Vulnerabilidade: análise do conceito na prática clínica do enfermeiro em
ambulatório de HIV/AIDS
INTRODUÇÃO
Considerando a cartografia do mundo contemporâneo, torna-se evidente as formas
de sofrimento humano advindas de um esvaziamento subjetivo, no qual o indivíduo
não é entendido em suas múltiplas dimensões e fica reduzido apenas às condições
biológicas e ambientais. Podemos então dizer que as diversas formas de mal-
estar ou de doenças da contemporaneidade se caracterizam pelo fato de estarem
centradas positivamente na ênfase dada ao corpo.
Porém, para se compreender as formas de adoecimento deve-se levar em
consideração os aspectos culturais, sócio-econômicos, políticos, as questões de
gênero, a etnia, ou seja, todo e qualquer tipo de situação que implique em
suscetibilidade ao adoecimento.
Em relação à AIDS, Mann(1) apresenta o conceito de vulnerabilidade no
referencial de Ayres, que aponta uma vulnerabilidade do sujeito que não permeia
apenas as questões biológicas e do ambiente, mas que leva em consideração a
cultura, as questões sócio-econômicas e sua história de vida, ampliando e
valorizando dessa forma a subjetividade do sujeito.
A AIDS é uma doença que põe em evidência a sexualidade e sentimentos como culpa
e castigo, levando à questões que incomodam os sujeitos e calam os
profissionais de saúde que, ao serem confrontados com tais questões, percebem
suas dificuldades no campo da ética, do social e do psicológico.
Dessa forma, a AIDS implica em um contexto amplo onde cada sujeito tem um olhar
singular frente a sua vida, percebendo de formas diversas suas
vulnerabilidades.
A consulta de enfermagem torna-se, nesse sentido, um dispositivo importante
para se compreender a subjetividade e singularidade de cada sujeito, além de
ser um momento oportuno para a troca de saberes e estreitamento de laços.
Neste sentido, nos perguntamos como o conceito de vulnerabilidade pode ajudar o
enfermeiro a conduzir sua prática clínica?
Trata-se de um artigo reflexivo que objetiva a discussão do conceito de
vulnerabilidade e suas implicações para a clínica de enfermagem, bem como os
impasses e as possibilidades geradas por este conceito.
CONCEITO DE VULNERABILIDADE: QUESTÕES HISTÓRICAS
O termo vulnerabilidade tem sido bastante empregado nos últimos anos,
especialmente após a década de 1980, expressando distintas perspectivas de
interpretação.
Originário da área da advocacia internacional pelos Direitos Universais do
Homem, o termo vulnerabilidade designa, em sua origem, grupos ou indivíduos
fragilizados, jurídica ou politicamente, na promoção, proteção ou garantia de
seus direitos de cidadania(2).
Wisner(3) apresenta o conceito vulnerabilidade em situações nas quais pessoas
ou populações podem estar expostas a acidentes extensivos, como terremotos.
Aponta, ainda, que o nível socioeconômico, a ocupação e a nacionalidade também
se relacionam a esse termo, pois repercutem sobre o acesso à informação, aos
serviços e à disponibilidade de recursos, os quais, por sua vez, potencializam
ou diminuem a vulnerabilidade.
Numa outra perspectiva, Watts e Bohle(4) propuseram uma estrutura tripartite
para constituir uma teoria sobre a vulnerabilidade, que consiste em
entitlement, empowerment e política econômica. A vulnerabilidade é definida na
intersecção desses três poderes, sendo que entitlement refere-se ao direito das
pessoas; empowerment,o empoderamento, que se refere à sua participação política
e institucional; e a política econômica, se refere à organização estrutural-
histórica da sociedade e suas decorrências. Desse modo, a vulnerabilidade às
doenças e situações adversas da vida distribui-se de maneira diferente segundo
os indivíduos, regiões e grupos sociais e relaciona-se com a pobreza, com as
crises econômicas e com o nível educacional.
Especificamente na área da saúde, o termo vulnerabilidade emerge no começo da
década 1980, como possibilidade de interpretação à epidemia da AIDS, na
perspectiva de contribuir na identificação de indivíduos, grupos e comunidades
que estão expostos a maiores níveis de risco nos planos sociais, políticos e
econômicos e que afetam suas condições de vida individual, familiar e
comunitária(5).
Mann(1) introduz o conceito de vulnerabilidade para compreender os
determinantes estruturais que envolvem a relação dinâmica da epidemia do HIV/
AIDS. Segundo este autor, o comportamento individual é o determinante final da
vulnerabilidade à infecção, o que justifica focalizar ações no indivíduo,
embora isto não seja suficiente para o controle da epidemia. Deste modo, é
importante considerar outros fatores que podem influenciar tal controle no
âmbito individual.
Na tentativa de ampliar o conceito, Ayres(6)refere-se ao termo vulnerabilidade
como sendo à chance de exposição das pessoas ao adoecimento, como resultante de
um conjunto de aspectos que ainda que se refiram imediatamente ao indivíduo, o
recoloca na perspectiva de dupla-face, ou seja, o indivíduo e sua relação com o
coletivo.
APROXIMAÇÃO DO CONCEITO DE VULNERABILIDADE COM A EPIDEMIA DA AIDS
As primeiras estratégias de prevenção da AIDS foram operacionalizadas de acordo
com o conceito de grupo de risco, o qual difundiu-se amplamente, especialmente
através da mídia. A característica principal desse modelo é que a doença é
coisa dos "outros", o que faz com que a AIDS seja tratada como algo episódico e
distante, associada à promiscuidade, drogas e homossexualidade(7). Dessa forma,
percebemos que os resultados dessas estratégias foram o isolamento do indivíduo
e, consequentemente, o estigma e o preconceito.
Uma segunda forma de perceber a doença é através da idéia de comportamentos de
risco ou práticas de risco. As estatísticas da AIDS começaram a mostrar que ela
não atinge somente indivíduos dos grupos de risco tradicionais, mas atinge a
todos que adotam comportamentos de risco, como manter relações sexuais sem o
uso do preservativo, compartilhar seringas, receber transfusão de sangue não
testado, etc. Assim, as estratégias de redução de risco foram voltadas para a
difusão de informações, controle dos bancos de sangue e estratégias de redução
de danos para usuários de drogas injetáveis. Esse modelo tende a retirar o
estigma dos grupos nos quais a epidemia foi inicialmente detectada, mas
demonstra uma tendência de culpabilização individual(7).
Entretanto, percebemos que o risco de infecção está, muitas vezes, ligado mais
a questões sociais do que individuais, sendo necessário entender as razões que
levam pessoas e grupos a estarem em situação mais vulnerável à infecção pelo
HIV.
É nesse contexto que surge o conceito de vulnerabilidade, que considera
diversos aspectos relacionados ao adoecimento, resultante de um conjunto de
fatores não apenas individuais, mas também coletivos e contextuais que
acarretam maior suscetibilidade à infecção e ao adoecimento.
Conforme Ayres(8), as análises de vulnerabilidade envolvem a avaliação de três
eixos interligados: componente individual ou pessoal, componente social e
componente programático ou institucional.
No plano pessoal, a vulnerabilidade depende do grau e da qualidade da
informação de que os indivíduos dispõem sobre o problema, da sua capacidade de
elaborar essas informações e incorporá-las ao seu repertório cotidiano e,
também, das possibilidades efetivas de transformar suas práticas. A
vulnerabilidade social pode ser entendida como um espelho das condições de bem-
estar social, que envolvem moradia, acesso a bens de consumo e graus de
liberdade de pensamento e expressão, sendo tanto maior a vulnerabilidade quanto
menor a possibilidade de interferir nas instâncias de tomada de decisão(8).
No plano institucional, a vulnerabilidade pode ser avaliada a partir de
aspectos como: compromisso das autoridades com o enfrentamento do problema;
ações efetivamente propostas e implantadas por essas autoridades; coalizão
interinstitucional e intersetorial (saúde, educação, bem-estar social, trabalho
etc.) para a ação; planejamento e gerenciamento dessas ações; financiamento
adequado e estável dos programas; continuidade dos programas; avaliação e
retroalimentação dos programas; sintonia entre programas institucionalizados e
aspirações da sociedade; vínculos entre as instituições e a sociedade civil
organizada, etc(8).
CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSULTA DE ENFERMAGEM E O CONCEITO DE VULNERABILIDADE
O enfermeiro dispõe da consulta de enfermagem como uma das atividades da
categoria com respaldo legal do Conselho Federal de Enfermagem desde 1986. Esta
atividade proporciona a esse profissional condições para atuar de forma direta
e independente com o cliente, ratificando, dessa forma, sua autonomia
profissional.
A consulta de enfermagem é a aplicação do processo de enfermagem, o qual é
constituído por ações sistematizadas e inter-relacionadas que visam o cuidado.
As etapas que compõem esse processo são: histórico, diagnósticos, prescrição,
intervenções e evolução(9-10).
Em 1997, a consulta de enfermagem foi adotada no Ambulatório Especializado em
HIV/AIDS em uma unidade de referência em doenças infecciosas no estado do
Ceará, como estratégia para se trabalhar o cuidado individualizado com os
pacientes portadores da doença ou da infecção pelo HIV.
Entretanto, pensamos que este atendimento ainda está centrado nas questões bio-
epidemiológicas do sujeito, necessitando configurar-se num dispositivo
importante para a construção de um saber sobre o sujeito, onde este poderia
estar se questionando e refletindo para além de sua doença, momento oportuno
para a troca de saberes e estreitamento de laços. Para tal, é importante que o
enfermeiro possa se utilizar de conceitos que possam ser uma ferramenta para a
construção de uma consulta de enfermagem, agregando, além dos problemas de
saúde, o reconhecimento das vulnerabilidades individuais, psíquicas e coletivas
dos sujeitos.
Para se trabalhar com o sujeito portador de HIV/AIDS, algumas teorias podem ser
utilizadas; entre elas, a abordagem humanista, comportamental e político-
social. Pois o que percebemos é que a as abordagens educativas têm falhado por
não contemplar o aspecto afetivo na construção do conhecimento, uma vez que os
modelos estão orientados fundamentalmente nos aspectos cognitivos(11).
Além disso, outros aspectos merecem ser abordados, como as relações de gênero,
a posição/condição/situação de mulheres e homens no mundo contemporâneo, os
direitos das mulheres como direitos humanos, as relações conjugais e o poder
que nelas circula, as estereotipias e os direitos reprodutivos e sexuais(12).
Defende-se uma consulta de enfermagem como um cuidado no qual sejam gestadas as
dimensões ética, estética e política, onde o sujeito possa narrar sua história
sem ser formatado a partir de pensamento reflexivo linear de causa e efeito,
sem juízos ou cobranças de enquadramento à ciência hegemônica, onde ele possa
se dizer, narrar sua história e, a partir dessa narrativa, criar outras formas
de existência. Entende-se, portanto, que a base filosófica e o referencial
teórico adotados pelo enfermeiro vão nortear e conduzir a sua prática clínica,
assim como os efeitos produzidos por esta prática.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebemos, nesse sentido, o termo vulnerabilidade como a suscetibilidade do
sujeito a uma possibilidade de adoecimento, resultante de um conjunto de
aspectos sociais, culturais, epidemiológicos, psicológicos e biológicos,
recolocando o sujeito em sua relação com o coletivo. Estes aspectos devem ser
analisados tanto objetivamente como subjetivamente, ou seja, devem ser levadas
em consideração a dimensão simbólica, a construção de processos de identidade e
as vulnerabilidades dos indivíduos.
Faz-se necessário, além de identificarmos as vulnerabilidades que emergem na
vida desses sujeitos, entender como estes organizam suas experiências a partir
do modo como eles sentem, representam e dão um sentido a estas experiências.
Desta forma, pode-se pensar na consulta de enfermagem como um lugar onde as
narrativas sejam produzidas. Podemos então produzir a consulta de enfermagem ao
paciente portador de HIV/AIDS, percebendo e identificando suas vulnerabilidades
onde a partir da mediação da história narrada e da escuta atenta, pode ser
produzida um nova história, um espaço de criação e recriação de novos
significados.
É fundamental pensarmos, portanto, qual é a noção de sujeito que temos e como
este se relaciona consigo e com os outros, pois essa concepção é que deveria
nortear e fundamentar os conceitos e a prática clínica do enfermeiro.