Processos de trabalho do enfermeiro durante surtos de raiva humana no Estado do
Pará, Brasil
INTRODUÇÃO
No biênio 2004 e 2005 foram acompanhados e registrados no Brasil 74 casos
confirmados de raiva humana. O Estado do Pará notificou 54,05% destes óbitos
que afligiram famílias de localidades rurais de três municípios: Portel, Viseu
e Augusto Correa. Dos casos ocorridos neste estado, cerca de 39 pessoas foram a
óbito após agressões por morcegos hematófagos infectados por Rhabdovirus
lyssavirus. Essas pessoas tinham história de tratamento profilático incompleto
(vacinação anti-rábica do tipo Cultivo Celular com o número de doses inferior
ao prescrito) ou não realizado por falta de orientação e/ou de adesão(1).
A partir destes fenômenos epidêmicos, houve maior preocupação com a
monitorização da circulação do vírus rábico, Rhabdovirus lyssavirus e com o
abastecimento das Unidades Básicas de Saúde (UBS) com a vacina anti-rábica
humana do tipo Cultivo Celular(1).
A constante monitorização resultou na detecção do vírus rábico em diversos
mamíferos de muitos municípios do estado paraense por autoridades sanitárias.
Apesar de o Estado paraense procurar abastecer as UBS com as vacinas do tipo
Cultivo Celular, as pessoas mais expostas aos vírus rábicos têm dificuldade de
acesso e frequentemente abandonam o tratamento profilático anti-rábico, ou
seja, não fazem ou não terminam as cinco doses administradas nos dias 0, 3, 7,
14 e 28 sendo que o dia zero é aquele em que a pessoa agredida se apresenta ao
serviço de saúde(1-2).
Os surtos de raiva humana ocasionados por morcegos na região amazônica e em
países latino-americanos apresentam algumas características semelhantes de
risco. Os pesquisadores Schneider e Santos-Burgoa(3) apontaram em 1995 as
seguintes características de risco: a) Vítimas com menos de 20 anos com baixa
renda e escolaridade; b) Homens trabalhadores rurais, pescadores e garimpeiros
moradores da zona rural que residem em habitações vulneráveis; c) Falta de
energia elétrica dificultando o armazenamento de vacinas e proporcionando aos
morcegos um ambiente ideal para agressão; d) Redução da fauna e flora local
devido a explorações do solo para a agropecuária; e) Conhecimento tardio das
autoridades sanitárias dos surtos; f) Difícil acesso a serviços de saúde e a
serviços diagnósticos; g) Agredidos por morcegos hematófagos não crêem ou
desconhecem que a mordida destes animais pode causar raiva humana.
Perante as condições relatadas acima é possível a ocorrência de novos surtos,
trazendo assim, mais sofrimentos aos paraenses e a outras populações da região
Amazônica que apresentam fatores de não adesão a vacina anti-rábica como foi
constatando em estudos(1). Então os profissionais de saúde têm o desafio de
evitar tais sofrimentos, mas se ocorrer um novo surto é preciso compreender o
processo de trabalho durante um evento epidêmico de raiva humana para nortear
ações essenciais em uma situação de urgência.
As necessidades humanas, especificamente, as necessidades de saúde, suscitam
processos de trabalho orientados por finalidades, objetos e instrumentos que
são dirigidos às coletividades e aos indivíduos(5).
Pesquisadoras adotam as bases conceituais de Karl Marx para escrever sobre
processo de trabalho. Neste sentido é que compreendem que a partir da
intervenção intencional e consciente do ser humano sobre um determinado produto
ou serviço, o trabalho é direcionado à uma finalidade de transformar algo de
valor para o homem(5-9).
Dentre as profissões que constituem o processo de trabalho em saúde é evidente
o trabalho de enfermagem que é presente nos diversos níveis de atenção em saúde
(6,8).
O trabalho da enfermagem é composto por um conjunto de processos de trabalho,
os quais podem estar de forma articulada e podem ser executados da maneira
concomitante atuando sobre um determinado produto ou serviço. As ações que
compõem o processo de enfermagem são o processo de assistir ou cuidar, o
processo administrar ou gerenciar, o processo ensinar, o processo pesquisar e o
processo de participar politicamente. Para cada processo é possível identificar
seu(s) objeto(s), agente(s), instrumento(s), finalidade(s), método(s) e produto
(s)(7,9).
A equipe de enfermagem é caracterizada pela divisão de trabalho, sendo que ao
enfermeiro é delegada a função de articulador da gerência, além de desenvolver
ações de supervisão, organização, planejamento e avaliação do cuidado(6). Os
enfermeiros são profissionais ligados diretamente as ações de prevenção
instituídas antes, durante e depois dos surtos epidêmicos(1), e perante a esta
constatação é proposto situar o enfermeiro neste espaço que sofreu fenômenos
epidêmicos para compreender seus papeis em momentos de surtos de raiva humana.
Nesse sentido o presente artigo analisa o processo de trabalho de enfermeiros
durante fenômenos epidêmicos de raiva humana no estado do Pará no biênio de
2004 e 2005.
Para o presente estudo não é proposto investigar as diferenças dos processos de
trabalho de enfermeiros de cada município, e sim identificar e analisar os
aspectos semelhantes do processo de trabalho durante as epidemias de raiva
humana que assolaram três municípios paraenses no período de 2004 a 2005. Dessa
maneira é procurado fornecer subsídios para formação de profissionais de
enfermagem e para embasar a prestação de assistência durante a ocorrência de
epidemias de raiva humana.
MÉTODOS
O presente estudo foi de abordagem qualitativa(10) dos surtos de raiva humana a
partir as narrativas de seis enfermeiros que participaram do processo de
trabalho durante os surtos de raiva humana na zona rural de Portel, Viseu e
Augusto Correa, municípios do estado brasileiro do Pará, nos anos de 2004 e
2005.
O método qualitativo utilizado neste estudo, não busca generalizações e, sim,
uma compreensão particular daquilo que descreve e analisa(10). A amostragem não
é baseada no critério numérico para alcançar a representatividade, e sim, na
aproximação do pesquisador com os sujeitos sociais investigados(11).
O instrumento utilizado para a coleta de dados foi entrevista individual semi-
estruturada dirigida a seis enfermeiros que participaram dos eventos epidêmicos
de raiva humana no biênio 2004 e 2005, sendo dois de cada município paraense
afligido: Portel, Viseu e Augusto Correia.
A entrevista semi-estruturada é uma técnica a ser utilizada devido às
realidades que afloram nas falas das pessoas, ou ainda, que emergem ao narrarem
histórias relativas às suas vidas em constante mudança, reconstruir ações e
contexto vivenciados(11-12).
Após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
Federal do Pará (protocolo 027/07) foram apresentados aos entrevistados os
objetivos da pesquisa, a importância da adesão dos mesmos ao estudo, a garantia
do anonimato, buscando diluir a preocupação de qualquer exposição futura,
atendendo os aspectos éticos e legais determinados pela Resolução 196/96 do
Conselho Nacional de Saúde. Além disso, solicitado aos entrevistados que
assinassem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
A entrevista foi constituída por tópicos guias(11) os quais foram selecionados
a partir das leituras bibliográficas e da minha convivência com os enfermeiros
que participaram do fenômeno epidêmico. O tópico guia que dava início a
entrevista foi: Fale-me sobre o surto de raiva humana que o ocorreu aqui no
município. A intenção, nesse momento, era que os enfermeiros entrevistados
pudessem falar livremente sobre o tema em questão.
Outro tópico guia norteador foi: Como ocorreu o trabalho de assistência do
enfermeiro às pessoas moradoras das localidades afligidas pelos surtos de raiva
humana? Este último tópico era mais específico ao objetivo da presente
pesquisa.
As entrevistas foram realizadas no local de trabalho entre os meses de janeiro
e abril de 2007 segundo a disponibilidade dos enfermeiros em colaborar com a
pesquisa em questão. A duração média da entrevista para cada enfermeiro foi de
trinta minutos. Utilizado um caderno para anotações e um gravador para coleta
das narrativas dos enfermeiros permitida pelos mesmos. Assim foram coletas
narrativas das memórias destes profissionais de saúde sobre a atuação
enfermeiros no período de surtos de raiva humana que assolaram municípios
paraenses.
Dados nomes fictícios para os enfermeiros entrevistados sendo possível
identificar o município de origem do profissional a partir da primeira letra
dos nomes dados neste estudo. As narrativas foram transcritas e analisadas a
luz de pesquisas de diversos autores sobre o processo de trabalho do
enfermeiro. Foram apresentadas unidades representativas das narrativas dos
entrevistados e realizada uma analise temática das narrativas(13), procurando
identificar os elementos dos processos de trabalho de enfermeiros durante os
surtos de raiva humana em 2004 e 2005 no estado brasileiro do Pará. Assim foram
encontradas categorias analíticas a partir das narrativas dos enfermeiros
entrevistados.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Trabalho do enfermeiro durante os surtos da raiva humana
O enfermeiro tem um papel essencial na implantação e manutenção das políticas
de saúde brasileiras. Ele é responsável pela organização de práticas em saúde
coletiva e por enfrentar problemáticas de grupos humanos, sendo verificada a
sua atuação em vários momentos do processo de trabalho em saúde(5-6,15-16).
Partindo do pressuposto de que "para a criação de novas práticas é preciso
repensar os processos de trabalho em saúde na sua totalidade dinâmica"(15)foram
analisadas narrativas dos enfermeiros. É evidente que os processos de trabalho
em enfermagem têm maneiras de fazer semelhantes e aspectos diferentes
construídos segundo concepções de saúde-doença nos locais de atuação.
Processos de ensino e assistência: treinamento, a investigação e a detecção dos
surtos de raiva humana
Em janeiro de 2004, dois meses antes do surgimento do primeiro surto de raiva
humana do período estudado, ocorreu um treinamento sobre a administração do
tratamento anti-rábico com a vacina do tipo Cultivo celular para as equipes de
enfermagem do município de Portel. Nesse momento, foram abordados aspectos
sobre o esquema de tratamento profilático com a vacina Cultivo Celular e a
aplicação do soro anti-rábico. Os principais papéis das equipes de enfermagem
foram a de indicar pessoas que necessitassem do tratamento anti-rábico e
realizar educação em saúde para indivíduos e coletividades.
O primeiro processo empregado foi o de ensinar, tendo como os agentes,
enfermeiros, o objeto, as equipes de enfermagem, cujo treinamento consistiu de
medidas profiláticas contra a raiva humana. Utilizando teorias e métodos de
ensino e aprendizagem, os agentes tinham por finalidade aperfeiçoar os membros
das equipes em questão produzindo profissionais de enfermagem com melhor
qualificação. Este processo foi anterior aos surtos, contudo vale apena
ressaltar, pois é importante compreender que as equipes tinham conhecimentos
atualizados sobre a prevenção contra o mal instalado.
Diante um problema de saúde identificado por Agentes Comunitários de Saúde
(ACS), foi possível iniciar a investigação da ocorrência de um evento epidêmico
letal desconhecido nas localidades afligidas pelo infortúnio. A seguir o
enfermeiro Pablo narra os momentos iniciais dos surtos epidêmicos paraenses
onde o ACS Paulo aponta uma desordem biofisiológica coletiva que estava
ocorrendo no seu território de trabalho em Portel:
"Um dia o ACS chegou lá na secretaria e apresentou uma situação que
estava acontecendo: óbitos em localidades próximas e óbitos assim,
sem muito nexo, né. Não apresentavam quase nem um sintoma e evoluíam
rápido para óbito" (Enfermeiro Pablo)
"Aí, a partir desse momento, nos tomamos conhecimento destes óbitos
nos fomos atrás das fichas de notificação destes pacientes que foram
a óbito né. Algumas a gente conseguiu localizar, que foi no sistema,
no SIM, e outros não tinham passado pelo sistema, aqueles que tinham
passado pelo sistema foram classificados como morte sem assistência
né, e um outro foi classificado como morte por pneumonia, mas mesmo
assim nós achamos estranho e fomos investigar" (Enfermeiro Pablo)
"Até onde eu sabia já tinham morrido três pessoas né, sendo que o
último que foi diagnosticado com pneumonia é que levantou suspeita.
Se era uma arbovirose, uma coisa assim parecida e nos fomos com esta
equipe para lá para passar dois dias, mas passamos só um. Chegamos lá
(...) colher depoimento dos pais daquelas crianças que tinham
morrido, aproveitamos a oportunidade para colher a sorologia, em
torno de vinte pacientes né, em três locais diferentes né, nas
crianças, nos familiares (...). Nos encaminhamos para o Instituto
Evandro Chagas pra fazer sorologia(...)" (Enfermeiro Pablo)
Das narrativas acima, algumas frases exprimem a assistência enquanto processo
de trabalho do enfermeiro durante o surto: "uma situação que estava
acontecendo: óbitos em localidades próximas e óbitos assim, sem muito nexo",
indicando o reconhecimento da presença de um fenômeno epidêmico. Logo depois, a
investigação deste fenômeno é expressa pelas seguintes frases: "fomos atrás das
fichas de notificação destes pacientes que foram a óbito" e "colher depoimento
dos pais daquelas crianças que tinham morrido, aproveitamos a oportunidade para
colher a sorologia..."
Os conhecimentos em vigilância epidemiológica instrumentaram os agentes
(equipes de enfermagem) para a realização do processo de assistência e cuidado
das coletividades afligidas pela raiva humana. O processo de assistir, nesse
momento, não foi apenas dos enfermeiros, e sim de equipes administradas por
eles.
Os relatos descritos acima apontam para a detecção tardia do surto de raiva
humana. Os sistemas de Vigilância Epidemiológica municipais têm dificuldades de
acompanhar constantemente a situação geral de saúde e da ocorrência de agravos
às populações rurais paraenses devido às dificuldades de acesso, e assim, as
medidas profiláticas ocorrer também de maneira tardia(1).
As investigações de surtos e epidemias apontam um roteiro constituído de onze
etapas(2), mas para tanto, é essencial o planejamento do trabalho de campo o
qual é uma elaboração multiprofissional. Nesses momentos de intervenção, o
enfermeiro, a partir de conhecimentos na área da Epidemiologia e da formação na
área de gerenciamento, coordena os trabalhos, desencadeando medidas de controle
aplicáveis ao surto de raiva humana.
Processo de gerenciamento da assistência
Durante os períodos de surtos a disponibilidade da vacina antirábica humana
aumentou, precisando assim, de um gerenciamento destes imunobiológicos que
naquele momento tinham um significado vital para minimizar os sofrimentos que
atingiram comunidade de agricultores, pescadores e marisqueiros. Logo, perante
o quantitativo de pessoas e a situação epidemiológica que se encontrava, eram
solicitados a Regional de Saúde um número de caixas térmicas, termômetros,
vacinas e soro anti-rábico, além de anti-histamínicos, para uso em caso de
intercorrências. Ademais, foi necessário o treinamento em serviço para
aplicação do tratamento profilático.
"As vacinas nem ia lá para Viseu, vinham direto para aqui[locais dos
surtos] e eram muitas pessoas para vacinar. Tinham isopores com
termômetros para as vacinas e os soros, e a gente, olhava direto a
temperatura. Nós observávamos e preenchíamos a ficha de atendimento
anti-rábico, e ai o auxiliar [enfermagem] aplicava a vacina e o soro
quando era indicado... Algumas pessoas não quiseram fazer a vacina...
Foi difícil terminar o esquema vacinal... Fizemos busca ativa, mas
nem sempre conseguíamos vacinar... Íamos de casa em casa, íamos ao
centro[local de cultivo de raízes e legumes] só que tinha gente que
fugia..." (Enfermeira Valéria)
"De repente apareceram muitos casos lá no Arai, e ai, tivemos que
montar um acampamento lá... Reunimos com as pessoas das localidades
antes e durante a vacinação para explicar o que estava acontecendo...
Distribuímos folhetos e colocamos uns cartazes que chegaram. Tinham
pessoas que começavam com os sintomas e não queriam ir para o
hospital e a gente insistia com os pais..." (Enfermeira Ana Carla)
"Só os enfermeiros? Nos supervisionávamos o que os auxiliares [de
enfermagem] faziam. No final do dia tinha que entregar relatório
dizendo quantas vacinas foram aplicadas e também corrigíamos as
notificações. Antes de sair para fazer a vacina tinha que reunir todo
o material, não podia faltar nada porque era distante voltar para a
base[acampamento]" (Enfermeira Paula)
O processo de assistência permeia todo o trabalho na aplicação de medidas
profiláticas no combate a raiva humana. Para manter a saúde dos indivíduos
agredidos por morcegos nos municípios estudados, foi necessária a
sistematização da assistência por enfermeiros, tendo conhecimentos em
administração de rede de frio, de imunobiológicos, de epidemiologia e de
vigilância epidemiológica.
O trabalho da enfermagem produziu a busca ativa de casos e a imunização
temporária dos vacinados contra raiva humana tendo por finalidade diminuir o
número de óbitos. Além disso, a disponibilização de instrumentos: os insumos em
quantidade e qualidade adequada para garantir a aplicação dos imunológicos
conforme indicação estabelecida pelo Ministério da Saúde do Brasil(2). A
educação em saúde também é um instrumento do processo de assistir(8) e é
narrada pelos entrevistados, porém mesmo com os esforços durante reuniões
comunitárias e uso de métodos para conseguir a adesão ao tratamento
profilático, as equipes de enfermagem tinham, por vezes, dificuldades de
conseguir finalizá-lo.
Além do processo de administração destes imunológicos e a educação em saúde
dirigida às comunidades rurais afligidas, naquele momento também havia a
necessidade de adequar e treinar recursos humanos de maneira rápida e
eficiente. Mais uma vez, o processo de trabalho ensinar entra em cena para
configurar o treinamento de profissionais de enfermagem de maneira breve no
intuito de evitar mais mortes por raiva humana. Logo foi utilizado o método de
treinamento em serviço para facilitar a assimilação das equipes de enfermagem.
O trabalho dos profissionais de enfermagem, a nível primário, foi essencial, e
continua sendo, para as ações de promoção e prevenção à raiva humana nas
localidades atingidas por este mal.
Então, a organização do trabalho e dos recursos humanos de enfermagem são
objetos do processo da administração, cabendo ao enfermeiro as ações do
gerenciamento do cuidado(9), situação presente durante os eventos epidêmicos de
raiva humana no estado brasileiro do Pará.
Nota-se que os enfermeiros Pablo, Valéria e Ana Carla utilizam o pronome
pessoal na primeira pessoal do plural para relatar sobre as atividades
realizadas durante os surtos epidêmicos de raiva humana. Vários artigos
escritos por enfermeiros referentes às epidemias por doenças transmissíveis,
além de utilizarem o pronome pessoal no plural, utilizam o verbo na terceira
pessoa do plural, ou seja, não deixam evidente a divisão de trabalho no momento
de epidemias(16).
A exceção encontrada foi a publicação, em 2006 de pesquisadoras, as quais
descreveram e analisaram do ponto de vista histórico-social o trabalho das
enfermeiras na erradicação da varíola no estado de São Paulo no fim da década
de sessenta e início da década de setenta do Século XX. Elas concluíram que as
enfermeiras desenvolveram as seguintes ações: treinamento de pessoal e
coordenação de medidas de prevenção à varíola no Estado(17).
Perante tantas demandas: educação em saúde, gerenciamento de imunológicos,
condução e viabilização do processo cuidativo, assim como, o treinamento em
serviço de pessoal e alocação de recursos humanos e materiais, o enfermeiro é o
profissional responsável por administrar e coordenar todos estes processos de
trabalho. Para tanto, os enfermeiros realizaram um diagnóstico da situação de
saúde dos afligidos no momento de surto. Este processo racional é dedutivo e
deve ser usado na prestação do cuidado de enfermagem(18), portanto o enfermeiro
deve está preparado para os novos desafios quando eles surgem repentinamente.
Então a sistematização da assistência realizada pelos enfermeiros resultou em
ações que descrevo a seguir:
- Delimitação da área e população a ser assistida por medidas
profiláticas;
- Definição de recursos humanos e materiais para aplicação do
tratamento anti-rábico;
- Treinamento da equipe sobre aspectos da antropozoonose, de
vigilância epidemiológica, medidas profiláticas e de biosegurança;
- Definição e explicação à equipe de enfermagem sobre o fluxo do
trabalho à ser realizado;
- Solicitar transporte e combustível para encaminhar os recursos à
área atingida;
- Em área: procurar e encaminhar casos suspeitos de raiva humana;
- Acordar com a população a necessidade de adesão ao tratamento anti-
rábico;
- Preencher cuidadosamente a ficha de notificação de atendimento
anti-rábico;
- Supervisionar a técnica de aplicação da vacina e o preenchimento da
ficha de atendimento anti-rábico;
- Iniciar o tratamento anti-rábico conforme o histórico da(s)
agressão(ões) ocorrida(s);
- Monitorar, registrar e analisar diariamente quantidade de insumos
adequando as necessidades de aplicações de medidas profiláticas à
população;
- Monitorar e registrar a temperatura e organização dos equipamentos
da rede de frio;
- Busca ativa de faltosos ao tratamento profilático.
CONCLUSÃO
Os fenômenos epidêmicos de raiva humana suscitaram em 2004 e 2005 processos de
trabalho de equipes de enfermagem em três municípios do estado brasileiro do
Pará, ou seja, equipes norteadas pela finalidade de evitar o aumento do número
de óbitos desenvolveram medidas profiláticas específicas para combater este
evento epidêmico.
A agilidade das ações de enfermagem procura se adequar às transformações
epidemiológicas iminentes, e assim os processos de trabalho do enfermeiro pedem
raciocínio crítico(18), isto é, nesta situação o enfermeiro deve ser capaz de
fazer observações relevantes, reconhecer os problemas de saúde, desenvolver
soluções apropriadas e avaliar os resultados destas soluções.
Na presente pesquisa de cunho qualitativo foram analisadas as narrativas sobre
os processos de trabalho de enfermeiros durante os surtos de raiva humana. A
articulação e a integração dos processos de trabalho do enfermeiro,
assistência, administração e ensino, foram essenciais para a realização de
ações de prevenção em localidades rurais e de difícil acesso.
A análise do processo de trabalho de enfermeiros durante uma epidemia é
importante para entender como é possível agir perante uma situação
repentinamente instalada que requer a elaboração de estratégias que minimizem
os sofrimentos dos afligidos. Para tanto, os enfermeiros precisarão compreender
as relações e as necessidades das equipes de saúde para elaborar processos de
trabalho que atendam as dificuldades de grupos sociais que procuram o serviço e
que, neste sentido, é importante atentar para as diferenças sócio-culturais.