sujeitos em nível operatório, ou seja, com a possibilidade
de socialização do pensamento e de trocas intelectuais, elementos
imprescindíveis para que os indivíduos possam descentrar-se e,
conseqüentemente, cooperarem(9).
O termo operatório refere-se a operações mentais, compreendidas como "elementos
constitutivos do pensamento lógico"(10), caracterizando-se por ser uma ação
interiorizada, reversível e constitutiva de uma estrutura.
No entendimento de Piaget, cooperação é um método construído na reciprocidade
entre os indivíduos, que ocorre pela descentração intelectual, havendo a
construção não apenas de normas morais, mas também racionais, tendo a razão
como produto coletivo(10,12).
A colaboração seria uma interação em que existem trocas de pensamento, seja por
comunicação verbal ou coordenações de pontos de vista, de discussão, sem
ocorrer operações racionais, não havendo uma estrutura operatória(13).
Comparativamente poder-se-ia afirmar que a colaboração representa uma etapa das
trocas sociais anterior à cooperação.
A cooperação está vinculada à interação, a qual requer a formação de vínculos e
a reciprocidade afetiva entre os sujeitos do processo de aprendizagem. As
interações interindividuais possibilitam a modificação do sujeito na sua
estrutura cognitiva e do grupo como um todo, não em caráter somatório, mas em
uma perspectiva de formação de um sistema de interações. Neste entendimento, a
construção do conhecimento ocorrerá através da cooperação(13).
A interação sócio-cognitiva demonstra que os sujeitos, ao cooperarem,
solucionam problemas cognitivos de forma qualitativamente diferente do que
teriam realizado individualmente(14). No entanto, para que a cooperação ocorra
há a necessidade de existir respeito mútuo e reciprocidade entre os sujeitos
que estão interagindo, que são os componentes de uma moral autônoma(15).
Cabe diferenciar a moral heterônoma da moral autônoma. A moral heterônoma
refere-se as relações nas quais prevalecem a imposição, a coação e a coerção
exercida por um indivíduo sobre os demais. A submissão é a resposta do grupo as
ações exercidas, não havendo uma troca de valores justa, o respeito ocorre de
forma unilateral. Portanto, não ocorrerá a construção de um espaço social de
autonomia e responsabilidade. Na moral autônoma, os sujeitos participam da
composição das regras de respeito mútuo, portanto percebem os seus limites de
forma mais justa e construtiva(15).
Como foi demonstrado, a cooperação, diferentemente da colaboração, é um
processo criador de realidades novas, e não somente de trocas entre os
indivíduos(10).
3. APLICAÇÃO NA EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA EM ENFERMAGEM
Entende-se cooperação como um dos conceitos fundamentais da Teoria de Jean
Piaget, que subsidia a proposta de aprendizagem construtivista-interacionista.
Na busca de uma coerência com a proposta de Piaget, a cooperação em processos
de aprendizagem em ambientes virtuais pode ser desenvolvida em atividades
síncronas (chat)ou assíncronas (fórum, correio eletrônico), com a possibilidade
de utilização das tecnologias computacionais em consonância com uma proposta
pedagógica que desenvolva a autonomia e a construção do conhecimento.
Frente a esta perspectiva, cabe destacar que o uso das tecnologias
computacionais não garante por si só a aprendizagem, cabendo ao professor a
proposição de projetos que integrem os recursos disponíveis em uma abordagem
pedagógica construtivista(16). A figura do professor é descentralizada, esta
fica intermediada pelo computador, fato este que auxilia a desconstruir o papel
heterônomo do docente, promovendo a interação entre os sujeitos envolvidos.
A perspectiva ativa do aluno no processo de aprendizagem em ambiente virtual na
enfermagem implica em aprender a aprender coletivamente, proporcionando ao
mesmo o desenvolvimento de projetos que o desafie, que instigue a sua
capacidade criativa e de resolução de problemas (17). Da mesma forma, o
professor torna-se um facilitador do processo, deixando de ser um informador
(18).
A enfermagem, que durante a sua construção sócio-histórica esteve muito voltada
às práticas pedagógicas presenciais centradas na atividade, beneficia-se da
perspectiva construtivista aplicada em ambiente virtual. O processo de
aprendizagem cooperativo antecipa aos alunos a experiência de convívio mútuo e
de relacionamentos interpessoais que terão em práticas de estágio e no contato
com o cliente e sua família.
Da mesma forma, o desenvolvimento de projetos em grupos possibilita ao aluno a
construção de regras de convívio mútuo, que são quesitos importantes para a
inserção profissional do futuro enfermeiro, uma vez que o trabalho da
enfermagem desenvolve-se coletivamente.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento de atividades em ambientes virtuais de aprendizagem, neste
caso na área da enfermagem, requer a contextualização teórica dos conceitos que
estão sendo empregados. Como procurou-se demonstrar os autores muitas vezes
utilizam indiscriminadamente as palavras cooperação e colaboração, o que deve
ser desvelado para compreender-se a dimensão que a atividade educativa atingiu.
Na perspectiva de Piaget, a construção do conhecimento somente ocorrerá se os
alunos cooperarem. A colaboração refere-se à troca de informações entre os
sujeitos envolvidos no processo de aprendizagem, com a conotação de ato
solidário.
Como já foi mencionado, o que faz a diferença no uso dos recursos tecnológicos
na área da educação não são os equipamentos, mas o que os educadores podem
propor através destes. Existe hoje uma grande variedade de recursos
computacionais, mas somente com a sua otimização e a aplicação de uma prática
pedagógica cooperativa e crítica é que consegue-se avançar em relação às
práticas ditas tradicionais.