Educação em saúde: perspectivas de uma equipe da Estratégia Saúde da Família
sob a óptica de Paulo Freire
INTRODUÇÃO
Uma das principais características da atenção primária do Sistema Único de
Saúde (SUS) é a criação de equipes multiprofissionais que devem agir a fim de
desenvolver práticas de saúde com integralidade para atender populações
delimitadas por áreas geográficas. A política de trabalho preconiza a visão do
ser humano de forma contextualizada à suas condições demográficas,
epidemiológicas, sócio- econômicas, políticas e culturais para que as ações de
saúde sejam cada vez mais direcionadas e eficazes.
A partir de um diagnóstico comunitário aprofundado as atuações dos
profissionais que compõem estas equipes tendem a criar maior aproximação com o
usuário e fundamentam um trabalho sistematizado e contínuo. Este, muito além do
caráter curativista e flexneriano, sob a visão de eliminação de doenças,
preconiza um compromisso com a promoção da saúde e a qualidade de vida dessas
pessoas.
Estas equipes de referência, denominadas como Equipes de Saúde da Família
(ESF), devem estar empenhadas em conhecer a realidade da população residente em
sua área de abrangência e a incentivar a co-responsabilidade e participação
social, na busca por construção e fortalecimento de vínculos. Nesta busca as
equipes devem executar ações de vigilância em saúde, relacionadas ao trabalho e
ao ambiente dos cidadãos; realizar acolhimento humanizado; prestar atendimento
de saúde; exercer visitas domiciliares e criar espaços contínuos e crescentes
de atividades educativas.
Neste atual panorama da atenção primária em saúde, entende-se que o maior
desafio das equipes de saúde da família é organizar o trabalho, na conciliação
da quantidade de atendimentos prestados com o cumprimento integral de todas as
suas atribuições. A visão da estratégia de saúde da família como um excelente
campo para a formação, articulação e fortalecimento da interdisciplinariedade e
intersetorialidade, é uma ferramenta importante para auxiliar as equipes nesta
tarefa.
Neste trabalho a saúde e a educação estão intimamente articuladas, pois são
vistas como complementares e essenciais para o progresso da estratégia de saúde
da família. Saúde e educação não podem ser dissociadas, caminham juntas, se
articulam enquanto práticas sociais(1). A educação em saúde é parte destacada
das atribuições dos profissionais integrantes das equipes de saúde da família,
e se ressalta ainda mais dentro do processo de trabalho da enfermagem. A
prática da educação em saúde requer do profissional de saúde, e principalmente
de enfermagem, por sua proximidade com esta prática, uma análise crítica da sua
atuação, bem como uma reflexão de seu papel como educador(2). As próprias bases
conceituais da enfermagem preconizam a função do enfermeiro como um educador,
afinal não há cuidar sem educar e vice-versa.
Diante do pressuposto de que a educação se estabelece como uma vertente
entrelaçada a saúde, se torna responsabilidade dos profissionais da saúde
atentar e praticar a educação em saúde como processo educativo de construção de
conhecimentos em saúde que visa à apropriação sobre o tema pela população em
geral. É também o conjunto de práticas do setor que contribui para aumentar a
autonomia das pessoas no seu cuidado e no debate com os profissionais e os
gestores do setor, para alcançar uma atenção de saúde de acordo com suas
necessidades(3).
As ESF ampliam suas abordagens de saúde e se tornam colaboradoras e
responsáveis na construção da cidadania adotando a prática da educação em saúde
preconizada pelo Ministério da Saúde. Esta visão cria uma aproximação
democrática entre cidadão e órgão público, fortalecendo no discurso da saúde
conceitos de educação e também de controle social e participação popular.
Para atender as reais necessidades das populações e das equipes de saúde a
problematização aparece como elemento essencial na construção de um processo
educativo verdadeiro. Esta é uma possibilidade metodológica que vem lentamente
tentando se inserir no campo da saúde comunitária, numa busca pela Educação
Popular em Saúde, na qual o diálogo, o envolvimento político, a reflexão
crítica e a autonomia cidadã são promovidos.
A política de Atenção Básica preconiza esta prática, que se encontra em total
sintonia com as idéias de Paulo Freire. Para ele educação é comunicação, é
diálogo, na medida em que não é transferência de saber, mas um encontro de
sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados(4). Esta
linha de pensamentos converge para a intersetorialidade e interdiscipli-
naridade e é significativamente mais rica culturalmente e mais produtiva do
ponto de vista do conhecimento.
A articulação entre educação e saúde sob o ponto de vista da relação
interpessoal, cuidado e respeito, se constitui como uma das mais ricas fontes
de interdisciplinaridade. Por isso este estudo discute a prática educacional e
ressalta as possíveis transformações e a reflexão crítica como instrumentos
para fortalecê-la dentro da atenção primária em saúde.
A incorporação da educação em saúde às práticas da estratégia de saúde da
família se mostra cada vez mais atual e necessária, principalmente quando esta
ocorre a partir da troca de conheci-mentos, estabelecendo mais do que um ensino
e uma aprendizagem um ato de criar e transformar.
Assim, procurando desvelar e repensar como ocorre a prática da educação nas
ações de saúde, a idéia central deste estudo foi propiciar a uma equipe de
saúde da família a vivência da problematização e sensibilizá-la frente suas
posturas educativas. Este estudo, guiou-se no sentido que o educador Paulo
Freire atuava: não de estabelecer esquemas fechados com resolubilidades
formadas, mas sim de conhecer a realidade dos sujeitos e conjuntamente com eles
visualizar possibilidades de transformações, criando ou ampliando horizontes de
trabalho.
A concepção dialógica de Freire pode ampliar as fronteiras de atuação da Saúde
da família, com maior resolutividade das ações e melhor impacto dos indicadores
de saúde e de qualidade de vida da população assistida. Considera-se que esta é
uma dimensão de fundamental importância na produção de cuidados de saúde, no
processo de construção do SUS(5).
A prática problematizadora promove o diálogo entre profissionais e usuários, a
autonomia cidadã, assim como incentiva estes sujeitos a adotarem uma postura
ativa em seus ambientes políticos e sociais. Desafiadores e estimulantes, o
diálogo e a problematização foram escolhidos como norteadores deste estudo para
convidar e instigar a reflexão crítica de uma equipe de saúde da família,
fortalecendo assim suas práticas educacionais em saúde.
O objetivo geral deste estudo foi conhecer a prática educativa desenvolvida por
uma equipe de saúde da família, desvelar suas perspectivas sobre a educação em
saúde e repensá-las dentro de seus próprios processos de trabalho.
MÉTODO
Este estudo é caracterizado como uma pesquisa qualitativa(6), na qual o
processo de investigação foi viabilizado através da inserção dentro das
atividades de rotina da equipe de saúde da família da Unidade de Atenção
Primária em Saúde Dom Bosco (UAPSDB), no distrito de Cachoeira do Campo,
município de Ouro Preto/MG.
Tendo como sujeitos de pesquisa sete agentes comunitárias de saúde, um médico e
uma enfermeira membros da equipe de saúde da família da Unidade Dom Bosco, este
estudo pautado na concepção dialógica freireana e se desenvolveu por meio de
círculos de cultura, concebido pelo referido educador. O fascínio pela idéia de
trabalhar e contribuir para o alcance de uma maior liberdade política e
cultural do cidadão culminou na escolha de se ter Paulo Freire como marco
teórico e metodológico deste trabalho. "Trabalhar com as concepções de Paulo
Freire, denota a preocupação dos enfermeiros em transformar a sociedade que
estão 'con-vivendo' e 'contextualizando'(7).
O processo investigativo foi aplicado através do itinerário de pesquisa apoiado
em Freire, que é constituído das seguintes etapas metodológicas(8):
Investigação temática, Codificação e Descodificação e Desvelamento crítico. A
investigação temática foi realizada através de entrevistas dialógicas
individuais; formação do círculo de cultura e escolha dos temas geradores; a
etapa de Codificação concretizou-se em quatro círculos de cultura, ocorrendo
muitas vezes também o processo concomitante de descodificação; e à
Descodificação e Desvelamento crítico foram destinados outros quatro círculos
de cultura, e finalmente foi realizado um último círculo de cultura voltado
para a avaliação do estudo, totalizando um total de nove círculos de cultura.
Para a Investigação temática e o levantamento de temas geradores, foram
adotadas algumas estratégias: a inserção da pesquisadora dentro da rotina de
trabalho da equipe, através do desempenho das atribuições do enfermeiro de
saúde da família; a exposição do projeto de pesquisa estimulando o diálogo
sobre a temática da educação em saúde e da "metodologia freireana"; exposição
de um filme sobre a biografia, as vivências e o legado de Paulo Freire; o
reconhecimento territorial e do contexto social da comunidade local. Essa etapa
se constituiu como um importante momento de pesquisa já que viabilizou o
conhecimento e aproximação com os sujeitos.
Os temas geradores foram elegidos a partir do foco do trabalho: a Educação em
Saúde em uma ESF. Inicialmente sob forma de entrevista dialógica, cada membro
da equipe foi convidado a expressar suas perspectivas sobre quatro questões
provocativas: O que é a equipe de saúde da família? O que é educação em saúde?
Como é a prática da educação em saúde dentro do trabalho da equipe? De que
maneiras as ações de educação em saúde existentes podem ser qualificadas?
Cada um dos nove profissionais respondeu as questões sobre a relação entre
educação e saúde na realidade dos serviços prestados pela equipe. As falas
foram registradas em "notas de interação", que expressavam as perspectivas de
cada sujeito(9). Estes foram agrupados em quatro textos correspondentes a cada
questão e apresentadas no círculo de cultura que estabeleceu como os temas
geradores a serem problematizados nos círculos de cultura subsequentes.
Em quatro círculos de cultura mensais, de duração média de uma hora e meia,
ocorreu a etapa do processo metodológico, denominada Codificação. A cada
encontro os sujeitos, divididos em trios, recebiam um texto cujo conteúdo
apresentava as perspectivas de todo o grupo, frente a uma das questões
norteadoras. Estes textos eram entregues respeitando a ordem em que as questões
foram levantadas na etapa anterior.
Os círculos de cultura se coordenavam pela leitura discursiva do texto, e cada
trio era orientado a destacar neste as idéias comuns e as divergências entre
todas as respostas levantadas e apresentadas. Estas idéias centrais e
essenciais eram conjuntamente eleitas a serem codificadas e desveladas ao longo
dos círculos de cultura. Este momento baseou-se em contextualizar as idéias
expostas por eles na primeira etapa (resgatar valores e origens de acordo com a
realidade), para isso foram instigados a debater os significados dos temas
geradores a partir de suas experiências e vivências.
A próxima etapa metodológica foi a Descodificação e Desvelamento Crítico. Para
tal finalidade ocorreram quatro círculos de cultura mensais, também de duração
média de uma hora e meia, onde foram utilizadas dinâmicas, materiais áudio
visuais e confecção de material ilustrativo, que permitiram a sistematização
dos temas codificados. Estes eram problematizados a partir de referências
teóricas abrangentes a estratégia de saúde da família e da educação
transformadora. Por fim, foi realizado um círculo de cultura para uma avaliação
conjunta da experiência vivida no estudo.
Foram respeitados os princípios éticos da pesquisa. A inclusão dos sujeitos no
estudo obedeceu as Resoluções nº. 196/96 e 251/97 do CNS/MS que dispõem sobre
Diretrizes e Normas regulamentares na Pesquisa com Seres Humanos, especialmente
no que diz respeito ao Consentimento Livre e Esclarecido. O consentimento de
participação foi obtido através de Termo de Consentimento que foi assinado e
datado. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas com Seres
Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina, processo sob n° 168/08.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
As inúmeras perspectivas surgidas a partir da investigação temática, foram
analisadas e de acordo com a abordagem da pesquisa, foi inevitavelmente se
direcionando para o aprofundamento dos temas oriundos do próprio processo de
trabalho da equipe de saúde da família.
Na descoberta por seus conhecimentos sobre o primeiro tema gerador, o que é uma
equipe de saúde da família, os sujeitos apresentam, de maneira mais recorrente,
o trabalho em equipe e a promoção da saúde, como seus definidores. Estes dois
elementos foram resgatados e trabalhados a respeito de suas inserções dentro da
equipe.
O trabalho em equipe foi codificado pelo grupo como ponto primordial para o
desempenho da estratégia de saúde da família. Durante a descodificação/
problematização, as maiores contribuições dos sujeitos se mostraram através da
perspectiva de que o objetivo comum do cuidado e da promoção da saúde da
população, somente pode ser alcançado com o trabalho organizado em equipe. Esta
percepção unânime foi explanada com exemplos de situações onde o trabalho
descoordenado e a falta de diálogo entre os membros da equipe, resultaram em
importantes desgastes interpessoais, em falhas e prejuízos na produção dos
serviços prestados pela equipe. Foram levantadas e debatidas as maiores
dificuldades enfrentadas por eles no trabalho em equipe: as diferentes maneiras
com que cada um desempenha seu exercício profissional, a falta de comunicação e
diálogo, e as abordagens negativas na hora de se pensar e resolver um problema.
No círculo direcionado para o desvelamento crítico, estas dificuldades foram
debatidas. Após leitura e discussão com suporte teórico foram analisados as
situações de conflitos, as fragilidades e as potencialidades desta equipe assim
como seus desejos por mudanças, principalmente no sentido de aumentar as
relações de respeito e amizade dentro da equipe.
Em relação à promoção da saúde emergiram significados importantes como o da
responsabilização profissional e social frente à saúde coletiva e a necessidade
dos próprios profissionais e da população de questionar seus preconceitos,
valores culturais e familiares. Estes foram reportados como importantes
obstáculos para a ampliação das ações de educação e promoção em saúde,
especialmente quanto à prática de diferentes metodologias, como a
problematização, por exemplo. As divergências entre a teoria e a prática foram
descobertas a partir da leitura do texto da Política Nacional de Promoção em
Saúde de 2006, do Ministério da Saúde. Como dificuldades para a aplicabilidade
desta política foram destacadas: a falta de recursos oferecida pelos gestores e
a falta de conhecimento da população sobre esta responsabilidade dos
profissionais de saúde da família, o que dificulta as intervenções destes
quando elas se fazem necessárias.
A respeito do segundo tema gerador, entendimento da educação em saúde, os
sujeitos apresentaram diversas perspectivas, que se agruparam basicamente, em
três concepções: Informação, Conhecimento e Entendimento.
A idéia de que a educação em saúde é o repasse de informações, foi fortemente
apresentada. Dentro desta idéia, a educação em saúde foi concebida como uma
obrigação dos profissionais de informar e explicar quais as atitudes corretas
em relação à saúde, evitando assim a "ignorância" das pessoas; estas
informações foram colocadas como essenciais para que o cidadão alcance seus
direitos ao trabalho, lazer, moradia, emprego, transporte e consequente-mente a
saúde. A alfabetização foi colocada como fator determinante "para se ter
conhecimentos", pois sem este pré-requisito as pessoas não têm meios para
conseguir informações e aprender. A educação em saúde também foi encarada como
um meio para mudar o comportamento das pessoas.
Para alguns, educação em saúde é entendida como: "conhecimento sobre as
doenças, suas prevenções, os cuidados, a necessidade de um tratamento adequado
e suas conseqüências; sobre o sistema de saúde público e como acessá-lo; sobre
o funcionamento do programa de saúde da família e como participar dele dando
opiniões; sobre os limites individuais para poder parar, pensar e ter
consciência das atitudes em relação à saúde".
Uma outra parte dos sujeitos compreende a educação em saúde como: o
"entendimento da população: sobre o problema de saúde que a acomete; sobre as
mudanças que precisam fazer para terem mais saúde; do porque se tomar um
medicamento; de como se cuidar evitando agravos".
De modo geral os sujeitos se consideram agentes promotores de educação em
saúde, e citaram o respeito mútuo entre usuários e equipe, como cooperador
desta promoção."Os objetivos da educação em saúde são de desenvolver nas
pessoas o senso de responsabilidade pela sua própria saúde e pela saúde da
comunidade a qual pertençam e a capacidade de participar da vida comunitária de
uma maneira construtiva. Então é preciso avaliar realmente estes objetivos e se
de fato está trazendo mudança na vida das pessoas"(10).
Na codificação destas idéias, os sujeitos expressaram as dificuldades que
grande parte da população apresenta para entender as informações que eles
tentam passar, gerando um processo repetitivo e cansativo frente à "ignorância"
das pessoas. O medo, a vergonha, a timidez e a coação da população apareceram
como barreiras ao processo educacional que vem sendo feito pela equipe. Ao
longo dos círculos ficou demonstrado que a maior dificuldade reside na
abordagem para criar o processo educativo com estas pessoas, sendo necessário
repensar como este processo vem sendo feito. Foi discutida a idéia de que o
repasse de informações de forma vertical e depositária não se apresenta como
bem sucedida na história da educação em saúde, ainda mais quando o foco é o
usuário, como preconizado pelo atual modelo de saúde comunitária brasileira.
Neste sentido, consideramos este conceito sobre a responsabilidade dos
educadores em saúde(2), amplo e atual:
A tarefa do educador em saúde é a de levar o individuo ao entendimento das
questões ligadas a ela, e então, de acordo com a necessidade, ele próprio
saberá como agir desde que a forma de educação oferecida seja realmente
transformadora, criativa, abra o leque de possibilidades e tenha real valor
cotidiano(2).
A possibilidade dialógica, de troca de conhecimentos e da educação
horizontalizada e libertadora mostraram-se como grandes desafios para as duas
partes, profissionais e usuários. A educação autoritária e impositiva presente
na casa e na escola, foram relatadas como repressoras a inserção destas
possibilidades ao longo de suas formações. A educação se refere ao
desenvolvimento das pessoas desde que nascem e durante toda a vida nos seus
processos de satisfação de suas necessidades(11). Este desenvolvimento
educacional ocorre nas relações sociais e pode ser utilizado como instrumento
de dominação ou libertação. Na história da Educação no Brasil, ela vem sendo
predominantemente um instrumento de dominação.
Os sujeitos descrevem que a crença sobre o profissional da saúde ser o detentor
do saber e a população vazia de conhecimento, é um senso comum ainda arraigado
na realidade local e que isso os impede de realizar atividades educativas de
uma forma mais dinâmica, dialógica e problematizadora. Contudo esta mesma
crença demonstrou ser uma barreira para os próprios sujeitos na busca por
possibilidades de se realizar o processo educativo como de real ensino e
aprendizagem e quiçá de criação e transformação.
Foram demonstrados pelos sujeitos, bloqueios que impedem a participação
espontânea, autônoma e a valorização dos próprios saberes. Esta postura é
entendida e justificada pelo pouco contato com uma educação que visa à
emancipação e valorização dos saberes individuais.
A descodificação e o desvelamento crítico sobre educação em saúde foi
problematizado a partir de teorização sobre educação transformadora: a
sensibilidade e o respeito como ferramentas para a educação, e sobre clínica
ampliada, como possibilidade de enxergar holisticamente os cidadãos e suas
necessidades de cuidado. Durante esta problematização emergiu a idéia de que na
grande maioria das vezes a educação é apenas uma retificação de erros. Os
sujeitos perceberam que há uma forte tendência de se ensinar ao outro aquilo
que, eles acreditam que não deva ser feito. Referem que a população habituada a
esta prática, adota basicamente duas condutas: insistem em demonstrar seus
erros afim de "finalmente aprender" ou "serem educados"; ou amendrontados
omitem suas práticas em relação à saúde, a fim de não serem advertidos. Desta
maneira se estabelece entre profissional e população um processo vicioso de
demonstrar e corrigir erros, baseado no medo.
A ilustração de material áudio visual sobre educação transformadora despertou a
sensibilidade sobre posturas educacionais e de cuidados. Esta discussão é
referendada por Vasconcelos et al(11) que conseram que o aprendizado do
ensinante ao ensinar não se dá necessaria-mente através da retificação que o
aprendiz lhe faça de erros cometidos. O aprendizado do ensinante ao ensinar se
verifica a medida que o ensinante, humilde, aberto, se ache permanentemente
disponível a repensar o pensado, rever-se em suas posições; em que procura
envolver-se com a curiosidade dos alunos e dos diferentes caminhos e veredas,
que ela os faz percorrer.
Quando abordado o terceiro tema gerador, sobre a prática da educação em saúde
dentro do trabalho de equipe, os sujeitos analisaram que a prática mais
expressiva é através dos grupos de gestantes, planejamento familiar,
hipertensos e diabéticos (HIPERDIA) e nas caminhadas promovidas pelas agentes
comunitárias de saúde a este grupo. Mas acontece principalmente através das
orientações, seja feita por cartazes, através da rádio, nas consultas,
distribuição de medicamento ou visitas domiciliares. Segundo eles a educação em
saúde ainda precisa ser mais praticada e melhorada. Como justificativa para a
prática ainda tímida, apareceram: a grande demanda de pacientes; a falta de
envolvimento, compromisso e interesse dos profissionais para com a população; a
falta de informação dos usuários; a falta de material de divulgação e de
veículos para que as informações saiam da Unidade e se estendam à comunidade.
Foi apresentado que muitas vezes a população procura a Unidade pelo medo da
doença, desviando seu interesse e o da equipe, pela prática educativa.
Nos círculos de cultura a equipe afirmou que seu conceito de saúde está
começando a mudar e que, através desta mudança talvez o trabalho de educação
possa ser mais presente e continuado. Os sujeitos percebem a necessidade de
mudanças, quando dizem que a prática ainda deixa muito a desejar e que mais
ações educativas poderiam ser feitas para a população.
As experiências e sentimentos em relação às práticas educativas populares, foi
exposto como fator desmotivante, seja pela falta de participação da população,
ou que esta só participa dos eventos quando há um atrativo, uma espécie de
"recompensa", como por exemplo, quando os profissionais ofertam um lanche, um
sorteio ou mesmo à presença do médico para realizar renovações de receitas.
Esta evidência, deixa claro que atender os interesses da população é realmente
um aspecto importante na promoção de práticas educativas, contudo foi
ressaltado que é preciso atentar para que estes interesses não sejam julgados a
partir de um pré-conceito dos profissionais.
Para promover um processo educativo efetivo, as reais necessidades de ações,
seus focos e sua abordagem precisam ser previamente estabelecidos, traçando
objetivos educacionais. "Para a mudança acontecer é preciso ocorrer
aprendizagem significativa, que possibilita a aquisição de conhecimentos e
informações. O aprender em/com um grupo é um movimento permanente que depende
da convivência e da aderência de seus membros bem como da consistência e da
fluência de seus mediadores/coordenadores(12)".
Uma estratégia para que estes objetivos se tornem claros para os sujeitos
envolvidos, e mais facilmente se tornem interesses comuns, é levantar problemas
e soluções através de investigação e diálogo com os usuários. Contextualizar a
realidade e criar identificação com os usuários, através do conhecimento de
suas necessidades, é um passo para se vencer os desafios natos de um processo
educativo.
Buscar os saberes e as necessidades da comunidade é, um processo de interação
que possui um valor ético, que é o respeito ao conhecimento obtido por cada
pessoa no seu trabalho e na vida(13). Para se educar é preciso ter abertura e
flexibilidade, capacidade para observar e de se interar com o grupo de atores
sociais envolvidos(1).
Sem um referencial teórico-metodológico que guie os sujeitos em suas práticas
educativas grupais, estas se desenvolvem sob forma de palestras e quando contam
com a participação popular, esta se faz por meio de perguntas e respostas, ou
dinâmicas recreativas. Diante do desejo por melhorias, exposto pelos
profissionais, a idéia desta discussão concluiu que a maneira com que as
práticas vêm sendo promovidas e desenvolvidas não atende aos seus desejos de
transformações. De modo geral, "percebe-se que há necessidade de inserção da
cultura e da participação popular no processo de educação em saúde, e quando
essa participação se dá através da conscientização dos indivíduos envolvidos no
processo, ela se transforma em educação no sentido pleno"(14-15).
O quarto tema gerador que reflete sobre como as ações educativas da equipe
poderiam ser qualificadas, foram detectadas inúmeras possibilidades: aumentar o
espaço físico e melhorar a infra-estrutura da Unidade criando espaços para
promover mais atividades e receber a população; o conhecimento e a inserção de
novas técnicas e metodologias que aumentassem a participação da comunidade;
técnicas para melhorar e aumentar a divulgação dos serviços e atividades
oferecidas pela Unidade; criar mais grupos educativos; ouvir mais os usuários e
trabalhar o preconceito. Nota-se que estas possibilidades, correspondem a
soluções de problemas sentidos por eles.
Práticas mais dialógicas e dinâmicas que instiguem maior participação popular e
uma maior atuação profissional, mostraram-se como metodologias interessantes e
qualificadoras do trabalho da equipe. Contudo debatendo teoria e prática, a
timidez foi referida como principal causa para o distanciamento entre elas.
Fez-se essencial evidenciar a origem da citada timidez ou "intimidação",
expressa pelos sujeitos. Reflexo persistente de uma prática educacional
dominadora e repressora chegou-se ao consenso, de que o diálogo deve ser
iniciado na educação familiar e estimulado pela educação formal mudando a
concepção cultural do processo de educar. A expressão de idéias como um ato
natural e espontâneo de autonomia, liberdade e emancipação foi entendido como
dificultoso já que exige uma mudança de hábitos, que acontece de forma lenta. E
para tal, depende da percepção voluntária, do desejo, do tempo e do ritmo de
cada um de mudar-se. Cada um, a seu modo pode aprender e descobrir novas
dimensões e possibilidades da realidade na vida. A educação torna-se um
processo de formação comum e permanente(16).
A discussão mostrou que, para os desejos por transformação se tornarem
aplicáveis à realidade, é necessário proporcionar espaços de reflexão pessoal e
coletiva a partir de questionamentos e planejamento estratégico, resgate de
valores, busca por conhecimentos, trabalho, emancipação ideológica e
determinação profissional.
A incorporação, dentro da Estratégia de Saúde da Família, de uma educação que
propõem o diálogo como base, valorizando-o como ato político, revela a
abrangência, a atualidade e a aplicabilidade das idéias freireanas na saúde
(17).
CONCLUSÃO
Este estudo demonstrou que os membros de uma equipe de saúde da família
reconhecem e aceitam seus papeis como educadores em saúde. Porém as descobertas
sobre este papel e como ele deve ser desempenhado é um processo recente que
vêem vivenciando. A agregação de significados a este papel, dentro de suas
formações pessoais e profissionais, foi um mérito deste estudo.
Analisando criticamente as perspectivas destes profissionais sobre a educação
em saúde e como vêm desempenhando-a, foi encontrado o modelo tradicional
(biomédico, informativo e preventivo de doenças), como o norteador adotado para
as práticas desta equipe, sendo o mais difundido e aceito também pela
comunidade local.
Perspectivas relacionadas a uma educação emancipatória e libertária também
foram apresentadas, como por exemplo, na idéia da educação em saúde como
mediadora da legitimação dos direitos dos cidadãos. O diálogo, a troca de
conhecimentos, os questionamentos, uma necessidade de educação continuada e a
participação popular, citados como qualificadores da educação em saúde, também
representam uma concepção mais ampla da educação e uma importante abertura para
transformações positivas. Contudo, constatou-se que a prática cotidiana da
educação em saúde está intimamente relacionada à educação depositária e
vertical, contrapondo-se a uma ótica mais ampla que atende as complexidades da
nova saúde pública. Esta propõe uma abordagem que busca fortalecer a
consciência crítica das pessoas, para uma participação ativa no delineamento de
suas circunstâncias de vida.
Este estudo comprovou que a possibilidade de troca conjunta de saberes entre
equipe de saúde e usuários do serviço é uma visão teoricamente moderna,
apresentando-se como uma prática inovadora e na realidade ainda ínfima. Esta
prática se depara com barreiras culturais muito arraigadas, o que impossibilita
a abertura necessária para a inserção do cidadão/usuário como sujeito ativo no
processo educativo. Pelas próprias políticas excludentes ou pela falta de
disposição profissional, ficou claro que esta abertura ainda não está
reconhecida, conquistada e legitimada, impedindo progressos e avanços na
prática da educação em saúde.
Com este trabalho os sujeitos perceberam e demonstraram que a educação em saúde
é um processo gradativo, e por isso permanente. Esta percepção é de grande
valia para a prática da equipe de saúde da família, pois possibilita a
incorporação natural das práticas educativas de forma referencial e
ininterrupta.
A educação em saúde como prática que capacita indivíduos e grupos para se auto-
organizarem a desenvolver ações a partir de suas próprias prioridades, orienta
e estimula à participação dos sujeitos nas ações dirigidas à melhoria de suas
condições de vida e saúde(18). Esta idéia foi sistematicamente trabalhada com
os sujeitos. Instigá-los a sentirem-se capacitados e estimulados à busca e
adesão de novos conhecimentos no campo da educação, evidenciou uma necessidade
de ação, configurada por eles como metas a serem alcançadas.
A partir deste ponto houve uma descoberta e um planejamento de ações que
poderiam ser articuladas de forma integrada com os outros setores da sociedade
e com o ambiente comunitário. O reconhecimento das habilidades,
responsabilidades, e a visão das possibilidades e das limitações da equipe
foram frutos deste trabalho.
Foram percebidas muitas inseguranças frente a se criar e estabelecer um
processo educativo contínuo tanto dentro da equipe, como desta com a população.
Contudo as discussões levantadas e a problematização geraram apoio e suporte a
estes anseios. As vivências dos círculos de cultura foram sensibilizadoras e
essenciais para que os próprios sujeitos criassem abertura a novos
conhecimentos e assumissem novas práticas e metodologias como potencializadoras
de seus trabalhos em saúde.
Certamente esta atitude foi o passo fundamental para as relações de troca de
conhecimentos, realizadas e trabalhadas neste estudo, se mostrando como uma
possibilidade infinita de interação e de manutenção de relações interpessoais.
Na etapa conclusiva da pesquisa era possível perceber que as perspectivas da
equipe iam ao encontro da idéia de que promover um viver qualificado se faz
educando, promovendo saúde e bem estar aos cidadãos.
A avaliação dos sujeitos diz que esta pesquisa foi importante para que eles
dedicassem mais atenção e avaliassem suas posturas como agentes promotores de
saúde da família. Destacaram a relevância desta em suas formações, já que se
sentiram enriquecidos com conteúdos teóricos e principalmente instigados a um
processo de busca por transformações, o qual acreditam, dará resultados
positivos às práticas de saúde da equipe. Foram demonstradas mudanças de
posturas e a adoção de novas atitudes frente ao processo educacional da própria
equipe e desta em relação aos usuários.
Em suas falas os sujeitos se demonstravam ora como ensinantes, ora como
aprendizes, e outras vezes não esclarecidos sobre estes papéis. Foi
interessante observar a percepção e a reflexão dos sujeitos quanto a estes
papéis e que de fato eles não são absolutos e estagnados. Entendeu-se que fazer
educação, criar e transformar são constantes na vida dos indivíduos. Os limites
deste estudo crítico e participativo dentre alguns fatores, esbarraram no fator
tempo que é determinado pelos sujeitos da pesquisa e na perspectiva desafiadora
do papel destes mesmos sujeitos, como protagonistas e co-responsáveis pelas
evidências, reflexões e ações desencadeadas. Ao pesquisador o desafio de fazer
pesquisa com e não sobre, requerendo uma postura de abertura e atenção ao novo,
dedicação e constante reflexão e sistematização das evidências para validação
conjunta dos resultados e tomadas de decisões.