Enfermeiros e a família do portador de transtorno mental
INTRODUÇÃO
A família tem sido convidada a compor os vários cenários de atenção à saúde e a
participar ativamente no processo do cuidado ao portador de transtorno mental.
É fato decorrente dos pressupostos da reforma psiquiátrica que busca a inclusão
do portador na família e sua reintegração no meio social.
A família deve estar inserida nos serviços de saúde, e preconizada sua presença
desde a Constituição que a considera a base da sociedade, devendo receber,
portanto, especial proteção do Estado(1).
A legislação em saúde mental desde a primeira portaria, a 224/92, que norteava
os serviços de saúde mental indicava o atendimento do familiar como uma das
atividades a serem desenvolvidas pelos profissionais. A portaria 336/2002 que
regulamenta os centros de atenção psicossocial (CAPS) relaciona o atendimento à
família entre as ações a serem executadas pela equipe técnica, e a Portaria
251/2002 que estabelece diretrizes e normas para assistência em hospital
psiquiátrico, inclui programas específicos e interdisciplinares visando ao
tratamento de acordo com a necessidade de cada usuário e de sua família(2).
A família é entendida como um espaço privilegiado onde aprendemos a ser e a
conviver, independente de formas ou modelos que possamos assumir. Ela é a
matriz de identidade individual e articula gêneros. Faz a mediação entre o
público e o privado e está imersa em valores culturais que são transmitidos
entre gerações, possuem suas crenças que permeiam as relações interpessoais(3-
4).
A família é compreendida como um sujeito que se comporta de forma estratégica,
realizando avaliação e escolhas frente a um conjunto de recursos disponíveis em
uma perspectiva temporal(5).
Nos serviços de saúde, a família pode ser visualizada como auxiliar de
processos diagnósticos e de tratamentos individuais ou então é avaliada como um
problema que deve ser transformado em objeto terapêutico(3,6).
A família do portador de sofrimento psíquico deveria ser incentivada a
participar efetivamente do cenário sociocultural, por estar inserida em espaços
que trazem a discussão da reforma psiquiátrica com o objetivo de provocar o
imaginário social para refletir sobre a loucura, a doença mental, o hospital
psiquiátrico, tomando-se como ponto de partida a produção cultural e artística
dos sujeitos envolvidos, cuja contribuição busca desmistificar o preconceito do
"doente mental perigoso e incapaz"(7).
A família foi banida da assistência na constituição da psiquiatria enquanto
ciência que se pautava no paradigma cartesiano e, no ensino, ela não foi
inserida nos conteúdos escolares, pois a formação em saúde se baseou em
disciplinas. Na assistência ou ensino, utilizou-se o reducionismo cartesiano
como forma de obter-se uma explicação sobre os fenômenos de forma simplificada
(8).
No momento atual, busca-se devolver a complexidade do objeto, através da
interdisciplinaridade que é um princípio mediador entre as disciplinas que
aponta para a insuficiência de diversos saberes nos campos disciplinares,
permite uma convivência criativa com as diferenças e legitima a negociação de
sujeitos concretos, conceitos e métodos entre as diferentes áreas do
conhecimento(9).
O trabalho interdisciplinar busca soluções compartilhadas para atender os
problemas das pessoas e das instituições através da possibilidade de atividades
conjuntas onde se respeitam as bases disciplinares específicas de cada
profissão(10).
Atender a família em saúde mental implica construir nos serviços de saúde
mental uma prática interdisciplinar, através da troca efetiva entre disciplinas
e profissionais na tentativa de estabelecer a colaboração entre sujeitos com o
objetivo de melhorar a vida das famílias dos portadores de sofrimento mental.
Esta investigação buscou apreender como os enfermeiros que atuam nos serviços
de saúde mental obtiveram conhecimentos sobre a família durante a sua formação
acadêmica; como visualizam a família em sua prática cotidiana e como deveria
ser a formação do novo profissional quando inserida a família no cenário da
assistência.
MÉTODO
Optou-se por estudo exploratório descritivo de natureza qualitativa por
entender que a compreensão de um processo ocorre mediante o que as pessoas
constroem como significado de suas ações, atitudes e crenças e descrevem em que
consistem estes mesmos significados(11).
Para a coleta de dados, utilizou-se uma entrevista semiestru-turada, com as
seguintes questões norteadoras: Conhecimentos adquiridos sobre a família
durante sua formação acadêmica e pós-graduação, o papel da família no cuidado
ao portador de sofrimento psíquico, facilidades e dificuldades na interação com
as famílias. Também ações de enfermagem desenvolvidas junto à família,
contribuição na formação do novo profissional enfocando a família e, ainda, se
buscaram os dados pessoais e situação profissional: idade, sexo, a instituição
que trabalha e o tempo, formação profissional: escola em que se formou e o
tempo de formado e, cursos de pós-graduação.
As entrevistas foram realizadas após a aprovação do projeto pelo Comitê de
Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu - Unesp, em parecer
ofício 368/2001. Os entrevistados foram informados a respeito da pesquisa para
então consentir em participar do mesmo.
Foram entrevistados seis enfermeiros dentre os quais três trabalhavam em um
hospital psiquiátrico público em unidade de tratamento de pacientes agudos,
duas trabalhavam em um centro de atenção psicossocial e uma trabalhava em
hospital dia de um hospital de ensino. Buscou-se conhecer a totalidade dos
enfermeiros que atuavam frente a portadores de transtorno mental na fase aguda
de adoecimento.
Para análise dos dados, foi utilizada a análise temática que é uma vertente da
analise de conteúdo(12). Inicialmente foram realizadas leituras sucessivas do
material coletado. Em um segundo momento, os achados foram ordenados visando
organizar as respostas através das diferenças e semelhanças para permitir o
agrupamento de idéias que se constituiu como categorias temáticas. Estas
categorias foram articuladas e relacionadas com os dados existentes na
literatura(12).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Dentre os entrevistados, todos são mulheres, com faixa etária entre 23 a 46
anos; o tempo de formado varia de 10 a um ano e sete meses, sendo que dois
enfermeiros cursaram a graduação em escolas particulares e apenas dois não
possuem especialização na área de Enfermagem Psiquiátrica. O tempo de trabalho
em saúde mental ou psiquiatria variou de quatro meses a nove anos. Nesta
investigação, não discriminamos o local de trabalho como forma de garantir o
anonimato nas falas dos entrevistados.
A análise temática permitiu construir as seguintes categorias: A formação
acadêmica e profissional - a ausência da temática família; a visão dos
enfermeiros sobre a família do portador de sofrimento psíquico e um novo olhar
sobre a família o papel do ensino, que apresentaremos a seguir.
A formação acadêmica e profissional a ausência da temática família.
Com relação aos conhecimentos adquiridos sobre a família durante o Curso de
Graduação em Enfermagem, os entrevistados relatam:
Na época que eu fazia faculdade eu não me lembro [...] de prática de
conhecimento incluindo a família, acho que a gente se preocupava mais
com o paciente [...]. Não incluindo a família. (E3)
[...] a família era para buscar a história e saber como o paciente se
comporta em casa como é que, que ela cuida, nada muito elaborado.
Eram coisas práticas de utilização da instituição mesmo, para fins de
diagnóstico. (E4)
[....] agora com relação às matérias curriculares mesmo, muito pouco
eu ouvi falar da família [...]. Ficou bem escasso. (E1)
Os entrevistados concluíram o curso de graduação em Enfermagem por diversas
faculdades, tanto particulares como públicas. Porém todos os enfermeiros
apontam para a insuficiência que a temática da família foi abordada durante o
curso de graduação. Em nenhuma disciplina priorizou-se o conteúdo sobre
família.
A família era visualizada como auxiliar nos processos diagnósticos através das
informações que forneciam aos alunos(3,6).
Os currículos de enfermagem tiveram um "olhar" voltado para o ensino das
especialidades atendendo a política vigente no país. O modelo preconizado era o
biomédico tendo como enfoque os aspectos centrados no hospital, a busca da cura
da doença enquanto terapêutica e o tratamento descontextualizado da vida do
paciente(13).
Os enfermeiros que cursaram Especialização em Enfermagem psiquiátrica referem
os conhecimentos adquiridos:
O curso de especialização abriu as portas para a família, para a
gente ter contato e tirar o fantasma de que a família era uma coisa
muito complicada, abriu o interesse da gente. (E2)
Na especialização, onde a gente começa a ver que para você começar a
trabalhar, para conhecer melhor o cliente, o paciente que está sob
seus cuidados, é interessante você incluir a família, nesse cuidado.
(E4)
Os enfermeiros colocam que a partir do curso de especialização houve uma
mudança no "olhar" a família. Esta é visualizada como aliada no tratamento,
permitindo que o profissional comece a percebê-la como parte integrante de um
projeto a ser construído contando com a sua participação.
O curso de especialização em enfermagem psiquiátrica constitui um processo que
visa ampliar os conhecimentos da área, preparando os profissionais para
transformar a prática(14). Espera-se que os enfermeiros especialistas busquem
construir uma nova forma de atender as famílias nos cenários em que estão
atuando.
A visão dos enfermeiros sobre a família do portador de sofrimento psíquico
Nos depoimentos, os enfermeiros falam sobre a importância da família no
tratamento:
[....] o paciente não é o único, ele pertence a uma família, a
história de vida dele é importante para a gente entender o que está
se passando, para a gente planejar o cuidado, até entender hábitos, o
dia a dia [...] com quem ele vive [...]. (E6)
[...] é entender que ela (família) também tem demandas e sofrimentos
[...]. Às vezes o hospital cuida do paciente e culpabiliza a família
ou fica do lado dela e culpa o paciente. E as famílias nos grupos
falaram que se sentiram abandonadas pelo serviço e eu acho que a
família precisa ser cuidada também. (E2)
Eu acho que se o adoecer tem implicação também no contexto familiar,
você vai ter que escutar o familiar e ver qual o entendimento que ele
tem do problema, quais os recursos que tem no enfrentamento. (E4)
Os enfermeiros percebem a importância da família no projeto terapêutico do
portador de transtorno mental e relatam que encontram dificuldade no
relacionamento de famílias de pacientes em condição crônica de vida:
A dificuldade maior é o desgaste que ela já vem sofrendo todos os
anos com o paciente [...], ele já internou uma cinquenta vezes, [...]
ele voltou, reinternou, tem muita essa distância do familiar porque o
paciente já internou muitas vezes. (E1)
[....] principalmente quando a família não foi trabalhada, pacientes
crônicos, de uma evolução crônica, estigmatizados, que perderam o
valor dentro da família, que reproduziu o sentimento de não dar
certo, [...] estão cristalizadas. (E4)
O enfermeiro constata que a família precisa estar inserida nos
projetos terapêuticos singulares dos portadores de sofrimento
psíquico como forma de garantir o tratamento no CAPS:
[...] a maioria dos casos que a gente vê lá no CAPS onde você deixou
a família do lado, são casos que não deram certo, enquanto o paciente
tiver nessa rede familiar, você tem que valorizar e tentar cuidar
mesmo dessa família. (E4)
Os enfermeiros relatam que as famílias se sentem desgastadas decorrentes das
várias internações dos pacientes no hospital psiquiátrico e indicam que os
familiares de portadores de evolução crônica são menos receptivas às novas
propostas de tratamento(15-16).
Os serviços substitutivos precisam trabalhar com a resistência dos familiares
de portadores de transtorno mental em condição crônica de vida, fato decorrente
da ausência de dispositivos institucionais durante décadas e que contavam como
único recurso a internação psiquiátrica.
A família deve ser estimulada a modificar sua forma de visualizar e cuidar do
portador de transtorno mental, visando melhorar a convivência e permitir sua
inserção no meio familiar. Os serviços de saúde mental têm um papel importante,
devendo proporcionar à família espaços de trocas, possibilitando que sejam
parceiros em uma nova forma de cuidado.
Os entrevistados referem que não realizam ações de enfermagem sistemáticas
voltadas para as necessidades das famílias que são assistidas nos serviços. As
atividades são esporádicas, de acordo com a carência e consistem basicamente no
hospital psiquiátrico em orientação sobre internação ou alta, uso de medicação
e nos serviços substitutivos à realização de visitas domiciliares. Trata-se de
atividades inerentes ao papel do enfermeiro que contribuem para o trabalho em
equipe.
A família se insere dentro de um contexto interdisciplinar que transcende o
papel de um único profissional; deve-se favorecer a negociação entre os
sujeitos envolvidos no processo terapêutico, portador, familiares e
profissionais do serviço com o objetivo de conhecer e intervir nos problemas
advindos da convivência com o sofrimento psíquico nos diversos cenários: casa,
serviço de saúde e comunidade(9-10).
Um novo olhar sobre a família o papel do ensino.
As enfermeiras que estão na prática apontam para a necessidade de incluir a
família no plano de cuidados:
Porque é difícil, mas a gente sabe da importância, convencendo o
familiar a participar do tratamento e uma coisa que a gente deveria
aprender também na graduação, como cuidar dos familiares? [...].
Porque muitas vezes a gente fecha os olhos e está tão evidente que o
familiar precisa conversar, precisa se abrir um pouco. Se o aluno
colocar na cabeça, que tudo que ele está fazendo na área de saúde vai
depender do que o familiar vai encontrar na casa dele, tudo facilita.
(E1)
[...] mas eu acho que deveria ter a prática e a orientação do
profissional como lidar, como fazer um grupo, como orientar essa
família, mas realmente na prática, com a família mesmo, escolher um
paciente, fazer um estudo daquele paciente e com a família
juntamente, mas na prática. (E5)
Quanto aos enfermeiros que estão atuando nos serviços de saúde mental, estes
precisam manter-se atualizados quanto às novas propostas de atuação frente à
família.
[...] é esse um campo novo que está se abrindo, já existem
enfermeiras interessadas em pesquisar família, então eu acho que a
gente tem que ir buscar mesmo e os alunos que estão se formando tem
que correr atrás. (E2)
Os entrevistados apontam para a importância de a família participar do
tratamento e indicam a necessidade deste conteúdo estar contemplado nas
disciplinas de graduação. Revisitando a temática a partir das produções
científicas dos enfermeiros pesquisadores, também se observa que indicam que
trabalhar com a família tem de ser um exercício prático, pois cada uma tem sua
forma singular de lidar com as situações que estão pautadas na sua organização,
crenças e na interação com o meio social(3).
Para ampliar as formas de atuação, é importante destacar que "aprender sobre a
família" implica buscar informações em outras áreas do conhecimento e promover
um diálogo constante com os profissionais que atuam nos serviços de saúde
(9,10).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta investigação buscou conhecer como os enfermeiros que atuam em saúde mental
obtiveram os conhecimentos durante a graduação e pós-graduação, como visualizam
a família no cenário de cuidado e quais as contribuições para a formação dos
futuros profissionais de enfermagem.
Durante a graduação, os enfermeiros obtiveram poucas informações sobre a
família, fato decorrente de como a formação acadêmica está pautada no modelo
biologicista onde há uma valorização do quadro clínico em detrimento dos
aspectos psicossociais envolvidos no cuidado.
No cenário do cuidado, a família é valorizada, pois depende dessa previdência a
possibilidade de uma nova forma de atender o portador de sofrimento psíquico.
Os enfermeiros não desenvolvem atividades regulares com a família, mas
compartilham com a equipe multiprofissional as informações que obtêm das
orientações e visitas domiciliares. Indicam a necessidade de inclusão da
temática nos cursos de graduação e apontam para a necessidade de atividades
práticas que possibilitem conhecer a família enquanto um sujeito com sua
intencionalidade própria.
A família no cenário de saúde mental tem um papel privilegiado nas
transformações socioculturais e seria de grande valia que os cursos de
graduação contemplassem esta temática nos conteúdos programáticos,
possibilitando que o tema ao ser estudado tenha um caráter interdisciplinar.