Ações intersetoriais para promoção da saúde na Estratégia Saúde da Família:
experiências, desafios e possibilidades
INTRODUÇÂO
Este estudo analisa as praticas intersetoriais para promoção da saúde na
Estratégia Saúde da Família (ESF), identificando as experiências, bem como os
fatores facilitadores e restritivos ao processo de construção de parcerias.
Trata-se de um trabalho de conclusão de curso que foi apresentado à Escola de
Enfermagem da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais núcleo Betim,
para obtenção do título de graduação em Enfermagem.
Sabe-se que a ESF propõe a prestação de uma assistência que vá além do corpo
biológico e que seja capaz de alcançar os seres humanos em sua complexidade e
integralidade(1). E, para tal, devem-se incluir ações que ultrapassem os muros
das unidades de saúde e atinja o contexto histórico, social, cultural, político
e econômico dos indivíduos ou coletivos, no sentido de promover a saúde dos
mesmos. A complexidade dessa proposta explicita a incapacidade do setor saúde
de atuar isoladamente sendo necessária a criação de parcerias entre diferentes
setores e segmentos sociais(2-3). Portanto, a Política Nacional de Promoção da
Saúde propõe que as intervenções em saúde sejam ampliadas, tomando como objeto
os problemas, necessidades, determinantes e condicionantes de saúde. Para tal,
a organização da atenção e do cuidado deve criar mecanismos de mobilização e
participação com os vários movimentos e grupos sociais, através da construção
de parcerias(4).
A intersetorialidade em saúde é compreendida neste estudo como uma relação
reconhecida entre uma ou várias partes do setor saúde com uma ou várias partes
de outro setor que se tenha formado para atuar em um tema visando alcançar
resultados de saúde de uma maneira mais efetiva, eficiente ou sustentável do
que poderia alcançar o setor saúde agindo por si só(5).
Partindo desse conceito, Wimmer e Figueiredo(6) afirmam que as micro e
macroestratégias intersetoriais construídas em articulação por Estado e
Sociedade Civil, contribuem significativamente para efetividade e eficiência
das ações de saúde. Portanto, acredita-se que tais articulações e arranjos
podem ocorrer através da construção de parcerias entre diferentes setores e
segmentos sociais como: educação, saúde, cultura, esporte, lazer, empresas
privadas, organizações não-governamentais (ONGs), fundações, entidades
religiosas, as três esferas de governo, organizações comunitárias, dentre
outros.
Procurou-se, por meio desta pesquisa, desvendar caminhos para o avanço das
propostas de ações intersetoriais na ESF, através do compartilhamento de
experiências, bem como da identificação de fatores facilitadores e restritivos
à operacionalização da interseto-rialidade em saúde. Ao disseminar o
conhecimento resultante da pesquisa pretende-se dar visibilidade às ações
intersetoriais na ESF, no intuito de apoiar, estimular e fortalecer a prática.
Acredita-se que o referido conhecimento possa contribuir para a expansão das
intervenções intersetoriais como estratégia de promoção da qualidade de vida e,
portanto, beneficiar à população, especialmente aos grupos vitimados por
iniquidades sociais.
MÉTODO
Trata-se de um estudo qualitativo. Foi definido como cenário do estudo o
serviço de atenção básica do município de Belo Horizonte. Dos 131 centros de
saúde do município foi escolhido um, localizado na regional Barreiro, para a
realização do trabalho de campo. O Centro de Saúde pesquisado conta com o
trabalho de quatro equipes de Saúde da Família, responsáveis por prestar
assistência a uma população de aproximadamente 15.267 pessoas que ocupa áreas
de muito elevado, elevado e médio risco sócio-econômico-sanitário.
As técnicas utilizadas para a coleta de dados foram entrevista individual com
roteiro semi-estruturado e observação. O período de coleta de dados estendeu-se
de outubro de 2007 a janeiro de 2008. A primeira entrevista foi respondida pelo
gerente do Centro de Saúde procurando-se identificar as experiências, desafios
e possibilidades da intersetorialidade, de acordo com o ponto de vista do
serviço de saúde local. Esta etapa do processo de coleta de dados também
possibilitou dar início à construção da rede de parcerias existentes naquele
contexto, a partir da citação dos equipamentos sociais conhecidos pelo gerente,
sendo esses equipamentos parceiros ou não do Centro de Saúde. Posteriormente, o
mesmo instrumento de coleta foi utilizado para entrevistar um agente
comunitário de saúde que atua em uma das equipes da ESF.
A partir das informações identificadas nas primeiras entrevistas, iniciou-se a
segunda etapa do processo de coleta de dados, a saber: entrevistas com os
informantes chave dos equipamentos sociais citados pelo serviço de saúde. Essa
etapa teve como objetivo dar continuidade à construção da rede de parcerias
existentes ou possíveis de existir; além de permitir a análise do tipo de
relação que o serviço tem estabelecido com os setores e equipamentos sociais,
bem como identificar os desafios e possibilidades da prática intersetorial,
segundo a opinião desses informantes.
Os equipamentos sociais que participaram do estudo foram: Núcleo de Ação Social
do bairro, uma creche vinculada à Prefeitura, duas escolas estaduais, um
representante das três igrejas católicas e um representante do Núcleo
Intersetorial Regional (NIR).
As questões éticas foram observadas em todas as etapas da pesquisa, atendendo a
resolução 196/96 do Conselho Nacional de Ética, sendo a pesquisa aprovada pelo
Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte.
Todas as entrevistas foram gravadas em MP3, após a leitura do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido e autorização por parte dos participantes.
Os dados empíricos foram analisados a partir de uma aproximação à Hermenêutica-
Dialética. A escolha do referido caminho de pensamento foi feita por considerar
as características do objeto deste estudo que se relaciona simultaneamente com
os processos sociais e com o processo saúde-doença. A Hermenêutica-Dialética
possibilita uma reflexão compreensiva e crítica da análise da realidade social.
Ela busca compreender os consensos e contradições do fenômeno estudado que
poderão ser explorados para a transformação de uma realidade historicamente
estabelecida(7).
Para operacionalizar a compreensão dos dados a partir da Hermenêutica-
Dialética, foram seguidas as etapas propostas por Minayo(7): ordenação dos
dados, classificação dos dados e análise final. A partir da leitura exaustiva
dos discursos transcritos foram destacadas as idéias centrais contidas nos
fragmentos de discurso dos sujeitos do estudo. Posteriormente, as idéia
centrais foram agrupadas por similitude e desse agrupamento emergiram quatro
categorias empíricas: A intersetorialidade no contexto da ESF; O impacto das
concepções dos profissionais no processo de construção da pratica
intersetorial; Da fragmentação à integração: rompendo o limite do olhar
setorial em busca da construção de um espaço comunicativo que possibilite a
resolução de problemas complexos e Desvendando caminhos para praticar a nova e
promissora estratégia intersetorial.
Na etapa de análise final, os discursos e as observações sobre o trabalho de
campo foram interpretados e confrontados com o referencial teórico consultado.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Mapeamento das relações intersetoriais no cenário do estudo: a rede como
possibilidade de articulação?
A partir das entrevistas e das observações feitas no cenário do estudo foi
possível mapear alguns setores, serviços e equipamentos sociais que constituem
uma rede complexa de parcerias existentes ou possíveis de existir. Para
facilitar a visualização do todo a referida rede é apresentada no esquema
demonstrado na Figura_1.
O gerente do Centro de Saúde informou que conta com os seguintes parceiros:
Escola Estadual JB, Creche Municipal, Grupo de Terceira Idade A, Igreja
Católica A, NAS (Núcleo de Ação Social), NIR (Núcleo Intersetorial Regional). O
agente comunitário de saúde entrevistado completou, informando que a Escola
Estadual MN, a Sociedade São Vicente de Paulo e a Igreja Católica B também são
parceiros.
De acordo com as entrevistas realizadas no Centro de Saúde, as escolas e a
creche são parceiras no tocante ao desenvolvimento de algumas práticas de
educação para saúde e empréstimo de área física para reuniões. O Informante da
Escola JB também citou o Centro de Saúde como um de seus parceiros e assinalou
outros três, a saber: Empresa de Telefonia, Secretaria de Educação e Indústria
V.M.
A Secretaria de Educação é parceira da escola no desenvolvimento do "Projeto
Abrindo Espaço". Este projeto oferece o espaço da escola, aos finais de semana,
para que a comunidade possa praticar atividades de cultura, esporte e lazer. A
Empresa de Telefonia oferece aos educandos cursos de música e dança. A empresa
V.M., em parceria com a escola, desenvolve um projeto de educação sócio-
ambiental, através de atividades como: espetáculos teatrais, oficinas, cursos
de capacitação, etc.
Ao ser entrevistada, a diretora pedagógica informou que a relação da Escola
D.V. com o Centro de Saúde se restringe ao encaminhamento de alunos que
precisam ser atendidos por um profissional de saúde. A mesma diretora revelou
que a escola compartilha de parcerias com: Indústrias V.M e V.A, Empresa N.F,
Centro Odontológico Privado e Igreja Católica C.
A indústria V.M. desenvolve na escola D.V o mesmo projeto sócio-ambiental já
mencionado. Aos alunos que gostam de esportes, a Indústria V.M oferece um
projeto em que o jovem participa de aulas de futebol, atividades de reforço
escolar e recebe apoio psicossocial. A Empresa N.F disponibiliza mudas de
árvores e ensina alunos do ensino fundamental a fazerem plantio e cultura de
espécies vegetais. O Centro Odontológico pertence a uma iniciativa privada que
desenvolve ações preventivas na escola, além de oferecer tratamento dentário de
baixo custo para os alunos. A parceria da escola com a igreja católica C
refere-se ao encaminhamento de alunos para serem atendidos pelos profissionais
de saúde que prestam trabalho voluntário à comunidade através da paróquia. Cabe
ressaltar que a Escola D.V. também corresponde a um espaço de esporte e lazer,
aberto aos finais de semana.
As Igrejas Católicas A e B são parceiras do Centro de Saúde somente no que se
refere ao empréstimo de área física para reuniões entre os trabalhadores e com
a comunidade. Existem várias Igrejas Evangélicas na região, porém nenhuma delas
foi citada como parceiras no desenvolvimento de trabalhos sociais e de promoção
da qualidade de vida.
A entrevista com o representante das Igrejas Católicas existentes na área de
abrangência do Centro de Saúde revelou que a Igreja C é um importante
equipamento social da região, visto que oferece à comunidade vários serviços
prestados por voluntários. Entretanto, de acordo com as informações obtidas
através das entrevistas, o Centro de Saúde não possui nenhum tipo de parceria
com a referida instituição religiosa. Em um dos salões da Igreja C funciona uma
biblioteca que foi fundada pela própria comunidade e atualmente é administrada
pela prefeitura municipal. Nesta biblioteca são desenvolvidos projetos de
cultura e lazer como, por exemplo, apresentações de Contadores de Estórias,
peças teatrais educativas, etc. Em parceria com a mesma Igreja, profissionais
voluntários prestam à comunidade atendimento médico, psicológico e
fonoaudiológico. Além disso, outros voluntários ministram aulas de educação
para jovens e adultos, aulas de instrumentos musicais e Yoga. Na igreja também
há o Grupo de Terceira Idade B, no qual são desenvolvidas, semanalmente,
atividades físicas, educativas e de lazer.
Junto ao Grupo de Terceira Idade A, a gerente do Centro de Saúde informa que,
esporadicamente, são realizas palestras para orientação e prevenção das doenças
crônico-degenerativas, além de serem feitos encaminhamentos de usuários do
serviço de saúde para o grupo, que se reúne semanalmente no salão da Igreja
Católica A.
A parceria do Centro de Saúde com o Núcleo de Ação Social do bairro (NAS)
ocorre através do apoio do serviço de saúde aos eventos que o núcleo desenvolve
na comunidade. O representante do NAS informou em sua entrevista que a
prefeitura é seu principal parceiro, visto que ela tem oferecido apoio à
maioria dos projetos sociais que o núcleo propõe. Os comerciantes e a Indústria
V.M também são referidos como parceiros do NAS por oferecerem recursos
materiais para subsidiar os eventos e projetos que são promovidos no bairro,
dentre os quais se destacam: um grupo de senhoras que produzem artesanato como
fonte de renda e um projeto que dá oportunidade a jovens músicos, para que
possam apresentar seus trabalhos à comunidade.
A Sociedade São Vicente de Paulo é acionada pelo Centro de Saúde nas situações
em que há necessidade de suprir carências alimentares de famílias que não estão
em condições de se manterem.
O Núcleo Intersetorial Regional (NIR) foi citado como parceiro do Centro de
Saúde por promover reuniões para discutir questões relacionadas a
intersetorialidade. O NIR foi criado no ano de 2004, em Belo Horizonte, pela
coordenação municipal do Programa Bolsa Família. Este núcleo tem como objetivo
desenvolver um trabalho intersetorial envolvendo educação, saúde e assistência
social com o objetivo de assistir às famílias que descumprem as
condicionalidade para o recebimento da Bolsa Família.
Nota-se que, no cenário do estudo, existem diferentes equipamentos sociais e
projetos importantes para promover a qualidade de vida da população. Mas, de
modo geral, a rede identificada não tem se articulado intersetorialmente,
caracteri-zando-se, portanto, como uma rede multisetorial. Esta constatação
fundamenta-se no fato de que a maioria das ações e serviços prestados são
planejados por um único setor ou equipamento social para serem aplicadas junto
a outros. No processo de planejamento e aplicação não tem sido feito uma
discussão horizontal acerca do que cada um tem a contribuir. Essa realidade
pode ser percebida mais claramente nos projetos que as indústrias desenvolvem
nas escolas, pois as atividades são idealizadas e operacionalizadas sem a
participação dos representantes da educação. No que se refere à Estratégia
Saúde da Família, as entrevistas demonstram que os representantes do Centro de
Saúde desconhecem a existência de equipamentos sociais que atuam junto à
comunidade, desenvolvendo projetos destinados à promoção da saúde. Essa
evidência remete a fragilidade ou inexistência de vínculo entre as equipes que
atuam na atenção primária e os equipamentos sociais, o que por sua vez
inviabiliza a aplicação da intersetorialidade.
A intersetorialidade no contexto da Estratégia Saúde da Família
Os discursos dos sujeitos participantes deste estudo demonstram o tipo de
relação que a ESF tem estabelecido com outros setores, serviços e equipamentos
sociais. Nota-se que existem algumas iniciativas, em prol da criação de
parcerias intersetoriais, destinadas a melhorar a resolutividade dos problemas
vividos pela população. Entretanto, as experiências identificadas são pontuais,
esporádicas e desprovidas de um planejamento sistemático.
Dentre as experiências encontradas neste estudo, as mais significativas foram
as que se referem à parceria Centro de Saúde - educação, sendo que a escola
mais próxima ao Centro de Saúde é a que compartilha de uma parceria mais
sólida. A escola é um cenário importante para a promoção da saúde porque nela
alunos, pais, professores e demais profissionais da educação permanecem e
convivem. Em resumo, a ampliação do impacto das ações de promoção da saúde nas
escolas precisa apoiar-se na soma das contribuições dos setores saúde e
educação e não no repasse de parte da execução das tarefas de um setor para
outro(8).
A partir das falas dos participantes da pesquisa foi possível perceber que a
relação do Centro de Saúde com equipamentos sociais englobam principalmente as
seguintes práticas: encaminhamento de usuários para consulta; promoção de
palestras de educação preventiva; assistência emergencial às carências
nutricionais.
Tanto os discursos quanto as observações em campo evidenciam que a relação do
Centro de Saúde com seus parceiros é, essencialmente, de prestação de serviços
de caráter assistencial-curativista ou, no máximo, preventivista. Nota-se que
as práticas de promoção da saúde são incipientes e que existe um limite no que
se refere ao reconhecimento do potencial da ESF para intervir nos determinantes
sociais do processo saúde-doença.
Cabe ressaltar que o informante do Centro de Saúde desconhece a existência de
equipamentos sociais, em sua área de abrangência, relacionados a esporte e
lazer, meio ambiente, trabalho e renda. Essa informação evidencia que a ESF não
tem utilizado todo o potencial da intersetorialidade para promover a saúde da
população, haja vista a fragilidade ou inexistência de parcerias importantes no
processo de enfrentamento dos determinantes da saúde. Essas constatações
apontam para o distanciamento existente entre a prática e um dos pressupostos
da atenção básica no SUS-BH que diz respeito à intersetorialidade.
Esse achado reforça as considerações de Costa et al(9) ao aforimar que um dos
desafios da Estratégia de Saúde da Família na reorientação do modelo
assistencial refere-se à confusão conceitual sobre intersetorialidade, pois
esta é tomada como responsabilidade individualizada a partir das demandas
individualizadas dos usuários. Desta forma, se identifica a intersetorialidade
como um processo de trabalho penoso e solitário. Entende-se, ainda, a
necessidade da criação de uma rede de apoio para a efetivação desse princípio e
acredita-se que é preciso começar a entender e escutar a opinião de outros
profissionais e setores para que o trabalho seja de fato precursor de processos
de mudanças no modelo assistencial.
O impacto das concepções dos profissionais no processo de construção da prática
intersetorial.
A formação dos profissionais e, conseqüentemente, suas concepções são
colocadas, pelos participantes do estudo, como fatores que influenciam e/ou
determinam as formas de intervenções em problemas vividos por indivíduos ou
coletivos.
A análise dos discursos permite captar que, para praticar a intersetorialidade,
os profissionais, cuja área de atuação relaciona-se aos contextos de vida e
saúde das pessoas, precisam ser capazes de perceberem tanto os limites
setoriais quanto os benefícios das ações integradas. Essa percepção é colocada
como um fator facilitador no processo de construção da intersetorialidade,
visto que impulsiona a busca por parcerias que, por sua vez, permitem dar
respostas mais efetivas e inovadoras aos complexos problemas sociais.
No que se refere especificamente ao setor saúde, é evidenciado que as
concepções de saúde e doença dos profissionais influenciam suas práticas. Se o
profissional orienta-se pelo paradigma biologicista, a medicalização será a
principal forma de atuação. Entretanto, se ele incorpora o paradigma da
produção social da saúde, o mesmo entende que o processo saúde-doença é
influenciado por múltiplos fatores que extrapolam o setor saúde, cabendo então,
além da Clínica, um trabalho intersetorial.
Assim, a ESF, como estruturante da atenção básica, traz aos trabalhadores de
saúde o desafio de rever suas praticas diante do paradigma de produção social
da saúde. Torna-se fundamental investir na formação de profissionais
capacitados para lidar com esse objeto ampliado, para aprimorar os instrumentos
de trabalho em saúde e buscar a intersetorialidade(10).
Sobre o profissional enfermeiro, os participantes do estudo o reconhecem como
uma "figura chave", embora esclareçam que seu potencial como articulador
intersetorial encontra-se limitada pelo excesso de atividades dentro do Centro
de Saúde. A referida limitação remete aos seguintes questionamentos: A grande
demanda da população por consultas e outros atendimentos intramuros do Centro
de Saúde poderiam estar relacionados à falta de ações destinadas à prevenção de
agravos e promoção da saúde? Qual o valor e prioridade que a prevenção e
promoção têm no planejamento da assistência prestada pela atenção básica?
Chiesa(10) contribui com essa discussão ao colocar que a ESF propõe ao
enfermeiro um trabalho que contemple a dupla dimensão individual/ coletivo do
processo saúde- doença, resgatando a possibilidade de uma atuação ampliada e
específica, no sentido da execução de ações cuja lógica central seja a
necessidade de saúde do usuário. O campo de promoção da saúde reitera essa
dupla dimensão do trabalho da enfermeira (individual/ coletivo) e propõe a
articulação intersetorial como uma habilidade necessária para o enfrentamento
dos problemas de saúde da população(11).
Inojosa (12) corrobora com essa análise ao expor que dentre as dificuldades
para a intersetorialidade, existe aquela relacionada à sobrecarga de
responsabilidades dentro da política setorial, a qual impede os profissionais
de olharem além do objeto específico de atuação.
Identificam-se, nos discursos dos participantes da pesquisa, relatos que
apontam para a importante influência de conhecimentos em Ciências Sociais na
formação acadêmica dos profissionais. Cabe ressaltar que a experiência
vivenciada, durante a coleta dos dados em campo, também permitiu perceber que
os sujeitos que têm uma formação em Ciências Sociais ou que não são graduados,
mas participam de discussões relacionadas a este campo de conhecimento,
demonstram maior facilidade de entender e apoiar a intersetorialidade.
Além de conhecimentos em ciências sociais, também é evidenciada a necessidade
de que haja uma formação mais humanista, de profissionais engajados, sensíveis
às situações de vulnerabilidade e que tenham responsabilidade social. Essa
compreensão vai ao encontro das proposições feitas por Wimmer e Figueiredo(6),
ao afirmarem que, além da capacidade científica, do domínio técnico e da ação
política, os profissionais que atuam na saúde precisam ter compromisso com o
desenvolvimento da comunidade fundamentado em certas atitudes como: amor,
escuta, afetividade, respeito, tolerância, abertura ao novo e à justiça.
Sugere-se que os processos de seleção de profissionais para atuação na atenção
básica incluam avaliações que permitam selecionar trabalhadores com perfil
condizente com os princípios do SUS e com os objetivos da ESF. Além disso, é de
suma importância, que as universidades comprometam-se em formar profissionais
que tenham princípios de cidadania e compromisso social.
Da fragmentação à integração: rompendo o limite do olhar setorial em busca da
construção de um espaço comunicativo que possibilite a resolução de problemas
complexos.
Os participantes da pesquisa discorrem sobre a estrutura organizacional
setorializada presente em nossa sociedade e apontam a comunicação como elemento
fundamental à operacionalização da pratica intersetorial. Nota-se que a saúde é
colocada como uma política que alcançou avanços no que se refere à atenção
integral, porém possui limitações para praticar a universalidade com equidade.
Essa proposição aponta para a possibilidade de o setor saúde ser um estimulador
da construção da intersetorialidade, visto que tem como um de seus princípios a
integralidade que, por sua vez, necessita da articulação de saberes, setores e
seguimentos sociais para ser alcançada.
Em se tratando da limitação em praticar a universalidade com equidade, na
perspectiva da ação intersetorial, a população exposta a maior vulnerabilidade
sócio-econômica tem necessidade ampliada de ter acesso a ações e serviços que
operem sobre os determinantes e condicionantes do processo saúde-adoecimento.
Assim, praticar universalidade sem negligenciar a equidade implica em colocar a
disposição de todos os usuários do SUS ações de promoção da saúde,
intensificando esta prática no contexto dos grupos populacionais mais vitimados
por iniqüidades sociais, o que demanda maior articulação. Essa análise vai ao
encontro da proposta do Programa BH Cidadania que busca promover a inclusão
social da população vulnerabilizada, através da acessibilidade aos bens e
serviços públicos. O referido programa, criado em Belo Horizonte no ano de
2002, busca implementar um modelo de gestão baseado na descentralização,
articulação e integração intersetorial, priorizando as áreas de maior
vulnerabilidade social(13).
Os relatos dos participantes demonstram, também, que a educação tem limitado
sua atuação a ministrar o conteúdo educacional curricular e apresenta
dificuldades de desenvolver atividades mais amplas, de promoção da qualidade de
vida dos educandos.
Nobre(14), ao refletir sobre o papel do setor saúde e os desafios da prática
intersetorial a partir da experiência no Programa de Prevenção e Erradicação do
Trabalho Infantil do Estado da Bahia, destaca a baixa adesão do sistema formal
de ensino ao programa. Em contrapartida, as duas escolas que participaram do
presente estudo compartilham de várias experiências de parcerias que
possibilitam a promoção da saúde biopsicosocial dos estudantes. Ante a essa
contradição, deve-se questionar se o exemplo das duas escolas é uma exceção
dentro do sistema educacional ou se as experiências inovadoras do setor
educação não estão sendo divulgadas.
A assistência social é apontada como uma política dotada de maior facilidade
para trabalhar com a intersetorialidade, devido ao seu objeto de estudo estar
relacionado às questões sociais em toda a sua complexidade.
Os discursos demonstram, ainda, que a falta de consenso entre os setores saúde,
educação e assistência social são entraves que se opõem ao desenvolvimento das
ações intersetoriais. Ckagnazaraff, Melo e Carvalho(15), ao analisarem a gestão
intersetorial no Programa BH Cidadania, corroboram essa discussão ao afirmarem
que a falta de consenso acerca do papel a ser cumprido pelos diferentes
funcionários e a incerteza sobre em que consiste o trabalho intersetorial são
fatores que dificultam a operacionalização da intersetorialidade. Os mesmos
autores expressam que deve haver também um nivelamento de conceitos, que são
bastante variados, gerando problemas na compreensão do papel e da função dos
funcionários(15).
É evidenciado, através dos discursos dos participantes, que a comunicação entre
os vários setores e segmentos sociais é essencial para vencer a fragmentação
setorial e dar respostas mais efetivas aos complexos problemas existentes em
nossa sociedade. As relações de poder existentes entre os diferentes campos de
conhecimentos e políticas também se apresentam como desafios a serem superados
para se alcançar o diálogo intersetorial.
Os achados remetem à necessidade de ampliação da discussão sobre a prática
intersetorial para que a proposta de articulação em rede de parcerias seja
compreendida e para que, a partir de então, sejam criadas estratégias que
viabilizem sua aplicação. De antemão é explicitada a necessidade da criação e
ampliação de espaços comunicativos, nos quais os diferentes setores, serviços e
equipamentos sociais possam dialogar, no sentido de construir consensos, bem
como identificar problemas e objetivos comuns para, então, planejar
intervenções mais efetivas.
Desvendando caminhos para praticar a nova e promissora estratégia intersetorial
O presente estudo revela que a intersetorialidade é uma estratégia em
construção, da qual os diferentes atores, setores e segmentos sociais ainda
estão se apropriando. É evidenciado, através dos discursos, que alguns atores
sociais são capazes de perceber a complexidade de certos problemas enfrentados
pela população e, por conseguinte, compreendem a necessidade de intervenções de
caráter intersetorial. Essa percepção das limitações do olhar setorial é o
primeiro passo para se alcançar a articulação intersetorial, visto que essa
nova maneira de trabalhar baseia-se no reconhecimento da necessidade de criar
novas alternativas de intervenção que dependem da articulação de outros
olhares, saberes e forças. Entretanto, existe uma limitação no que se refere à
operacionalização da intersetorialidade. Em suma, os sujeitos que atuam nos
distintos órgãos e instituições sociais reconhecem a demanda por ações
intersetoriais, mas ainda não sabem como praticá-la.
Os discursos revelam que têm prevalecido entre as políticas sociais relações de
disputa de poder; bem como de transferência de problemas e responsabilidades.
Mas, há entre os participantes o entendimento de que para que a
intersetorialidade efetivamente seja praticada, é mister que sejam construídas
relações de compartilhamento de responsabilidades, poderes e saberes. Os
participantes assinalam, ainda, que a construção da intersetorialidade
corresponde a um processo complexo que requer paciência, visto que demanda
transformações nos modos de pensar e agir historicamente estabelecidos. Neste
contexto amplo e complexo de construção, o início do diálogo intersetorial é
reconhecido como um importante avanço. Também é explicitado que, enquanto
processo gradual, a intersetorialidade encontra-se na fase de construção
coletiva de novos conceitos e novas metodologias que viabilizem sua aplicação.
Rocha(13) expõe que processos de mudança não são imediatos, não ocorrem em
curto espaço de tempo. O caminho em direção a intersetorialidade corresponde a
um processo progressivo de construção de valores, atitudes, comportamentos,
mecanismos e instrumentos, através dos quais é solidificado o modelo proposto.
As constatações que emergiram dos discursos aqui analisados demonstram que os
caminhos da prática intersetorial ainda estão sendo desvendados. Essa
proposição remete à necessidade de que esforços sejam somados continuamente, no
intuito de superar os desafios e incertezas que se opõem a essa nova proposta
de trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O paradigma da produção social da doença e o conceito de saúde como qualidade
de vida, deram origem ao desafio de se construir novas possibilidades de
trabalho para responder às necessidades de saúde da população. Enquanto
estratégia destinada a reorientar o modelo assistência, através da prestação de
uma assistência pautada nos princípios da universalidade, equidade,
integralidade e participação social, a Estratégia Saúde da Família configura-se
como espaço privilegiado para o desenvolvimento de práticas promotoras de
saúde. Sendo assim, discutir sobre as ações intersetoriais para promoção da
saúde no contexto da ESF, constituiu objeto de estudo necessário na
identificação dos desafios e das possibilidades existentes no processo de
trabalho da atenção básica.
Apreendeu-se com os resultados da pesquisa que, de modo geral, existe um
consenso acerca da necessidade e importância da intersetorialidade para
responder aos problemas enfrentados pela população. Entretanto, na prática,
percebe-se que a intersetorialidade ainda é um objetivo a ser alcançado.
Fica evidenciado que, dentro de um território, existem várias possibilidades de
articulação em rede, mas, para que o serviço de saúde local possa efetivamente
construir parcerias intersetoriais é necessário ir além da negociação de
tarefas e da transferência de responsabilidades. É essencial construir espaços
comunicativos que permitam a definição de conceitos e objetivos comuns
viabilizando, assim, o planejamento participativo das ações que demandam
contribuições de outras entidades.
É enfática a referência à necessidade de comunicação entre os diferentes
setores, serviços e equipamentos sociais. Nesse sentido, explicita-se a
complexidades da operacionalização da intersetorialidade, pois sua aplicação
implica a superação das hierarquias institucionais e das relações de poder
existentes entre as corporações profissionais, setores, políticas e segmentos
sociais.
Ressalta-se que as concepções dos profissionais das diversas áreas do
conhecimento influenciam suas práticas podendo contribuir ou não com a mudança
do modelo hegemonicamente setorializado para o modelo de articulação
intersetorial. Desse modo, um dos desafios para a intersetorialidade é a
formação de profissionais que sejam capazes de perceber a complexidade dos
problemas manifestos na sociedade e, por conseguinte, que reconheçam a
necessidade de ações intersetoriais para intervir em tais problemas. Essa
proposição aponta para o importante papel das universidades e evidencia que o
modelo de ensino deve ampliar sua abordagem de modo a contribuir com a formação
de sujeitos críticos e reflexivos, com potencial para intervir na realidade
social.
O presente estudo também permitiu compreender que as ações intersetoriais em
saúde são reconhecidas como uma nova proposta, da qual os sujeitos envolvidos
ainda estão se apropriando. Portanto, ainda há de se superar os desafios e
incertezas que se opõem ao novo, dentre os quis destacam-se a definição de
metodologias e meios que viabilizem a prática intersetorial. Nesse processo,
árduo e conflitante de construção da intersetorialidade, são considerados como
avanços, o reconhecimento tanto das limitações setoriais, quanto da necessidade
de articulação entre os setores, políticas, entidades não-governamentais,
organizações populares, iniciativa privada, etc.
Finalmente, embora a ESF seja um espaço privilegiado para o desenvolvimento de
ações intersetoriais para a promoção da saúde, essas práticas ainda são pouco
evidentes. Enquanto proposta inovadora em processo de construção, a
intersetorialidade já alcançou alguns avanços, mas muitos desafios ainda estão
sendo enfrentados para operacionalizar essa estratégia que contraria interesses
hegemônicos.