Relações de trabalho em equipes interdisciplinares: contribuições para novas
formas de organização do trabalho em saúde
INTRODUÇÃO
A extrema fragmentação do conhecimento, resultado do avanço e isolamento das
disciplinas, bem como de interesses corporativos, tem demonstrado a
insuficiência desta racionalidade e colocado a interdisciplinaridade no centro
das discussões acerca do desenvolvimento da ciência e das práticas sanitárias.
No campo da saúde esta discussão tem aberto, nas últimas décadas, um amplo
espaço de debates, tanto no que diz respeito à produção acadêmica quanto à
prestação dos serviços de saúde. Embora se fale incessantemente da
interdisciplinaridade, muitas são as dificuldades de seu exercício na prática
dos serviços de saúde, o que nos fez investigar o modo como acontece a
interdisciplinaridade em duas equipes de saúde, uma delas em um serviço de
atenção ao idoso, e outra ao doente em cuidados paliativos.
Na investigação realizada mereceu importante destaque a natureza das relações
de trabalho nestas equipes. O trabalho interdisciplinar pressupõe novas formas
de relacionamento, tanto no que diz respeito à hierarquia institucional, à
gestão, à divisão e à organização do trabalho, quanto no que diz respeito às
relações que os/as trabalhadores/as estabelecem entre si e com os usuários do
serviço. Essas mudanças se distanciam da fragmentação e hierarquização
taylorista-fordista e se aproximam das chamadas "novas formas de organização do
trabalho" (NFOT).
A influência do modelo fragmentado de organização do trabalho, em que cada
profissional realiza parcelas do trabalho sem uma integração com as demais
áreas envolvidas, tem sido apontada como uma das razões que dificultam a
realização de um trabalho em saúde mais integrador e de melhor qualidade, tanto
na perspectiva daqueles que o realizam como para aqueles que dele usufruem.
Considerando-se a realidade e as especificidades do trabalho em saúde, que é
desenvolvido por seres humanos para outros seres humanos, cuja complexidade
ultrapassa os saberes de uma única profissão, é que se tem defendido que o
trabalho em saúde deve envolver práticas que se identificam com o que tem sido
classificado como multi, pluri, inter e transdisciplinaridade, por uma
necessidade própria da evolução do conhecimento e da complexidade que vão
assumindo os problemas de saúde na realidade atual(1-2).
A perspectiva interdisciplinar pode possibilitar o exercício de um trabalho
mais integrador e articulado, tanto no que diz respeito à compreensão dos/as
trabalhadores/as sobre o seu próprio trabalho, como no que diz respeito à
qualidade do resultado do trabalho(2- 5).
Na análise das relações de trabalho nas equipes interdisciplinares, considera-
se o modo como se desenvolve o processo de trabalho e a compreensão acerca dos
seus componentes (finalidade, objeto, instrumentos, força de trabalho) com
vistas à obtenção de um resultado.
A finalidade do processo de trabalho em saúde é, por meio de alguma ação
terapêutica, co-produzir saúde e o que define o trabalho em saúde é a
necessidade colocada pelo sujeito que busca estes serviços. No entanto, a
necessidade não se constitui unilateralmente. No caso do trabalho em saúde
estão envolvidas as necessidades dos/as trabalhadores/as, dos usuários do
serviço "(as quais devem ter precedência sobre as demais) e as da instituição"
(4).
No exercício do trabalho, os/as profissionais de saúde compartilham um mesmo
objeto - o ser humano. Seu processo de vida envolve diversas dimensões
complementares (biológica, psicológica, social, cultural, ética e política). Em
seu percurso de vida, por vezes, o ser humano, necessita da intervenção dos/as
profissionais e serviços de saúde. Neste momento, ao relacionar-se com os/as
profissionais de saúde o usuário "expõe suas fragilidades e se expõe aos
profissionais, que para facilitar este processo precisam aliar à competência
técnica a perspectiva humanística"(4).
Para realizar o trabalho, as ações terapêuticas, preventivas ou de promoção da
saúde, os/as profissionais de saúde usam múltiplos instrumentos de trabalho.
Estes instrumentos incluem "também as condutas que representam o nível técnico
do conhecimento que é o saber de saúde"(2).
"O ato institucional em saúde envolve um trabalho do tipo profissional,
realizado por trabalhadores que dominam os conhecimentos e técnicas especiais
para assistir o ser humano ou grupos com problemas de saúde ou risco de
adoecer". A demanda por cuidados de saúde, envolve múltiplos saberes e fazeres
que dizem respeito aos conhecimentos e práticas de diversos/as profissionais:
médicos/as de diversas especialidades, enfermeiros/as, técnicos e auxiliares de
enfermagem, nutricionistas, farmacêuticos/as, bioquímicos/as, assistentes
sociais, psicólogos/as e outros, dependendo da complexidade dos serviços
prestados(2).
Nesta perspectiva, a prática interdisciplinar coloca-se como potencializadora
da integração que permitiria uma compreensão ampliada do objeto de trabalho em
saúde, pela interação entre os profissionais e a articulação entre os diversos
saberes e fazeres presentes no trabalho em saúde, possibilitando deste modo
outras formas de relação entre os sujeitos envolvidos no processo. A
perspectiva interdisciplinar, no trabalho em saúde, identifica-se com alguns
aspectos que vem sendo tratados como Novas Formas de Organização do Trabalho
(NFOT), contribuindo para se pensar as características de um novo modo/
paradigma de organização do trabalho em saúde(4,6-7).
METODOLOGIA
Este é um estudo de natureza qualitativa e o suporte para a investigação, para
a coleta e análise dos dados vêm do materialismo histórico e dialético e das
contribuições oriundas dos estudos acerca da interdisciplinaridade e da
complexidade, especialmente os trabalhos de Edgar Morin.
A investigação foi desenvolvida em duas instituições hospitalares públicas do
Sul do Brasil que realizam experiências interdisciplinares na atenção à saúde,
e que se destacam na realidade estadual e nacional como referências em suas
áreas. Uma delas caracteriza-se como um centro de estudos e pesquisas
oncológicas, de média complexidade, e a outra, como um hospital escola, também,
de média complexidade.
A definição das equipes interdisciplinares e a escolha dos sujeitos se deram
com base na história e reconhecimento destas experiências no cenário do
trabalho em saúde, na composição multiprofissional das equipes e no aceite da
instituição e dos/as profissionais para participação na pesquisa. Participaram
do estudo 19 representantes das diferentes categorias profissionais que
integram as equipes estudadas (assistente social, farmacêutico, fisioterapeuta,
terapeuta ocupacional, nutricionista, psicólogo, técnicos de enfermagem,
enfermeiros, médicos) e quatro usuários e dois familiares assistidos por estes/
as profissionais.
Os dados foram coletados articulando duas técnicas: as entrevistas semi-
estruturadas com os/as profissionais/as e usuários/familiares assistidos/as por
estes/as profissionais e a observação sistemática das atividades realizadas
pelas equipes.
O roteiro de entrevistas elaborado para utilização com os usuários foi adaptado
quando as mesmas foram realizadas com familiares, bem como adequadas à
realidade e condição de saúde de cada entrevistado/a no momento de realização.
As entrevistas foram gravadas com consentimento do/a entrevistado/a. No caso
dos usuários e familiares, os dados foram confirmados logo após as entrevistas,
considerando-se as dificuldades para retorná-las aos/as mesmos/as. As
entrevistas realizadas com os/as profissionais foram transcritas e
posteriormente apresentadas aos mesmos/as para validação dos dados.
A observação sistemática permeou todo o processo de investigação e foi
realizada em: reuniões formais e informais das equipes, reuniões com usuário e
com familiares, sala de espera e atividades de educação em saúde, reuniões com
familiares de portadores/as de Alzheimer, atividades de educação permanente,
visita domiciliar, atendimento ambulatorial, bem como durante a realização de
procedimentos terapêuticos com usuários internados.
A análise dos dados foi feita a partir de categorias previamente definidas
sendo que os dados obtidos nas entrevistas com os/as profissionais e com os
usuários e familiares e na observação sistemática foram, em um primeiro
momento, analisados separadamente. O material foi organizado de modo a
contemplar a totalidade de comunicações dos atores sociais, estabelecendo-se, a
partir daí, conjuntos homogêneos de comunicações ou unidades temáticas. Foram
construídos dois corpos de comunicações - as dos/as profissionais de saúde e a
dos usuários/familiares do serviço, uma vez que estes grupos percebem e
vivenciam o fenômeno a partir de pontos de vistas muitas vezes diferentes.
Realizou-se a leitura transversal destas comunicações (tanto da entrevistas
como das observações), agrupando-as por temas e o material proveniente do
estudo documental auxiliou na compreensão de determinadas situações presentes
na observação e nas entrevistas. As categorias centrais foram reagrupadas
chegando-se a definição das categorias finais de análise.
O estudo seguiu as diretrizes e normas que regulamentam a pesquisa envolvendo
seres humanos contidos na resolução de Helsinque (1989) que fundamentam a
RESOLUÇÃO 196/96 do CNS/MS. Os sujeitos foram identificados pela letra inicial
da profissão, ou combinação de letras, quando necessário, seguidas de uma
numeração quando da existência de mais de um/a profissional de uma mesma
categoria funcional e da sigla da equipe em que atua (Equipe de Cuidados
Paliativos - ECP e Equipe Gerontológica - EG). Os usuários e familiares foram
identificados da mesma forma, com as siglas us para os usuários e fm para os
familiares.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Relações nas equipes interdisciplinares e as possibilidades de integração
profissional e articulação dos saberes e fazeres
Para os/as integrantes do estudo a atuação interdisciplinar coloca a
necessidade de relações com base na comunicação autêntica, no respeito ao outro
e ao seu conhecimento, no acolhimento das diferenças. Acrescentam, ainda, a
necessidade das relações sustentarem-se na cooperação e na troca entre as
disciplinas, na interação entre os profissionais, na articulação dos saberes e
fazeres, na horizontalização das relações e na participação na tomada de
decisões com base na construção de espaços para a elaboração e expressão de
subjetividades.
Ao falar da interação, articulação e poder nas relações profissionais, os
integrantes do estudo referem que as relações de trabalho são satisfatórias
constituindo-se em um dos fatores que mais motivam a sua permanência nas
equipes estudadas, especialmente quando comparadas às relações vivenciadas em
outros espaços e equipes. Há nas equipes preocupação com o acolhimento dos/das
profissionais que chegam para integrar o grupo, em valorizar a criatividade,
bem como o respeito aos componentes das equipes.
Quando entrei eu me assustei porque nunca tinha visto um grupo assim.
Isso é tudo muito bonitinho nos livros, em sala de aula. Mas logo que
cheguei: nossa! Mesmo sem me conhecerem, eles já tinham ficado
animados de ter um fisioterapeuta na equipe. Perguntaram se eu tinha
gostado, passavam os pacientes. Isso não tinha acontecido em nenhum
outro lugar. (fs/ECP)
No entanto as relações profissionais modificam-se a cada momento, definindo a
maior ou menor abertura para a interação entre os/as profissionais. Os
problemas que surgem na realização do trabalho afetam as relações entre os/as
integrantes das equipes e entre eles/as e os usuários e familiares.
Para os/as integrantes da equipe de cuidados paliativos as maiores dificuldades
nas relações de trabalho são resultantes de conflitos profissionais,
especialmente entre a área médica e de enfermagem. As relações entre essas
categorias profissionais afetam significati-vamente as relações grupais e os/as
profissionais das demais categorias sentem-se incomodados/as com estes
problemas, pois interferem na equipe como um todo. Ainda assim para o grupo, há
espaço para a conversação, para trabalhar as diferenças e é nestes espaços que
os conflitos podem ser resolvidos.
O problema maior é dos médicos com a enfermagem. [...] desestrutura
os outros. Derrubou uma pedrinha derruba todas. Eles envolvem todo
mundo. Mexe com a equipe. (to/ECP)
Essa dificuldade das relações entre enfermagem e medicina não foram relatadas
na equipe gerontológica.
Para os/as profissionais médicos/as e enfermeiros/as, o conflito entre as duas
categorias tem relação direta com a dependência existente no processo de
trabalho da medicina e da enfermagem. Da mesma forma como se colocam como os
protagonistas dos maiores conflitos na equipe, estes/as profissionais percebem-
se como os/as maiores parceiros/as no trabalho. Falando das razões que levam ao
conflito entre as categorias, os/as integrantes do estudo relatam que estes são
frutos de discordâncias sobre tratamentos e condutas assistenciais,
principalmente. Para os/as profissionais da medicina, os/as enfermeiros/as
permanecem mais tempo com os doentes e familiares, algumas vezes envolvem-se
com problemas e situações pessoais e familiares e isso interfere no trabalho.
O nosso problema principal é com a enfermagem. Nós médicos [...]
sabemos exatamente o que queremos. É só isso, cuidados paliativos. [A
enfermagem] está tendendo muito para o assistencialismo. Falta
solidez no conhecimento. Uma certeza de que você está fazendo aquilo
por conhecimento técnico, [que] tem todo um arcabouço de teorias que
te sustentam. Nós não somos uma instituição de caridade. Você está
lidando com gente que sofre de uma doença que é traumatizante, é
estigmatizante, potencialmente mortal, assustadora e tudo mais que
quiser falar. Tem que ter o entendimento disso e atuar com especial
carinho com essas pessoas, [...] mas carinho [...] como com qualquer
pessoa que está doente. É uma coisa natural que as pessoas saibam
senão ela nem deve atuar na área da saúde. Só que isso acaba sendo o
que predomina. Acaba se envolvendo demais com o paciente, entrando
demais na malha das relações deles [...] com coisas que não tem nada
a ver com o ambiente do hospital. (m2/ECP)
Para os/as profissionais enfermeiros/as os conflitos existentes entre a
categoria médica e a enfermagem têm raízes culturais e históricas, acontecem
muito em função da formação profissional diferenciada e do peso dado
historicamente às condutas médicas na assistência ao doente. Destaca-se também
o corporativismo destas categorias no trabalho em saúde e a defesa que cada uma
faz de suas posições e profissões.
Muito. Até por causa da história. E muito mais até com o médico e a
enfermeira. Não que a gente não tenha conhecimento como o médico.
Temos. A gente tem toda uma formação acadêmica muito boa. Mas só que
culturalmente ele é o doutor. Existem umas animosidades. Com todo
mundo, como qualquer outra profissão. Todo relacionamento tem que ter
umas animosidades de vez em quanto, até para dar umas sacudidas.
Dependendo dos interesses particulares de cada um é bem difícil. Nós
temos interesse de que sempre a enfermagem se dê bem. Vamos defender
o nosso grupo. E a equipe médica também [faz o mesmo] (e3/ECP)
A atuação em equipe, para se dizer interdisciplinar precisa aproximar-se da
prática do trabalho desenvolvido em uma "equipe integração" no qual se
produziriam relações com base na interação dos agentes e na articulação dos
saberes e fazeres. Interação é entendida como uma prática comunicativa que se
caracteriza pela busca de consensos entre os/as envolvidos/as no processo de
trabalho em saúde, de modo que estes/as possam argumentar, reciprocamente, em
relação ao trabalho cotidianamente executado e construir um projeto comum. A
articulação representaria as conexões entre os diferentes saberes e fazeres
envolvidos no cuidado à saúde, conexões que se dão de modo ativo e consciente,
sendo evidenciadas pelo agir dos/das profissionais(8).
A articulação e a interação dependem do modo de produção do trabalho em saúde,
de como os/as trabalhadores/as gerenciam e aplicam os conhecimentos e técnicas
próprias de cada profissão na produção das atividades necessárias à atenção em
saúde, de como se estabelece o encontro entre os/as profissionais e destes/as
com os usuários, dos consensos e conexões produzidas neste encontro.
A articulação e a interação na equipe interdisciplinar acontecem considerando a
assimetria das relações sejam elas entre os/as trabalhadores/as ou entre
trabalhador/a e usuário. No âmbito profissional estão envolvidos conhecimentos
e práticas distintas, reconhecidas e valorizadas diferentemente no conjunto do
trabalho em saúde. Nesta perspectiva ouvir o/a outro/a, considerar cada
contribuição na definição do trabalho a ser realizado é parte da constituição
de um trabalho de natureza interdisciplinar.
Acolhimento, vínculo e ampliação de acesso: características das relações
profissionais/usuários nas práticas interdisciplinares
No que se refere às relações entre profissionais/usuários e familiares, a
atuação interdisciplinar propicia um outro modo de relacionar-se com o usuário/
familiar, estimulando a percepção e a atenção às suas necessidades, além
daquelas relacionadas à doença ou ao motivo que os levou a buscar os serviços
de saúde.
Os usuários dos serviços prestados pelas equipes estudadas destacam o melhor
atendimento às suas necessidades e o recebimento de uma atenção mais
humanizada. Neste processo mencionam a proximidade que conseguem estabelecer
com algumas categorias profissionais, a confiança que depositam no serviço e
nos/as profissionais e a atuação diferenciada dos/as profissionais, pela
comunicação e informações que são prestadas.
Os outros lugares... [...] Eu usei só especialidade, porque lá é
assim, você precisa operar o tórax tu vais pro tórax; pulmão, tu vais
para o pulmão. Não tem envolvimento da oncologia nos outros
hospitais. [Aqui] o dia-a-dia deles é uma preparação, enquanto que
nos outros hospitais você é mais uma. Eles não têm preparo. A única
coisa que você percebe é que quando sabem que você é uma paciente
oncológica eles te olham como um condenado a morte já. [Os
profissionais] não têm informações mais modernas sobre o que está
acontecendo na área da oncologia. Então você causa um pouco de
lástima. Mas também depende, porque se for um lugar como o Hospital X
que é muito grande... Eu fiquei 10 dias, mas vou te contar, foram 10
dias de terror. Lá eles já estão no piloto automático. Tanto faz! Lá
eu não senti nenhuma sensibilização em relação ao tipo da doença. Que
mais eu posso dizer. Sinceramente até as mulheres da limpeza são
agradáveis, dá para pedir as coisas. (us1/ECP)
Na fala dos/as integrantes das equipes interdisciplinares o vínculo é percebido
pela confiança depositada pelos usuários nos profissionais, na equipe e na
atenção recebida, destacando-se o processo de acolhimento e de escuta de suas
necessidades.
É a confiança deles. Eles confiam. Gostam do trabalho que a gente
faz. E eu acho que a gente faz um bom trabalho. Não vou dizer pra ti
que é o melhor trabalho do mundo, mas fazemos um trabalho legal.
[...] Conseguimos passar essa segurança, essa confiança. Eles se
sentem seguros de ter o doente em casa porque a gente dá uma boa
retaguarda. (te1/ECP)
Na relação dos/as profissionais com os usuários destaca-se, ainda, a
preocupação com o acolhimento do usuário e de suas necessidades, com a
resolução dos problemas que levaram esta pessoa a buscar o serviço de saúde,
com a garantia do acesso ao serviço, quando necessário. Os/as profissionais
apontam que os usuários dos serviços oferecidos pelas equipes
interdisciplinares são melhor acolhidos do que em outros serviços de saúde que
utilizam o modelo tradicional de organização do trabalho. Nas equipes
interdisciplinares os usuários dispõem de acesso aos profissionais, a
assistência é mais resolutiva e eles se sentem mais amparados em suas
necessidades.
Eles ligam e a gente encaixa. No paliativo sempre que chega [o
doente] a gente, o médico que está presente dá uma olhada. [...]
Coitados. No final de semana, às vezes eles preferem não ficar bem em
casa a ir para uma emergência. Se a gente puder facilitar, facilita.
(te1/ECP)
A forma como ele chega ao hospital. O fato de não estarem naqueles
corredores ali, de ter uma salinha de espera, ter alguém ali que
escute o que eles estão dizendo, poder chegar, tentar encaixar quando
dá, por mais que às vezes não se consiga. [...] É diferente o
tratamento deles. (ps/EG)
Os relatos de usuários e de familiares falam também do modo como o serviço
funciona e o suporte que oferece aos familiares e doentes. No serviço de
cuidados paliativos, o contato via telefone quando de alguma intercorrência, a
possibilidade de contato entre profissionais de outras instituições e os/as
profissionais da equipe facilitam o encaminhamento e a solução dos problemas
mais rapidamente, evitando o sofrimento do/a doente e o desgaste dos/as
familiares.
Se você procura o profissional errado eles te encaminham pro
profissional certo. Quando ela saiu daqui, o Doutor deu o telefone do
hospital e o dele particular. Pra não incomodar a gente ligou para o
hospital e ele estava lá. Nós conversamos por telefone, ele já
conhecia o caso. Deixou a internação pronta para quando a gente
chegasse. É mais seguro. Essa foi a informação que a gente levou. Se
ela sentisse alguma coisa [em sua cidade de origem] era para ir pro
hospital e pedir para os profissionais entrarem em contato com eles
aqui. Dá uma tranquilidade, eu acho que eles estão super certos. Se
eu for pegar um profissional lá [na cidade], ele vai ter que estudar
todo o caso de novo. Ele vai perder tempo e ela vai sofrer .(fm1/ECP)
A atuação em equipe interdisciplinar proporciona um outro entendimento sobre o
usuário e sobre a sua vida, distanciando-se da visão focada na doença e
aproximando-se da visão dos mesmos como seres humanos com suas individualidades
e relações familiares e sociais.
Eu particularmente, acho que esse paciente deve ficar em casa. Eu
fico agoniada quando eles ficam no hospital. Não é justo pelo tempo
curto de vida que eles têm. Talvez eles nem consigam enxergar isso,
mas é a família quem dá maior apoio a eles, a gente não pode achar
que é mais importante que a família, que o meio ambiente, que o ser
social que eles são. A gente não pode afastar esse paciente,
geralmente o tempo é muito curto, eles perdem isso quando estão
hospitalizados. Por mais flexível que a gente seja, por mais que veja
esse paciente como um todo, nunca ele vai ser visto como em sua casa.
Lá ele é uma pessoa especial. Aqui pra nós ele é um paciente. A gente
tem muito carinho de ver esse paciente em casa. Infelizmente a gente
só tem uma equipe [para atender] em casa, isso restringe bastante a
nossa atuação, até pela situação de recursos humanos no serviço
público. (m1/ECP)
No serviço de gerontologia a possibilidade de recorrer ao ambulatório mesmo
quando não possuem consultas agendadas facilita a situação do usuário quando
este necessita de receitas médicas e outras orientações evitando a interrupção
do tratamento. Em todas as situações, mesmo quando profissionais não resolvem a
situação de imediato, os usuários sentem-se acolhidos em suas necessidades,
porque são recebidos, são ouvidos e orientados.
[Outro dia] eu vim fazer consulta e não tinha vaga para a Doutora.
Daí eu disse que precisava de uma consulta para pegar remédio
[porque] não tinha receita. Num instantinho a [enfermeira] já tinha a
receita. Eu pego remédio lá no postinho, tem que ter a receita, então
tudo isso é uma facilidade pra gente. E elas são muito atenciosas,
dão explicação. (us3/EG)
A falta de atenção dos/as profissionais de saúde no momento do atendimento e da
prestação de cuidados, tem sido uma queixa de muitos usuários dos serviços de
saúde(4,7). Pesa negativamente na relação usuário/profissional a
impessoalidade, e as relações superficiais que os/as trabalhadores/as têm
mantido com a pessoa que busca estes serviços. A atenção das equipes e a
disponibilidade para conversarem, ouvirem as situações que envolvem a vida e a
doença e as dificuldades familiares, são consideradas como fator positivo no
atendimento que recebem.
Comunicação profissional/usuário nas equipes interdisciplinares: um espaço de
exercício da autonomia
Para usuários e familiares do serviço de cuidados paliativos um aspecto
positivo da relação que estabelecem com os/as profissionais diz respeito à
comunicação. Neste sentido sentem-se esclarecidos sobre a doença, os resultados
de tratamentos, as expectativas de evolução da doença. O esclarecimento sobre a
doença facilita a aceitação do processo e prepara tanto o doente como os
familiares para o desfecho final da doença.
Na prática diária, observa-se nas enfermarias que doentes e familiares
questionam durante a visita multiprofissional a evolução da doença, os
tratamentos propostos e que os/as profissionais mostram-se disponíveis e tentam
de modo adequado responder aos questionamentos. Neste sentido, desde os
esclarecimentos acerca de diagnóstico, prognóstico, tratamentos propostos,
procedimentos são discutidos com doente e familiares na visita da equipe. Os
esclarecimentos são prestados no momento em que são solicitados e a
profundidade das informações dependem de fatores como conhecimento do
diagnóstico, do modo como o doente e/ou familiar expõe sua vontade de saber.
A comunicação da doença aos familiares e ao próprio doente é uma prática
estimulada no serviço. No entendimento dos/as profissionais o doente é soberano
sobre as decisões que envolvem sua vida e doença e devem ser comunicados e
consultados sobre os rumos do tratamento.
Comunicação, ainda, culturalmente nós temos umas dificuldades. Muitos
pacientes, muitas famílias não querem saber claramente sobre a
doença, não querem conversar sobre prognóstico, morte e sofrimento. A
grande maioria das conversas acaba sendo indireta. Na maioria dos
locais que eu conheço não existe essa interação tão grande dos
familiares com a equipe. Às vezes nem com o médico. O médico só
aparece pra falar com o paciente e nem espera. Nem quer falar com a
família, o que é um erro [...] (m3/ECP)
No entanto, nem sempre esta prática é tranqüila para os/as profissionais e para
os doentes e familiares. Muitas vezes o doente tem dificuldade de aceitar a
evolução da doença e a comunicação entre o/a profissional e o doente tem que
considerar estas limitações.
Em relação aos familiares existe em nossa cultura a tendência a querer negar ao
doente o diagnóstico, e neste sentido a prática dos/as profissionais de tentar,
na medida das possibilidades, trabalharem as situações com clareza, mesmo com o
doente, nem sempre é aceita. Nestes casos a equipe utiliza-se das reuniões de
família, tenta ajustar as situações, na medida das possibilidades e da
capacidade da família lidar com a situação. Ainda assim, na prática diária, as
intervenções são discutidas com o doente e a ele/a é dada a possibilidade de
escolha quando o/a mesmo/a tem condições para fazê-la. Mesmo predominando essa
orientação no serviço, nas situações em que o familiar sente que seu poder de
decisão não é respeitado pelos/as profissionais surge o conflito.
Ainda que a equipe busque uma direção assertiva nas relações profissionais/
doentes/familiares as situações de doenças graves e prolongadas, com
possibilidade de morte, provocam divergências e conflitos dos familiares entre
si. Mobilizam sentimentos conflitantes que vão do medo da perda, da culpa por
acharem que não estão cuidando adequadamente do doente ou que não estiveram
atentos aos sinais da doença, e por isso buscaram ajuda tarde demais, o receio
das reações do doente se souber a realidade dos fatos, dentre muitos outros. A
necessidade de participação nas decisões quanto ao tratamento muitas vezes é
decorrente destes fatores que precisam ser compreendidos e trabalhados pelos
profissionais, abrindo espaço para a expressão destes sentimentos(9).
Do mesmo modo, os/as profissionais devem atentar para as situações em que a
família deseja negar ao doente a gravidade de sua condição. De alguma forma o
doente sabe de sua condição, percebe a proximidade do fim, mesmo quando lhe é
negada a verdade. Muitas vezes opta por conservar-se calado para proteger a
família, evitar a dor daqueles que lhes são caros, porém a negação dos fatos
pode provocar um distanciamento da família, um isolamento do doente que não
pode expor seus sentimentos diante do sofrimento e da proximidade da morte. A
equipe de saúde nesta situação deve propiciar espaço para que o doente exponha
suas perdas, seus sentimentos em relação à doença, permitindo-lhe exercer o
grau de autonomia que ainda lhe é possível(9-10).
O conjunto de aspectos que caracterizam as relações profissionais nas equipes
estudadas, bem como as relações entre profissionais e usuários aproxima-se do
que tem sido destacado nos debates recentes acerca da construção do Sistema
Único de Saúde com vistas a sua efetivação na realidade brasileira. Muitos
trabalhos vêm sendo produzidos destacando a importância de aspectos como a
humanização da assistência, a integralidade em saúde, a produção de sujeitos no
processo de atenção à saúde, a necessidade de formação de vínculos entre os
profissionais e entre os profissionais e os usuários, o acolhimento, a
necessidade de ampliação do acesso das pessoas aos serviços de saúde(3,11-13).
Embora os estudos, algumas vezes, centralizem a discussão em um ou outro destes
aspectos entende-se que é a aproximação com o conjunto destes fatores que
caracteriza o Sistema Único de Saúde, segundo os princípios defendidos a partir
movimento da reforma sanitária brasileira. Não há humanização sem vínculo, sem
garantia de acesso, sem acolhimento aos usuários, sem participação de
trabalhadores/as e usuários na definição dos serviços necessários e na forma de
utilização dos recursos disponíveis(12).
Sobre estes aspectos a atuação em equipes interdisciplinares parece contribuir
para a construção dos princípios e diretrizes favoráveis a construção do SUS. A
atuação interdisciplinar possibilita modos solidários dos trabalhadores
relacionarem-se entre si e com os usuários, contribuindo para a efetivação de
novas formas de organização do trabalho - (NFOT) em saúde.
Embora o processo de mudança do sistema de saúde dependa também, e
principalmente, de mudanças e decisões que envolvem as esferas mais amplas da
sociedade, não é possível desconsiderar que muitas destas mudanças podem
acontecer a partir da prática, nos locais em que as pessoas vivem e trabalham.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na atuação das equipes interdisciplinares estudadas confirma-se o potencial
para a realização de mudanças que beneficiam os usuários e os/as trabalhadores/
as, bem como reorganização no modo de fazer assistência à saúde, a partir dos
micro espaços de trabalho. O trabalho nas equipes interdisciplinares estudadas
conjuga vários destes fatores: vínculo, acolhimento, humanização da assistência
e melhora no acesso dos usuários aos profissionais e aos serviços de saúde.
Possibilitam também uma maior participação do usuário nas decisões que envolvem
sua vida e o processo saúde-doença favorecendo deste modo a criação de
condições para que os usuários se coloquem como sujeitos e exerçam sua
autonomia.
Relativamente à construção de vínculos profissional/usuário, na maioria das
vezes as equipes estudadas desenvolvem uma noção de forte responsabilidade para
com os usuários e famílias, demonstrando preocupação e envolvimento que
ultrapassam o tratamento da doença. Neste sentido, questões que na prática
tradicional do cuidar, predominante nos serviços de saúde, não se constituem em
preocupação dos/as profissionais como, por exemplo, transporte, alimentação
adequada à condição física do doente, intervalos entre consultas de modo a não
paralisar o tratamento por falta de receitas médica, e outros, passam a fazer
parte do repertório profissional em uma abordagem focada no usuário enquanto
sujeito social. Essa abordagem consegue cuidar dos indivíduos aproximando-se o
olhar para a sua multidimen-sionalidade enquanto ser individual, cultural,
histórico e social, além de utilizar melhor os recursos existentes nas
instituições e na comunidade.
As relações construídas nestas experiências possibilitam, portanto, que
problemas e conflitos usuais na organização e prestação da assistência sejam
minimizados ou até superados. E isso se traduz em satisfação para ambos os
envolvidos, profissionais e usuários.