Assistência domiciliária em saúde: um olhar crítico sobre a produção científica
de enfermagem
INTRODUÇÃO
A proximidade com o sujeito doente tem sido buscada em vários setores da
assistência à saúde. Em virtude das características singulares que detém, a
assistência domiciliária (AD) destaca-se como modalidade de cuidado que
pressupõe competências profissionais ampliadas direcionadas ao sujeito, família
e comunidade.
A AD acontece em cenários e contextos peculiares. Está presente nos três níveis
de atenção à saúde e envolve equipe multiprofissional. Apesar da ampliação do
seu objeto de trabalho, a AD ainda é realizada tendo como referência o modelo
clínico-hospitalar(1).
Esse estudo é parte de um trabalho mais extenso, no qual foi desenvolvido
processo investigatório em contexto domiciliar acerca da vivência de cuidadores
familiares de vítimas de acidente cerebrovascular (AVC)(2).
Inicialmente realizou-se um estudo bibliográfico em periódicos, quando foi
analisada a produção científica da enfermagem sobre o cuidado realizado no
domicílio.
Para o profissional atuar na AD é necessário o entendimento acerca do
significado que a presença do familiar doente no domicílio tem para a família
(2). As pesquisas sobre o assunto exploram conceitos importantes nesse cenário,
como cuidador familiar, domicílio, visita domiciliar, rede de apoio social da
família e as definições acerca da expressão "assistência domiciliária".
A produção do conhecimento sobre a temática encontra-se em processo de
emergência, em virtude de sua magnitude e do aumento da demanda social pela AD
no cenário de saúde brasileiro.
Por se tratar de assunto ainda pouco discutido, do ponto de vista da
investigação científica, é que se objetivou analisar a produção científica da
enfermagem acerca da assistência domiciliar em saúde. Nesse artigo, está sendo
apresentado o conhecimento relacionado à organização da AD em alguns serviços
de saúde e à percepção dos cuidadores e de suas famílias acerca do cuidado
domiciliário, que se constituíram nas temáticas relevantes a partir dos artigos
analisados.
MÉTODO
Essa pesquisa constituiu-se num recorte, reunindo 20 artigos, a partir de
pesquisa bibliográfica com 30 artigos, localizados nos endereços eletrônicos de
periódicos de enfermagem correspondentes ao período de 2000-2007. Foram
excluídos do estudo 10 artigos, os quais foram publicados fora do período de
interesse e não estavam disponíveis na íntegra em versão eletrônica.
O acesso às fontes de pesquisa ocorreu no período de julho a dezembro de 2007.
A coleta dos dados deu-se com a consulta sistemática, via internet, aos
endereços eletrônicos dos periódicos, a partir dos descritores: "serviços de
assistência domiciliar"; "cuidados de enfermagem" e "cuidados domiciliares de
saúde", obedecendo-se aos seguintes critérios de inclusão: acessibilidade,
disponibilidade dos números na íntegra e relação com a temática da assistência
de enfermagem domiciliária.
Para manter o anonimato das publicações, os periódicos que atendiam aos
critérios de seleção propostos forma identificados como Periódico 1, Periódico
2, Periódico 3 e Periódico 4.
A análise dos dados tomou como referencial teórico a análise de conteúdo de
Bardin que envolveu as seguintes etapas: a pré-análise, a análise e o
tratamento dos resultados e interpretação(3).
A pré-análise compreendeu a organização, a leitura flutuante e a preparação do
material a ser analisado durante a pesquisa, quando se verificou se os
trabalhos realmente tratavam do tema abordado. A análise correspondeu ao
período de exploração do material. Aqui se concentraram as fases de recorte do
corpus, categorização e descrição das categorias. Na fase de tratamento dos
resultados e de interpretação trabalhou-se na linha quati-qualitativa, por meio
da identificação e discussão das seguintes variáveis: titulação dos autores,
procedência dos autores por região, natureza ou abordagem dos estudos e o
conteúdo dos artigos quanto ao conhecimento dos sujeitos sobre assistência
domiciliária e a organização dessa modalidade de cuidado em diferentes
serviços.
Apresenta-se a produção do conhecimento a partir das temáticas "organização da
assistência domiciliária" e "percepção dos cuidadores/familiares acerca do
cuidado domiciliário". A primeira reúne as seguintes categorias: 1- análise de
serviços de saúde que oferecem AD, 2- instrumentos para a AD, congregando as
subcategorias: visita domiciliária, instrumento de abordagem psicossocial à
família e aplicação de modelos assistenciais em AD; 3- classificação de
pacientes em AD.
A segunda temática reúne a categoria: 1- vivência do cuidador familiar, que
congrega as subcategorias: caracterização do cuidador e significado das ações
do profissional e do cuidado domiciliar para o cuidador.
RESULTADOS
A análise dos artigos resultou na identificação das características dos estudos
e de seus autores, como pode ser observado na Tabela_1. Destacam-se os anos de
2004 e 2005 que apresentaram maior produção acerca da temática estudada, com 6
(30%) e 9(45%) publicações, respectivamente. As titulações mais recorrentes
entre os autores dos artigos analisados foram doutorado, 7(35%), e mestrado, 4
(20%).
![](/img/revistas/reben/v64n2/a23tab01.jpg)
Acerca da região do País onde foram publicados os artigos, a região Sudeste,
representada nesse trabalho por São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro,
respondeu por 80% das publicações, em contrapartida, apenas 5% estavam na
região Nordeste, e 15% na região Sul.
Em relação à abordagem dada pelos autores nos artigos analisados, a pesquisa
qualitativa foi mais utilizada, correspondendo a 13(65%) publicações. A
abordagem quanti/quali foi utilizada em apenas 2(10%) dos estudos analisados.
DISCUSSÃO
Foram considerados trabalhos de mestrado e/ou doutorado aqueles cujos autores
identificaram-se como mestrandos e doutorandos ou que estavam publicando
recortes de suas dissertações e/ou teses. Como trabalhos de iniciação
científica os que possuíam alunos de graduação em enfermagem como autores,
integrantes de algum projeto de pesquisa e docentes aqueles cujos autores
identificaram-se como professores de graduação/pós-graduação de alguma
instituição de ensino superior.
Apesar do crescente interesse de profissionais da saúde e de pesquisadores por
compreender as especificidades da atenção domiciliária em saúde, a produção
científica ainda se apresenta de forma incipiente, com um número pequeno de
artigos nos periódicos analisados.
Um aspecto importante a ser ressaltado é o quantitativo de pesquisas oriundas
de cursos de doutorado e de docentes. Sabe-se que as agências de fomento à
pesquisa exigem a publicação das construções científicas realizadas na
academia. Isso implica diretamente no estímulo aos doutorandos, mestrandos e
docentes para que publiquem suas investigações.
Os trabalhos de iniciação científica e de especialização não se apresentaram
com números representativos nas pesquisas, porém representam uma importante
parcela de pesquisadores em preparação para ingressar em cursos de pós-
graduação stricto sensu e na docência do ensino superior, momentos de formação
nos quais desenvolverão além de outras habilidades, a consciência e o interesse
em publicar seus estudos.
A performance dos estados do sudeste é o resultado do ambiente de cooperação
entre instituições e políticas públicas, o que possibilita a criação de cursos
de mestrado e doutorado na região. Além disso, os periódicos com maior número
de artigos são órgãos oficiais de divulgação científica das próprias
instituições de ensino superior nas quais os autores cursam graduação/pós-
graduação ou lecionam.
Outro aspecto importante a ser discutido é a natureza das pesquisas analisadas.
A abordagem qualitativa respondeu por 65% dos artigos, apesar da simpatia das
agências de fomento à pesquisa pela abordagem quantitativa. Os enfermeiros,
seja pela proximidade de seu objeto de estudo ou de trabalho, realizam
pesquisas qualitativas para explorar diversas temáticas e nesse estudo analisam
a assistência domiciliar sob o ponto de vista dos trabalhadores e da clientela
que recebe os cuidados.
Tecidas as considerações sobre as características dos estudos e de seus
autores, segundo aspectos quantitativos, essa pesquisa destaca as temáticas
recorrentes nos artigos analisados acerca da atenção domiciliar. Inicialmente
será analisada, a partir dos resultados apresentados nos estudos, a organização
dos serviços públicos e privados que oferecem assistência à saúde no domicílio
e, em seguida, a percepção dos cuidadores/familiares acerca do cuidado
domiciliário.
A organização da assistência domiciliária
Essa temática reúne a produção do conhecimento relacionada à operacionalização
dos serviços de assistência domiciliária. A leitura dos trabalhos revelou a
preocupação dos pesquisadores em: 1- expor as experiências de alguns serviços
de saúde, tomando algum indicador para avaliar o cuidado prestado; 2- avaliar
os instrumentos utilizados para cuidar no domicílio, como a visita domiciliária
e a aplicação de modelos assistenciais; 3- conhecer as reais demandas de
cuidado dos pacientes que necessitam de assistência em suas residências.
As pesquisas trazem de forma sistemática conceitos que traduzem as formas de
organização da assistência profissional no domicílio. Destacam-se os conceitos
de visita domiciliária, entendida como atendimento realizado por profissional
e/ou equipe de saúde na residência do cliente, com o objetivo de avaliar suas
necessidades, de seus familiares e do ambiente para construir um plano de
cuidados(4), atendimento domiciliar, o qual compreende as atividades
assistenciais exercidas pelo profissional na residência do cliente e internação
domiciliar, entendida como atividades especializadas, com a oferta de recursos
humanos, materiais e medicamentos, assemelhando-se ao cuidado oferecido no
ambiente hospitalar(5).
A partir do entendimento desses conceitos, as narrativas acerca das
experiências de alguns serviços de assistência domiciliária em saúde
estabelecem como critérios de avaliação os custos com recursos materiais, como
dietas e medicamentos(6) e as formas como os serviços públicos ou privados se
organizam para instituir a mudança no modelo de atenção à saúde, acreditando-se
que a assistência domiciliária possui potência para essa transformação(7).
Tecendo considerações acerca da avaliação da assistência domiciliária, observa-
se que as pesquisas elegeram a visita domiciliária como importante estratégia
assistencial, pois permite a observação do contexto familiar e a
disponibilidade de recursos na comunidade5. Aliam-se à visita, a aplicação de
modelos assistenciais e de instrumentos de abordagem à família, como formas de
apreender as expressões de vida e de saúde/doença apresentadas pelo indivíduo e
família, em virtude do vazio teórico-instrumental existente(1,8).
A apreensão das expressões de vida dos cuidadores domiciliares e de seus
familiares torna-se uma difícil tarefa para os profissionais de saúde, quando a
formação acadêmica é limitante, ou seja, não consegue ampliar a abordagem do
sujeito para além da dimensão clínica tradicional(9).
Essa dimensão consiste no fazer profissional voltado para a doença, pautado em
saberes e técnicas que não valorizam o sujeito como ser capaz de adquirir
conhecimentos para cuidar de si e interferir na evolução do seu processo saúde/
doença.
A assistência domiciliária para ser efetiva necessita de profissionais com uma
visão ampliada de clínica, a qual volte seu olhar para o ser humano e suas
subjetividades. O envolvimento da família no tratamento dos pacientes no
domicílio remete à necessidade da construção de novas formas de cuidado em
saúde(1).
Para que o cuidado no domicílio seja efetivo, contudo, também é preciso atenção
ao dimensionamento de recursos humanos. Nessas circunstâncias, destacam-se os
profissionais de enfermagem na implementação da assistência domiciliar e na
manutenção da sua qualidade(10).
O trabalho do enfermeiro no contexto domiciliar consiste em cuidar, ajudar a
cuidar, orientar e encaminhar. Os seus conhecimentos e o vivenciar das
situações possibilitam-lhe saber como agir. Não há como prever uma rotina de
atendimento pela dinâmica de cada domicílio. Exigem-se do profissional
capacidade de readaptação constante, criatividade e atitude interdisciplinar
(11-12).
Considerando-se esses aspectos, é importante que o enfermeiro conheça as reais
necessidades de cuidado de seus clientes, a partir da determinação do grau de
dependência em relação à equipe de enfermagem(13). O desempenho da equipe de
enfermagem relaciona-se diretamente à adequação do tempo de permanência do
profissional no domicílio, de acordo com as necessidades do paciente/família.
Percepção dos cuidadores/familiares acerca do cuidado domiciliário
A construção dessa categoria ocorreu a partir da observação do interesse dos
autores dos estudos analisados em investigar o significado que o cuidado
domiciliário tem para os cuidadores, as pessoas cuidadas e as famílias.
A análise dos trabalhos resultou na identificação dos principais objetivos dos
autores: 1- identificar as características dos cuidadores e dos familiares por
eles cuidados e 2- conhecer os sentimentos e as percepções dos cuidadores e
familiares acerca da assistência domiciliária e das ações dos profissionais no
domicílio.
No tocante à caracterização dos cuidadores, os seguintes aspectos foram
explorados por quatro estudos: sexo, idade, estado civil, renda, escolaridade,
religião, parentesco com a pessoa cuidada, tempo de cuidado, tipo de cuidado
realizado e formação técnica(1-3,6). Quanto às características dos familiares
sob cuidados no domicílio, foram explorados em quatro artigos os seguintes
aspectos: sexo, escolaridade, renda e o tipo de doença da qual são portadores
(1,6-8).
É evidente a presença feminina assumindo o papel de cuidadora, com idades
compreendidas entre 30 e 82 anos, pertencentes ao grupo familiar do ser
cuidado, principalmente filhas e esposas, com poucos anos de estudo e sem
formação específica para o cuidado domiciliar.
A respeito dos familiares cuidados no domicílio, prevalecem nos estudos aqueles
com idade superior a 61 anos, com manifestações de complicações de doenças
cardiovasculares e neoplasias, e aqueles sem possibilidades terapêuticas de
cura.
A partir da constatação da importância e da presença da família no cuidado à
crescente população de pessoas dependentes de cuidados no domicílio, alguns
autores interessaram-se por conhecer os significados e os sentimentos dos
cuidadores e familiares acerca do cuidado domiciliar(1-5,7,9).
Apenas dois artigos não apresentaram resultados para esse aspecto da temática
(6,8). Os demais abordaram, dentre outras questões não menos relevantes,
sentimentos dos cuidadores sobre o surgimento de fenômenos como a dependência e
o apego do familiar com o advento da doença, a necessária reorganização
familiar para oferecer cuidado efetivo no domicílio, o significado da
assistência domiciliária prestada pelos profissionais, a percepção de sua
condição de cuidador (a), as motivações para cuidar, a sobrecarga física e
emocional, o cuidado em tempo integral, algumas vezes com o apoio de amigos,
vizinhos e da família e, outras vezes, o cuidado solitário.
Constatou-se, portanto, que os autores voltaram seus olhares para os
sentimentos e significados do cuidador domiciliar por entendê-lo como ator
social que presta incomensurável serviço à família, à sociedade e ao sistema de
saúde brasileiro.
As respostas do sistema de saúde e de políticas públicas voltadas ao cuidado
dos idosos e de pessoas dependentes ainda são insuficientes no País, o que
constitui o desafio de buscar novas estratégias assistenciais que atendam essa
população. O cuidado no domicílio ainda tem caráter informal, sendo o cuidador
familiar a pessoa fundamental para sua existência. A organização da assistência
domiciliar exige a definição de políticas assistenciais que envolvam
disponibilidade de tecnologias e de capacitação de cuidadores.
Para os cuidadores dos estudos analisados, o cuidado domiciliário é considerado
uma tarefa difícil, em virtude das mudanças que impõe a suas vidas, do
despertar de sentimentos como a obrigação de cuidar dos pais e/ou do marido, da
exacerbação dos conflitos entre os familiares e do aprendizado necessário para
cuidar(14-16).
Em contrapartida, familiares e cuidadores apontaram nas pesquisas aspectos
positivos resultantes da interação com os profissionais nos domicílios. Dentre
estes, a visualização do trabalho da enfermeira, a garantia de tranquilidade e
segurança com a presença da enfermeira, ser auxiliado em momentos de urgência e
ser ensinado a cuidar(11,17).
Além dos aspectos subjetivos elencados acima, os autores também se preocuparam
em respaldar seus estudos ao definir conceitos relacionados à temática, a
exemplo de "cuidador informal e formal", que estavam presentes nas pesquisas
que objetivavam compreender os sentimentos dos cuidadores acerca desses
conceitos.
O primeiro foi conceituado como um membro do grupo familiar ou amigo e vizinho
residentes no local onde o cuidado é prestado, sem receber nenhuma remuneração
pela ajuda oferecida e que não tem uma formação específica. A atenção informal
emerge das relações interpessoais e se constrói no cotidiano familiar e social
(18-19).
Já o cuidador formal foi definido como pessoa com formação específica na área
da saúde que possui vínculo empregatício ou alguma forma de remuneração para
exercer ações de cuidado no domicílio (19).
Na pesquisa que abordou o cuidado familiar a pessoas dependentes sem
possibilidade terapêutica de cura, os conceitos de terapia paliativa e de
cuidados paliativos também foram identificados(14).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A busca da enfermagem por seu próprio corpo de conhecimentos avançou muito ao
longo do tempo, voltando sua atenção para áreas diversas como a assistência, o
ensino e a pesquisa. Em virtude disso, é importante a análise da produção
científica de enfermeiros para ampliação e maior divulgação do conhecimento da
enfermagem.
O presente estudo proporcionou a reflexão sobre a assistência domiciliária em
saúde e destacou a enfermagem como profissão essencialmente presente nesse
contexto.
Infere-se, da pesquisa realizada, que a assistência domiciliária está em
ascensão e, uma vez realizada com responsabilidade e competência, traz muitos
benefícios para as pessoas e suas famílias. Ainda são incipientes as pesquisas
e os instrumentos de avaliação dessa modalidade de cuidado, fato que favorece
os estudos acerca da temática, já que a mesma se faz presente em serviços de
saúde públicos e privados e exige dedicação do profissional.
Entende-se que a enfermagem deve ampliar suas investigações acerca do cuidado
domiciliário, e assim, contribuir para a divulgação do conhecimento da
profissão e para o reconhecimento da família como parceira no cuidado, uma vez
que as atividades são compartilhadas com os membros familiares dos pacientes,
os quais necessitam de escuta e capacitação para oferecer um cuidado humano e
de qualidade.