Ensino de enfermagem no Rio Grande do Sul apartir de 1950
INTRODUÇÃO
O Brasil, na década de 1950, tanto no plano sóciopolítico como econômico era
essencialmente agrícola, sendo que o setor agrário-exportador era o cafeeiro.
Nessa época, as endemias e as epidemias assolavam o País(1). O perfil
epidemiológico, com alta incidência de varíola, difteria, coqueluche, tétano,
sarampo e doenças sexualmente transmissíveis decorrente da falta de
profissionais capacitados, da precariedade do saneamento básico e da falta de
conhecimento da população, o que impedia a adesão à vacinação(2).
No início do Século XX, em cidades brasileiras portuárias, havia um descaso
político sobre o alto índice de mortalidade infantil e de doenças infecto-
contagiosas que matavam grande número de pessoas. Paralelamente, países que
comercializavam com o Brasil ameaçavam, constantemente, parar com as
exportações, caso persistissem as epidemias, as quais colocavam em risco as
tripulações que aportavam e a população de origem. Tal pressão gerou uma
mudança nas diretrizes sanitárias, que passaram a ser de cunho educativo e
preventivo(3).
Nesse contexto, foi criada a primeira Escola de Enfermagem, no Rio Grande do
Sul (RS), na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 4 de
dezembro de 1950 que esteve vinculada à Faculdade de Medicina, até 1968(4). Até
a constituição da primeira turma de Graduação em Enfermagem, nessa década, no
RS, havia visitadoras sanitárias, que atuavam na Saúde Pública e tinha como
objetivo, realizar visitas domiciliares, orientando as famílias sobre as
vacinas, princípios de higiene, bem como sobre medidas preventivas das doenças
transmissíveis, encaminhamento de gestantes à Unidade Sanitária para o
acompanhamento pré-natal, entre outros(2).
Um dos discursos da época era o enfoque ao ensino de Enfermagem para a Saúde
Pública, porém, não foi o que na prática se instituiu, pois ele iniciou
permeado pelo moralismo da época, centrado no conhecimento de patologias,
voltado para o atendimento hospitalar, curativo e subalterno ao trabalho e
modelo médico(5).
Desta forma, para ir em busca da visibilidade de saberes e práticas, encobertos
na trajetória do ensino de graduação em enfermagem, este estudo teve como
objetivo analisar como se deu o ensino, a partir das práticas discursivas,
presentes desde a primeira escola de enfermagem, no RS, e, por meio de
momentos, mesmo que dispersos, conhecer as várias interfaces do ensino que
perpassaram esses anos.
MÉTODO
Trata-se de um estudo qualitativa baseada na Arqueologia, Genealogia e na
História Oral. Pelo método arqueológico, as ordens de saber são encontradas na
formação discursiva de uma determinada época. Pelo método genealógico, pode-se
criticar e descrever a trajetória das transformações discursivas. A História
oral dispõe de um meio de transformar, tanto o seu conteúdo, quanto sua
finalidade, revelando novos campos de investigação.
O estudo envolveu três enfermeiras, com idade acima de 60 anos, que vivenciaram
esse período da história como graduandas de enfermagem e, após, como docentes
em um curso de graduação em enfermagem.
A entrevista narrativa foi uma das modalidades de coleta. Outras formas de
trilhar, em busca de novos enunciados, ocorreram por análise documental, a
partir da década de 1950, sempre baseada em questionamentos do presente(6).
Para análise documental, elegeu-se a análise de discurso(7).
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da PUCRS e, respeitando
os aspectos éticos, conforme Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde
(1996) foi apresentado a cada enfermeira o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido. Após a leitura, o termo foi assinado pela participante e pela
pesquisadora. As entrevistas foram gravadas e transcritas pela pesquisadora.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Geografia do ensino de enfermagem no Rio Grande do Sul: definindo rotas, formas
e produções presentes
Em 1938, no RS, a enfermeira Izaura Barbosa Limaª, que trabalhava no
Departamento Nacional de Saúde (RJ), foi convidada pelo Dr. José Bonifácio
Paranhos da Costa, Diretor do Departamento Estadual de Saúde, a organizar os
serviços de saúde do estado, principalmente na Área da Enfermagem, pois o
Estado apresentava como indicadores de saúde, alta incidência de morbidade e
mortalidade infantil, que poderiam ser erradicadas ou controladas por ações
imunizantes. Exemplos como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, onde já
existiam enfermeiras, encontravam resolutividade para esses problemas(2). Rosa-
dos-Ventos verbaliza esse momento:
[...] Izaura Barbosa Lima, veio para o RS e começou um curso para
preparar visitadoras sanitárias que eram uma espécie de auxiliares de
Enfermagem em Saúde Pública. Eu iniciei na Enfermagem como visitadora
sanitária. D. Isaura, que era de Saúde Pública, veio aqui para o
Estado implantar esse curso, pois o Estado, naquela época, vivia com
grandes epidemias e precisava de pessoas que fizessem visitas
domiciliares.
Brisa também expressa, em sua fala, a situação epidemiológica da época:
Concluí o ginásio naquela época e como não existia Escola de
Enfermagem no Estado, eu fui fazer o curso de visitadora sanitária.
[...] os indicadores de saúde eram péssimos, existia a maior
incidência de doenças venéreas, de tuberculose e de toxicoses, a
mortalidade infantil era altíssima.
A exemplo de outros estados, a visitadora sanitária surgiu por uma necessidade
específica de contribuir para a diminuição de elevada taxa de mortalidade e
epidemias que interferiam no desenvolvimento econômico do RS. Poder-se-ia ousar
inferir que ela chegou para ocupar um espaço de poder, mas, ao mesmo tempo, ou
paradoxalmente, um espaço de não poder, pois ela nasceu sob ordens médicas.
Rosa-dos-Ventos, ao verbalizar a necessidade de pessoas que fizessem visita
domiciliar traduziu um enunciado de que a solução para mudar o perfil
epidemiológico da época seria a de ter profissionais que desenvolvessem essa
atividade, que era exercida por médicos sanitaristas. Entretanto, os médicos
perceberam que não era sua função realizar a visita domiciliar, considerando-
a imprópria para a sua profissão. Alguns deles que fizeram estágio nos Estados
Unidos e lá conheceram a figura da enfermeira sanitarista, ao retornarem,
propuseram o treinamento de profissionais para exercer esse papel(1).
Quando eles buscaram a figura da enfermeira para exercer atividades que
julgavam ser impróprias para a sua profissão, traduziram, com essa atitude, um
saber sujeitado, o que para Foucault(8), estava incluído em uma série de
saberes desqualificados, ingênuos, hierarquicamente inferiores, abaixo do nível
do conhecimento ou da cientificidade requerida.
Para entender melhor por que o Curso Superior de Enfermagem chegou, nesse
período, para suprir uma necessidade importante na época, mas negada pela
equipe médica, e até mesmo desqualificada por ela, é preciso analisar
historicamente, conforme Foucault, como esses regimes de verdades foram
produzidos no interior de discursos e porque a prática discursiva, utilizada
nesse período, reflete, ainda hoje, a hegemonia médica nas relações de saberes.
"[...] não se busca aqui, o certo ou o errado, o bom ou o mau, mas entender
como o sujeito se constitui a si mesmo, por meio de práticas sociais que se
instituem como jogos de verdade"(9).
Ao se referir à questão de sujeito, Foucault buscou criar uma história de como
os seres humanos, em nossa cultura, tornam-se sujeitos. Nesse sentido, ele
estudou três modos de objetivação para essa transformação: a) as diferentes
formas de investigação que tentam atingir o estatuto de Ciência, ou seja, a
objetivação do sujeito produtivo, do sujeito que trabalha, o sujeito do
discurso na Filosofia, na Linguística ou o simples fato de o sujeito estar vivo
na História natural; b) a objetivação do sujeito nas práticas divisórias, em
que ele é dividido, no seu interior e em relação aos outros, exemplo, o louco e
o são, o doente e o sadio, o bom e o mau, entre outros. O modo pelo qual o ser
humano torna-se um sujeito como objeto para si mesmo, pelo qual ele é induzido
a observar-se, analisar-se, reconhecer-se como domínio do seu saber(10).
Neste sentido, se questiona se a Enfermagem, ao criar a sua própria história,
tornando-se sujeito de si mesma, não criou, em seu discurso, práticas
divisórias de que para a medicina caberia o saber e, para a enfermagem, o fazer
e, também, se nessa relação de saber/fazer, ambos ocuparam seus espaços e coube
à medicina definir quais os regimes de verdades que estariam presentes em cada
prática discursiva da enfermagem.
Além disso, ao buscar higienizar, ela cria uma área de saber e,
consequentemente, uma área de poder, mas que nasce sob a guarda médica. Assim,
ela se constitui paradoxalmente num espaço de relação de poder e de não poder.
É nesta perspectiva que, ao ir em busca de respostas ou rupturas se adota, como
rota, as décadas de 1930/1940, pois foi nesse período, que se iniciou a
transição da Enfermagem pré-profissional para a profissional, no RS. Com a
Escola de Enfermagem da UFRGS, em 1950, ela se profissionaliza.
Uma análise, a partir da década de 1930, quando o País buscou sair da visão
agrária exclusiva, mesmo que sucinta, pode auxiliar a melhor entender as
condições estratégicas desencadeadoras ou, pelo menos, provocadoras ou
mantenedoras de relações de poder e criação de relações de saber que se mantêm
e se perpetuam até os dias de hoje.
No governado de Flores da Cunha (1934-1937), o RS tinha uma economia
agropecuária e o charque era o principal produto de exportação. Na Agricultura,
o arroz e o trigo eram as culturas predominantes. Na implantação do Estado
Novo, no Brasil (1937-1945), o modelo econômico do RS continuava com uma
Economia agropecuária. Tanto no setor agrícola, como na pecuária, a remuneração
era muito baixa, favorecendo o êxodo rural. As cidades não absorviam todas as
pessoas vindas do campo, formando-se vilas marginais, nas periferias,
sobrevivendo seus habitantes, em um nível de subempregos(11).
Na década de 1940, a Economia ainda centrada na agropecuária estava em crise.
As charqueadas iniciaram o processo de frigorização. Na Agricultura, ao lado da
lavoura de arroz, cresceu a mecanização do trigo. Continuava, nesse período, o
crescimento do êxodo rural para as cidades, aumentando o número de
desempregados e vilas nas periferias(11).
As crises econômicas, na década de 1950, se refletiam na Área da Saúde. As
Santas Casas de Misericórdia eram voltadas exclusivamente para os pobres, os
excluídos. Os ricos tinham seu médico da família e cuidadores a domicílio e,
quando precisavam, iam se tratar no Rio de Janeiro, São Paulo, Europa ou nos
EUA(2).
Os postos de saúde da época eram voltados para a classe menos favorecida
economicamente, situação essa expressa na fala de Sol:
Eu me lembro que os nossos professores nos convidavam, como alunas,
para ir, inclusive na casa deles fazer a vacina nos seus filhos,
porque não havia nos consultórios e nem sempre nos postos e havia
preconceito de quem ia ao posto de saúde era o pobre. Então a Saúde
Pública era mais voltada para saneamento básico ou quando havia
campanhas, pois a vacina SABIN apareceu no ano em que me formei.
Nos dias atuais essas práticas pouco mudaram, ou seja, a grande parcela que
utiliza as Unidades Sanitárias são os menos favorecidos. São bens de serviço
que permanecem, embora todo um discurso, vinculado a segmentos privilegiados da
população. Antes, conforme referendou Sol, as crianças de classe social mais
favorecida recebiam sua vacina em casa. Com o passar dos tempos, clínicas
particulares de vacinação, assim como os consultórios particulares, começaram a
fazer parte do cenário de saúde. Hoje, parte da população, com condições
econômicas favoráveis, preferem pagar por uma vacina, a se expor à rotina de
uma Unidade Básica de Saúde.
Entretanto, grande parcela da população já percebe a saúde como um direito seu,
porém, essa apropriação ainda não conseguiu garantir a credibilidade do setor
público, fazendo com que quase todos os dissídios coletivos incluam em suas
cláusulas de trabalho convênios com empresas médicas, mantendo, assim, a
hegemonia corporativa do privado(12).
Ao serem as participantes questionadas sobre o porquê de fazerem o Curso de
Enfermagem, o desejo foi o mesmo para duas delas. Eram visitadoras sanitárias e
queriam cursar Enfermagem para seguir na profissão. Rosa-dos-Ventos, relata que
[...] em 1945, a enfermeira Izaura Barbosa Lima, que era de Saúde
Pública, veio para o RS e começou a preparar auxiliares de Saúde
Sanitária, que eram uma espécie de auxiliares de Enfermagem em saúde
pública. Foi neste período, que fui convidada por ela, para fazer o
Curso de Enfermagem e formei-me em 1948.
Já Brisa, recebeu o convite de um médico que lhe comunicou que a UFRGS abriria
o Curso de Enfermagem no RS.
[...] Estava me preparando para fazer Enfermagem no Rio, no 2º
semestre de 1949, quando apareceu Dr. Paulo Becker, que era
supervisor da Área da Saúde, do Departamento Estadual de Saúde. Dando
uma boa notícia, ele falou: 'A Sra. não quer fazer Enfermagem?' Eu
disse: 'estou me preparando para fazer no Rio, porque não existe na
Região Sul', e ele: 'eu vou criar em Porto Alegre, o professor
Guerra, Diretor da Medicina da UFRGS, já solicitou a criação de um
curso de Enfermagem, que funcionará a partir de 1950, já poderão se
inscrever os candidatos para esse ano'.
Além disso, Rosa-dos-Ventos verbalizou que, ao ser convidada a fazer o Curso de
Graduação em Enfermagem, o que mais contava na seleção era se a candidata vinha
de uma "boa família" e isso era levado muito em consideração, pois
[...] como o nome Enfermagem dava a idéia de que qualquer pessoa
podia cuidar de uma pessoa e [...] então selecionava muito.
O discurso presente na época, conforme ela referendou, era de que qualquer uma
que cuidava de doente no hospital era enfermeira, fazendo com que a luta
inicial fosse muito grande, pois,
[...] Não era reconhecida dentro do que se acreditava ser enfermeira;
entre ser enfermeira e faxineira era quase a mesma coisa. Era assim:
a pessoa ia fazer serviços no hospital e tanto cuidava do doente como
já cuidava da limpeza. (Rosa dos Ventos)
O processo de seleção das candidatas ao curso de enfermagem era muito severo. A
finalidade era mudar o quadro desfavorável perante a sociedade, pois o modelo
vigente, nessa época, traduzia uma enfermagem desqualificada e quando uma "moça
de boa família" decidia fazer o curso de Enfermagem, era questionada do porquê
não escolhia outra profissão. Rosa-dos-Ventos exemplifica essa questão ao
relatar uma situação vivenciada por ela:
Quando eu viajei, naquela época, de navio, meu pai e minha mãe tinham
uma pessoa da família que ia viajar de navio. Então, ele me
representou, viajou junto, foi no mesmo camarote e ele querendo saber
o que eu iria fazer, perguntou o que eu iria estudar. E eu disse: eu
vou fazer Enfermagem. 'O que menina? Enfermagem, que é isso, eu
pensei que tu fosses fazer Medicina ou Artes'.
Da mesma forma Sol quando questionada pelo seu pai sobre a escolha profissional
disse:
[...] pai, eu já sei o que vou ser, vou ser enfermeira! E o meu pai
disse assim: 'ah! Tu és muito inteligente, tu és muito culta, tens
que ser engenheira, 'e eu era boa de lábia, advogada'. Eu disse
'não', e ele falou: 'tu não queres ser professora?' E eu disse: 'sim
e quero ser enfermeira!'
A história tem nos mostrado, vários "modelos" que foram sendo (des)construídos
ao longo do tempo. Essas mudanças sempre estiveram, não somente ancoradas no
momento político e social em que o País se encontra, mas também vinculada a
processos de outras épocas que ainda nos influenciam, tais como a exigência com
relação ao corpo da enfermeira, da sua retidão moral, como reverberações,
ainda, do estilo nigthtingaleano.
Para tanto, a seleção das candidatas à escola deveria preencher características
como: renúncia, submissão, bondade, ternura, inocência, obediência, doçura,
entre outras. Esse ato de sujeição que as candidatas, assim como as alunas,
deveriam ter, representava regime de ordem, o poder disciplinar.
[...] Para fazer Enfermagem era preciso ser moça de boa família, era
levado muito em consideração isso. Existia rigidez e disciplina na
escola. Não só os professores, as aulas e as enfermeiras, mas tudo
era controlado (Rosa dos Ventos)
O discurso presente nas falas anteriores, defendido nesse período, mostra um
conceito de disciplina como uma arte de dominação do corpo, impondo uma relação
de docilidade-utilidade, submissão representada, na época, pela mulher- mãe,
mulher- filha, mulher-esposa, mulher-enfermeira(13). A educação tinha como base
o poder disciplinar, que, conforme o mesmo autor, objetiva produzir corpos
dóceis e produtivos, associado ao poder econômico e social. Esse discurso
também esteve presente na fala de Brisa ao dizer em relação à aparência de
alunos, ao comportamento,
[...] eles faziam uma boa seleção, era muito rigorosa. As alunas
assumiam a responsabilidade, tinham uma boa aparência, uma atitude
profissional, inclusive na economia hospitalar, de postura, de
disciplina. (Brisa)
Os sujeitos, naquele momento da história, foram escolhidos para atender a uma
relação de "docilidade-utilidade". Por mais que desejassem inovar, mudar e, com
certeza, houve avanços, mesmo que pequenos, havia um "biopoder" que,
sutilmente, controlava os mecanismos de autonomia do Curso de Enfermagem, que
não acreditavam que pudesse ser alvo de concorrência para a medicina.
O biopoder, para Foucault, tem função diferente do discipli-namento. No caso do
biopoder, para a enfermagem, está ligado aos grandes acontecimentos, fenômenos
de massa, de grupos, como por exemplo, as competências da enfermeira, como
sendo decisão de uma categoria. Entretanto, o disciplinamento, está diretamente
ligado ao individuo, ao controle minucioso do corpo, que se sujeita as forças
externas, impondo uma relação de docilidade-utilidade, chamada de disciplina.
A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos 'dóceis'. A
disciplina aumenta as forças (em termos econômicos de utilidade) e diminui
essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela
dissocia o poder do corpo; faz dele, por um lado, uma 'aptidão', uma
'capacidade' que ela procura aumentar; e inverte, por outro lado, a energia, a
potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita
(14).
Em 1952, Waleska Paixão, então Diretora da escola de Enfermagem Anna Nery, do
Rio de Janeiro, já questionava no artigo: A formação moral da estudante de
enfermagem, a rigidez nos internatos de Escolas de Enfermagem e o apego às
tradições:
Seria aconselhável revermos as bases de nossas idéias de autoridade, que muitas
vezes hipertrofia e, mesmo desvirtuada, impõe à mocidade independente de hoje
um fardo quase insuportável e dificulta as relações harmoniosas do corpo
docente e discente(15).
Várias foram as situações ocorridas, conforme é citado em documentos
históricos, em que as alunas eram punidas e até expulsas da escola por não
aceitarem o regime disciplinar inflexível(16), reforçado nas falas das
entrevistadas,
[...] tínhamos disciplina (Rosa-dos-Ventos)
[...] a exigência era muito grande; era muito rigoroso (Brisa);
[...] tinha uma cadência, realmente de disciplina, de moral, de
ética. Tínhamos que não deixar dúvida sobre a nossa atitude (Sol)
Isso serviu para atender a uma ordem instituída, de que para ser enfermeira era
preciso ter atitude de docilidade, de extrema responsabilidade para não
comprometer sua imagem que estava sendo construída, na sociedade.
Alguns desses enunciados se legitimaram e se tornaram verdades, pois ainda
estão incluídos nos nossos sistemas de avaliação da aluna, em campo de estágio,
condutas, enfatizando atitudes, sua forma de apresentação e, até mesmo, em
algumas situações, antes de iniciar estágio, as alunas recebem um modelo de
uniforme, inclusive, definindo o mesmo tipo de tecido. São a vigilância e o
controle submetendo corpos "dóceis", submissos às questões econômicas e de
utilidade(14).
Nesse sentido, o poder disciplinar exercia e ainda exerce um meio de
vigilância, cujo objetivo é gerir a vida das pessoas, controlá-las em suas
ações para torná-las dóceis, ou seja, pessoas economicamente produtivas e
socialmente úteis(13).
Hoje, o regime disciplinar já não é mais tão inflexível, a ponto de expulsão;
entretanto, as micropenalidades disciplinares continuam atuais. Isto está
presente em diferentes situações, muito sutis, como, em campo de estágio, pela
forma de olhar do professor, das pequenas e grandes humilhações frente ao
paciente, por parte do professor, o controle do uniforme, a forma de se
apresentar, entre outros(17).
Ao percorrer esse caminho, o ensino de Graduação em Enfermagem esteve também
alicerçado em mudanças curriculares que atenderam a regimes de verdades
instituídos por questões políticas, econômicas e sociais e, em cada uma dessas,
novos discursos foram produzidos.
Atualmente, nas Diretrizes Curriculares do Curso de Enferma-gem, vê-se um
grande desafio para o ensino, pois, ao mesmo tempo em que se precisa formar um
profissional generalista, também é necessário dar conta de uma necessidade
política e econômica de atender, com competência e visibilidade, às várias
especializações que cada vez mais surgem no cenário da Saúde(18).
Mas não podemos negar que não houve avanços, como abordou Rosa dos Ventos ao
dizer que o
[...] ensino de Enfermagem está evoluindo, está indo pra frente. A
enfermagem está sendo mais conhecida, principalmente os frutos da
Enfermagem na sociedade e tudo, estão aparecendo mais positivamente,
isso para nós, pra mim, que sou antiga é uma alegria, quantas coisas
que eu trabalhava lá na época, lutava por aquilo, não conseguia; hoje
já chega num lugar desses é uma coisa normal, é uma rotina. Que coisa
boa, isso é uma beleza.
Quando ela coloca, com seu olhar no presente, mas voltado ao passado, quer
dizer que muitas foram às escolhas, as lutas, na construção de outras práticas
sociais que fizeram produzir, além de novos conceitos, técnicas, o nascimento
de novos sujeitos, novas práticas de liberdade, produzindo, assim, novas
práticas de ensino(19).
Reportando ao ensino de décadas anteriores, entre 1940 e 1960, período em que
as três personagens foram alunas, percebe-se que os discursos permeados, nas
três falas, são iguais, exemplificado na fala de Sol:
Nesta época, as enfermeiras só ministravam as aulas específicas à
Enfermagem. Nós tínhamos professor de clínica de otorrino, inclusive
fazíamos estágio no consultório particular dele e também na
enfermaria, porque era assim, os professores eram também os
coordenadores e chefes das cadeiras nas enfermarias. Então, o
professor de oftalmo ou de otorrino, ele além de ser o coordenador, o
chefe daquela enfermaria, onde nós fazíamos estágio, ele também nos
levava para o consultório dele e vários professores (médicos) faziam
isso. Então a nossa interação durante o estágio era muito também com
esse professor, porque nós o víamos sempre. Então nós tínhamos
otorrino, uma disciplina, e a enfermagem otorrino era uma enfermeira
que dava. Outro exemplo era a Clínica Cirúrgica, que era o cirurgião
que dava e a Enfermagem Cirúrgica era a enfermeira que dava. As
mesmas aulas do professor, nós tínhamos com a Enfermagem.
Na continuidade desse discurso, Rosa dos Ventos que, além de compartilhar a
mesma experiência de Sol, colocou os diferentes saberes que permeavam à época,
"mais científico/menos científico":
Quanto ao ensino, naquela época, a parte de Enfermagem era dada por
enfermeira. Mas a parte mais científica era dada pelos médicos. Tinha
médico, por exemplo, de Anatomia, de Otorrinolaringologia, de
Oftalmologia. Hoje as enfermeiras é que fazem isso. As enfermeiras
davam a parte de Enfermagem, de técnicas de Enfermagem, de Enfermagem
Cirúrgica, Enfermagem Obstétrica, Enfermagem Pediátrica.
Brisa também trouxe a mesma experiência, ou seja, ela iniciou com um saber de
domínio médico, sendo aos poucos compartilhado com enfermeiras docentes, até
chegar aos tempos atuais, em que as disciplinas relacionadas à Enfermagem são
totalmente ministradas por enfermeiras. Entretanto, não rompemos ainda com o
modelo biologicista, em que as disciplinas das Ciências Biológicas são
totalmente ministradas por profissionais de outras Áreas.
[...] o currículo atual muito fragmentado e os alunos tendo flashes
das coisas. Eles não têm tempo de identificar o modelo que está sendo
aplicado, se é humanístico, holístico. Na nossa época, os estágios
eram mais prolongados e a gente partia da teoria de que conhecendo
bem o modelo, ele seria capaz de transferir para a prática. Esta
fragmentação não constrói o conhecimento e o corpo teórico para aluno
desenvolver na sua práxis.
Porém, é preciso, não transformar as Diretrizes Curriculares em um "novo
modelo" que apresenta "novos nomes", como eixos temáticos, núcleos conceituais,
mas que continua tendo, como pano de fundo, os mesmos modelos tradicionais de
uma Pedagogia Positivista(20). Nessa linha de pensamento, é importante refletir
sobre alguns questionamentos:
Será que, ao contarmos com o subsídio de muitas disciplinas, atuando
convergentemente, num processo transdisciplinar articulado, podemos dar novos
sentidos ao conhecimento? Que outras condições seriam necessárias para apoiar o
desenvolvimento de tais propostas(20)?
Além desses, acrescentam-se quais são as vozes visíveis e as invisíveis que
estão norteando as Diretrizes do Curso de Graduação em Enfermagem? Que
Enfermagem se está querendo tornar visível? Que outros saberes e poderes irão
se tramar? Quem se tornará invisível?
Outro ponto referendado por Sol e merecedor de análise é quanto à interação
professor/aluno, ao longo desses tempos:
No ensino de Enfermagem, entre ganhos e perdas, para mim prevalece
ganhos, muito fortes, porque os alunos estão, no meu ponto de vista,
gradativamente desenvolvendo a interação com o professor, claro que o
professor abre este espaço. Então, os recursos de ensino são muito
fortes, nós temos uma literatura muito forte e a cultura social mudou
muito, quebrou aquele distanciamento hierárquico entre o adulto e o
jovem.
Quando Sol nos coloca a relação aluno/professor de uma forma mais integradora,
nos tempos atuais, ela nos sinaliza a constituição de novos sujeitos e a
criação de novas práticas de liberdade. Esse olhar em que ela se fundamenta,
está alicerçado em sua trajetória, ao longo dos anos, como aluna e como docente
e que também esteve presente na fala das outras personagens.
Cita-se como exemplo uma experiência de Rosa dos Ventos, quando aluna de
Graduação em Enfermagem, em relação à rigidez e incompreensão da professora
sobre uma situação vivenciada por ela, na década de 1940:
Uma vez, eu estava trabalhando, de noite, em plantão. Era estágio,
foi o dia em que mais trabalhei na minha vida, pois comecei às 7h da
manhã, passei todo dia, toda noite e fui acabar à 1h da madrugada do
outro dia, à 1h não, foi às 4h, eu me lembro, que foram 21horas de
trabalho corrido. Naquele dia, nós tínhamos uma prova, de doenças
infecciosas e eu estava exausta. Cheguei lá com sono, exausta, sem
cabeça pra fazer uma prova. Então fui falar com a Diretora; havia
Diretora de ensino e Diretora de estágio. Expliquei para a Diretora
de estágio e ela disse: por causa disso não pode fazer a prova? Sim,
a Sra. tem condições. Eu podia ter estudado um pouquinho na véspera,
mas não tive condições, e ela não gostou e disse: 'No meu tempo, uma
coisa dessas não impedia de fazer a prova, mas hoje as senhoras são
muito mais [...] superficiais e pensou: mas, então ok! Precisamos
marcar com o professor outro dia para fazer a prova. Mas repara só a
rigidez, uma pessoa que trabalha 21h corrido [...]
Ao procurar analisar este discurso, reporta-se aos tempos atuais e se trazem
como exemplos alunos que trabalham como técnicos/auxiliares de enfermagem,
muitas vezes, em dois empregos para sustentar um curso particular.
Provavelmente também devem ter vivenciado essa situação. Será que, os docentes,
nos tempos atuais, estão abertos para essas questões, cada vez mais presentes
no meio acadêmico?
Essas práticas, assim como outras se traduzem, hoje, como um modo de
inquietação, o que se acredita ser salutar, pois são movimentos que fazem a
Enfermagem produzir novos saberes e encontrar estratégias para unir fios e
desunir outros tantos que, ao longo dessa trajetória, permaneceram ou desejaram
estar invisíveis(21).
Dessa forma, é preciso colocar visível o que ainda está oculto e, além disso, é
importante não absolutizar em um único discurso, pois, desta forma, se estará
fadada a não olhar além do que o texto quer dizer, não contribuindo assim, para
a (des)construção de múltiplos saberes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise desenvolvida nesse estudo aponta saberes que foram sendo constituídos
na trajetória da enfermeira, a partir da década de 1950, no RS, sejam eles
denominados de sujeitados, desqualificados, fragmentados, de lutas,
científicos, entre outros. Nessa rota, esses saberes estiveram ancorados na
construção históricos da profissão, imprimindo, no cotidiano atual, verdades
consagradas, impenetráveis e mantenedoras de múltiplos modos de constituição da
sua práxis profissional.
Nesses modos de constituição, o ensino de Graduação em Enfermagem, a partir da
primeira escola no RS, iniciou a sua rota, pautada no fazer da Área da
Enfermagem e no saber da Área médica. Aos poucos, foi incorporando práticas que
mudassem, em parte, esse fazer e saber, como a inclusão de somente enfermeiras
ministrando conteúdos na Área das Ciências da Enfermagem. Entretanto, na Área
das Ciências Biológicas, grande parte dos conteúdos ainda são ministrados por
outros profissionais da Saúde.
Ao reportar-se à constituição histórica do ensino, em relação aos jogos de
verdades, percebem-se avanços em alguns regimes de verdade, entre os quais se
poderia citar o currículo mais integrado que busca articular teoria/prática sem
fragmentação do saber, proporcionando ao aluno a tomada de decisão na resolução
de problemas, com os rigores técnicos e científicos e a relação ensino-
aprendizagem na qual professor e aluno sejam sujeitos desse processo.
Entretanto, ainda merece reflexão, a necessária superação de um ensino
fragmentado e em algumas situações, formador de corpos dóceis e disciplinados e
a fragilidade da integração às políticas de Saúde.
Ao continuar trilhando, nesse espaço geográfico, encontram-se brechas, fissuras
que possibilitam outros jogos de verdades, no universo acadêmico, entre eles,
mesmo que incipiente, a vivência de conceito ampliado de saúde e a articulação
de saberes nessa Área e o desenvolvimento da integralidade do cuidado como um
dos eixos norteadores nas práticas de saúde.
Ao apresentar um recorte do ensino de Enfermagem, a partir da década de 1950,
no RS, outros acontecimentos se entrelaçaram como redes de saberes e poderes,
(des)unindo fios e trazendo à luz outros enunciados que permaneceram à sombra.
Re-escrever o ensino de Enfermagem, permite reatualizar a prática, o
acontecimento, como uma das formas de constituir essas verdades que, como bem
disse Foucault, não estão visíveis, muito menos, provêm, a priori, da teoria
(8). Ela se faz a partir do modo como se tratam e se instituem esses objetos,
estratégias via-acontecimentos.