Angústia de mulheres trabalhadoras de enfermagem que adoecem por distúrbios
osteomusculares relacionados ao trabalho
INTRODUÇÃO
Os Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT) vêm assumindo um
caráter epidêmico, pela expansão dos casos, gerando incapacidade para a vida
que não se resume apenas ao ambiente de trabalho e, por conseguinte,
acarretando fortes impactos no sistema de previdência pública e na distribuição
do ônus para o conjunto da sociedade(1).
Os DORT caracterizam-se por um processo crônico-degenerativo e psicossocial,
onde vários aspectos contribuem para o seu surgimento, não havendo uma causa
única e determinada para a sua ocorrência. Fatores como repetitividade de
movimentos, manutenção de posturas inadequadas por tempo prolongado, esforço
físico, pressão mecânica sobre determinados segmentos do corpo, principalmente
membros superiores, trabalho muscular estático, impactos, vibração, frio,
fatores organizacionais e psicossociais podem originar este distúrbio(2-4).
A classificação dos DORT inclui um grupo heterogêneo de distúrbios funcionais
e/ou orgânicos tais como as tenossinovites, tendinites, sinovites,
peritendinites, em particular de ombros, cotovelos, síndromes compressivas dos
nervos periféricos; além de sintomatologias mais disseminadas, como a síndrome
miofascial, fibromialgia e distrofia simpático-reflexa (5).
Atualmente sabe-se que os DORT não são originados apenas por lesões
repetitivas, estando relacionados a diversas atividades, ocorrendo em uma
multiplicidade de profissões.Vários estudos abordam os problemas do aparelho
osteomuscular atribuídos à atividade laboral das profissionais de enfermagem,
revelando um grave problema à saúde dessa categoria no Brasil(6-9).
Outro ponto a destacar é que nem sempre os DORT são reconhecidos ou apontados
como doença do trabalho, já que, na maioria das vezes, as atividades
desempenhadas pelos trabalhadores de enfermagem, em especial as mulheres, no
lar, ou seja, as tarefas domésticas, também demandam um desgaste do aparelho
osteomuscular, dificultando a comprovação da relação da doença com o trabalho
(10).
Inseridas no cenário hospitalar, as trabalhadoras de enfermagem portadoras de
DORT enfrentam dificuldades inerentes ao processo fisiopatológico da doença,
uma vez que os sintomas incluem não apenas a dor e desconforto constantes mas,
também, a diminuição de força, edema e enrijecimento articular, tornando os
DORT um sério problema de saúde no seu cotidiano(10).
Nesse sentido, este estudo, parte de trabalho de doutorado, buscou compreender
o fenômeno ser mulher, trabalhadora de enfermagem, portadora de DORT, uma vez
que a vivência profissional das pesquisadoras tem evidenciado a necessidade de
aproximar-se do cotidiano sofrido dessas mulheres, vislumbrando a possibilidade
de transformações, não apenas na organização do trabalho, mas nas formas de
assistir a saúde dessas trabalhadoras.
TRAJETÓRIA METODOLÓGICA
Tipo de estudo
Para desvelar o fenômeno ser mulher trabalhadora de enfermagem portadora de
DORT e compreender o significado verdadeiro desta experiência, optou-se pela
pesquisa qualitativa e pelo referencial filosófico da fenomenologia existencial
de Martin Heidegger.
O foco da pesquisa qualitativa está na interpretação, com ênfase na
subjetividade, merecendo grande destaque pela própria natureza do seu
conhecimento em ciências humanas, sociais e da saúde(11).
A pesquisa fenomenológica representa um método interessante para a área de
enfermagem, pois convida a repensar o caminho qualitativo da existência, a
redescobrir o sentido de ser humano no mundo, o que possibilita a compreensão
do significado das experiências relativas ao processo saúde-doença vividas nas
diversas fases do ciclo vital(12).
População e local do estudo
A pesquisa teve como sujeitos seis mulheres trabalhadoras de enfermagem
portadoras de DORT, quatro auxiliares e duas técnicas de enfermagem. A escolha
dos sujeitos foi definida pelo acesso aos dados do Serviço de Assistência
Médica e Social ao Servidor (SAMSS) de um hospital escola situado na região
oeste do município de São Paulo. As áreas de atuação das trabalhadoras eram
clínicas cirúrgicas de ortopedia, geriatria, maternidade e central de material
e esterilização. Julgamos importante elucidar esses dados para melhor
caracterização dos sujeitos estudados, no entanto, esses fatores não
interferiram nos resultados do estudo.
Coleta de dados
Antecedendo a coleta dos discursos, o projeto da pesquisa foi avaliado e
aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da
Universidade de São Paulo (Protocolo 405/2004) e pela Comissão de Ética para
Análise de Projetos de Pesquisa da Diretoria Clínica do Hospital das Clínicas
da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Protocolo 499/2005).
Considerando o que preconiza a Resolução 196/96, sobre as diretrizes e normas
regulamentadoras de pesquisa com seres humanos, as mulheres entrevistadas foram
esclarecidas sobre o objetivo da pesquisa bem como sobre a manutenção do
sigilo, o anonimato de sua pessoa e do direito de participar ou não do estudo.
Após tais esclarecimentos, foi solicitada a assinatura do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido.
Primeiramente foi mantido contato telefônico com as trabalhadoras de enfermagem
previamente selecionadas pela listagem do SAMMS, onde foi realizado o convite
para a participação do estudo. As entrevistas com as trabalhadoras que
aceitaram participar do estudo foram agendadas em data e horário escolhidos por
elas, possibilitando maior liberdade e o mínimo de interferência na realização
dos encontros, fatores essenciais na pesquisa fenomenológica. A identidade das
mulheres foi preservada, utilizando-se nomes fictícios para a identificação de
cada discurso colhido. As entrevistas foram gravadas em fita K7 e norteadas
pela seguinte questão: Gostaria que você me contasse a sua experiência, como é
para você ser mulher, trabalhadora de enfermageSm convivendo com um distúrbio
osteomuscular?
Análise dos discursos
Para análise dos discursos realizou-se a transcrição na íntegra, a leitura e
releitura, a busca de unidades de significado e a identificação de categorias,
segundo o referencial filosófico de Martin Heidegger.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A análise dos discursos possibilitou a identificação de quatro categorias: "O
ser- no- mundo vivenciando os DORT", "A angústia da trabalhadora de enfermagem
que vivencia os DORT", "A trabalhadora de enfermagem vivenciando a ambigüidade
da solicitude" e "A transcendência da trabalhadora de enfermagem vivenciando o
DORT". No presente estudo, optou-se por apresentar a categoria "A angústia da
trabalhadora de enfermagem que vivencia os DORT", considerando que esta
representa mais significativamente o cotidiano das mulheres que experienciam os
DORT, uma doença crônica e incapacitante.
A vivência dos DORT faz emergir nas trabalhadoras uma variedade de sentimentos,
entre os quais a angústia que, segundo Heidegger (13), pode ser definida como a
consciência de que somos ser-para-morte, seres para o fim.
No contexto do adoecer, as trabalhadoras de enfermagem experimentam muitas
limitações, considerando que, na maioria das vezes, essas mulheres têm uma vida
ativa, respondendo pelas atividades domésticas e profissionais, e a nova
situação as obriga a tomar consciência de que a vida mudou; e que as
transformações acarretadas pela doença já se instalaram e o amanhã é incerto na
vida delas. Assim, as manifestações dolorosas, as incertezas quanto às
habilidades físicas e quanto às respostas frente aos tratamentos fazem as
trabalhadoras vivenciar a angústia, conforme apresentado a seguir:
...não vejo melhora, sabe... de tudo eu já fiz, tudo...eu fa-lei,
chega uma hora que você cansa né, eu logo vô parar também porque eu
já tô cansada, sabe de você ficar pra cima e pra baixo, faz uma
coisa, faz outra. Aí se tem que deixa casa, deixa filho, deixa
tudo... pra ficá ali só investir em você, só... e você não vê
resultado...(Laura)
Na maioria das mulheres, o cansaço e a desmotivação estão relacionados com as
respostas ineficazes ante os tratamentos, já que nos discursos pudemos perceber
que elas investem em diversas formas de tratamento, não somente na terapêutica
medicamentosa, como em fisioterapia, acupuntura, psicoterapia, entre outros.
Os DORT não são causados por um esforço repetitivo qualquer, as causas vão além
dos sintomas físicos, passam pela organização do trabalho, dificuldades
interpessoais bem como os fatores ergonômicos. É certo que pacientes com DORT
apresentam evidências de depressão, ansiedade e angústia. Porém, em geral,
trata-se de quadros decorrentes de situações concretas de perda da identidade
no trabalho, na família e no círculo social, além da penosidade de se submeter
aos tratamentos longos, de resultados lentos e incertos, e perícias nas quais
estão sendo constantemente questionados como se estivessem querendo "estar
doentes" (14).
Assim, um dos principais problemas dos DORT é que dificilmente um único tipo de
tratamento é suficiente para amenizar os sintomas dolorosos, ou seja, para que
os pacientes sintam uma melhora efetiva é necessária a associação de diferentes
tratamentos. É importante salientar, ainda, que o afastamento das atividades
profissionais representa um dos fatores de maior relevância no controle dos
sintomas ocasionados pela doença. No entanto, nem sempre isto é possível,
conforme aponta a literatura.
Estudo realizado com uma equipe de enfermagem de uma unidade de terapia
intensiva pós-operatória evidenciou que, mesmo apresentando dores durante a
jornada de trabalho, e com uma elevada taxa de absenteísmo, muitos
trabalhadores continuavam ativos(8).
Curiosamente, as mulheres, que trazem na sua história a essência do cuidar,
muitas vezes despreocupam-se com a sua própria saúde, relegando o tratamento
para um segundo plano, adoecendo solitárias com suas queixas tímidas em relação
ao sofrimento por DORT(10) .
Portanto, observa-se que há uma resistência ao afastamento do trabalho não
apenas por parte dos profissionais médicos, mas das próprias trabalhadoras que
convivem com os DORT, conforme pudemos observar nos discursos.
O relato de Marília mostra que o agravamento da doença exigiu que essa
trabalhadora se afastasse do trabalho, gerando nela um sentimento muito grande
de incapacidade, pois para ela seria impossível um dia exercer sua profissão
novamente:
...em alguns momentos achei que eu não pudesse mais trabalhar mesmo
aí comecei a fazer um tratamento intenso com psicoterapia... Eu tava
precisando mesmo (choro, silêncio) (Marília)
Por outro lado, somente na angústia mais profunda é que se abrem oportunidades
para a cura, ou seja, na fase mais difícil da doença, a angústia experimentada
pela trabalhadora foi tão intensa que repercutiu de forma decisiva em seu
tratamento, já que ela reconheceu a necessidade de procurar outras alternativas
para o seu tratamento, momento em que ela investe na psicoterapia.
Heidegger(13) afirma que somente na angústia subsiste a possibilidade de uma
abertura privilegiada, na medida em que ela singulariza, ou seja, retira a pre-
sença de sua decadência e lhe revela possibilidades. Isso significa que o ser
humano só pode investir nele próprio quando se percebe e aceita sua real
situação.
A literatura evidencia que os trabalhadores têm dificuldade em aceitar a
doença, procurando um tratamento específico quando os sintomas já são mais
graves e comprometeram grande parte das funções (3).
Ao vivenciar a angústia por estar acometida por DORT e se ver impossibilitada
para o trabalho e para uma diversidade de tarefas simples do cotidiano, as
trabalhadoras podem reelaborar sua vida mediante as novas condições. Porém,
este processo é demorado e a dificuldade em aceitar as limitações e a
incapacidade torna ainda mais sofrida a convivência com a doença, conforme
contam as trabalhadoras:
...e para aceitar, como eu estava te falando é duro, você é uma
pessoa ativa, de repente você não pode fazer mais nada... (Inês)
...você muitas vezes fica triste, chora...porque você fica vendo
pessoas da mesma idade que você e que fazem tudo, tem aquela
disposição, não sentem dor nenhuma... e você com aquelas dores
horríveis...(Eliete)
Os trechos de Eliete e de Inês evidenciam a importância que atribuem às
limitações, fazendo comparações do seu estado de saúde atual, com o estado de
saúde anterior ou mesmo de outras pessoas na mesma idade, revelando a angústia
por dar-se conta de uma fragilidade que é individual.
As proposições de Heidegger (13) revelam que a fragilidade da existência é algo
imperceptível ao ser humano no cotidiano, porém, é com base na percepção
singular de que somos essencialmente finitos e de que os nossos dias estão
contados, é que se pode experimentar a angústia.
Dessa forma, compreendemos que à medida que ocorre o avanço do processo
fisiopatológico dos DORT, inevitavelmente, as mulheres sentem a angústia, pois
elas não criam mais expectativas sobre a sua condição, sentindo a fragilidade
da existência e a imprevisibilidade dos acontecimentos.
Notamos que elas se comparam também a outros profissionais da equipe de
enfermagem, ressaltando que hoje elas estão "assim", mas que já foram muito
úteis e sacrificaram suas vidas pelos pacientes e pela manutenção da qualidade
de assistência para o funcionamento adequado do hospital:
...porque olha, ali... Eu já dei meu sangue ali viu... (Laura)
...uma das pessoas me disse, tem 20 anos que eu trabalho nesse mesmo
setor, e eu nunca tive nada... Mas depende do que você faz e do que
você deixa de fazer. Não era que nem a gente que só ficava dobrando e
guardando roupa, fazendo os pacotes, as compressas, são bastante
coisa, né... (Neide)
A fala de Neide aponta sua inquietação com a opinião do colega, porque o mesmo
trabalhou há muito tempo no mesmo setor em que ela trabalhava e nunca teve
problemas de saúde. O discurso deste colega desencadeia na trabalhadora de
enfermagem uma espécie de revolta, no qual ela explicita que nem todos os
trabalhadores se envolvem seriamente com a dinâmica de trabalho,
sobrecarregando os outros trabalhadores. Por outro lado, denuncia a sua
angústia imposta pelas limitações que são individuais, assim como a
predisposição para a doença.
Nesse aspecto, as trabalhadoras de enfermagem submetem-se constantemente a
condições de trabalho inadequadas, extrapolando as inúmeras habilidades
exigidas no desempenho das suas funções, estando muito suscetível à lesões
músculo esqueléticas, atribuídas principalmente a fatores ergonômicos e
posturais inadequados, presentes na rotina de trabalho assistencial (7,10).
Na realidade, percebemos que as mulheres trabalhadoras de enfermagem carregam
em si uma certa culpa por terem adquirido os DORT, embora reconheçam a
influência dos fatores externos no aparecimento da doença, assim, ao indagá-las
sobre como é conviver com a doença, elas expressam um intenso desejo de
continuar trabalhando na eqüidade dos demais profissionais da equipe de
enfermagem:
...eu me cobro, porque eu gostaria de trabalhar com os meus colegas
ombro a ombro, de igual para igual. Então, às vezes eu não consigo,
porque tem algumas restrições, mas eu acho que eu me igualo assim em
conhecimento... (Marília)
No corpo de Marília estão as marcas dos DORT, caracterizadas pela dor, perda de
força e pela restrição para determinados movimentos, o que torna mais evidente
ainda sua fragilidade. No entanto, seu discurso demonstra que de alguma maneira
ela percebeu que o seu conhecimento também é uma ferramenta importante para o
cotidiano do trabalho.
Ser mulher, trabalhadora de enfermagem, vivenciando os DORT, traz à tona
sentimentos diversos que envolvem a questão da fragilidade do corpo, traduzida
pelas inúmeras limitações, pela dor e pela dificuldade em realizar determinados
movimentos e pela impossibilidade de "ser a mesma" de antes:
...e você não tem assim uma esperança que você vai conseguir voltar a
ser o que você sempre foi... (Eliete)
O sentimento expresso por Eliete demonstra sua falta de esperança em ser a
mesma pessoa, momento em que ela experiencia a angústia, porém é diante dessa
vivência que ela encontra-se a si-mesma e pode ser ela própria.
Heidegger(13) cita que a morte é, entre as possibilidades, a mais pessoal, mais
ímpar do ser-aí e essa é justamente a fonte da angústia. Nesse aspecto, a
mulher trabalhadora de enfermagem convivendo com os DORT, ao pensar em suas
limitações, suas restrições para o trabalho, aproxima-se de sua finitude, onde
poderá viver de forma autêntica ou inautêntica, em função do medo de se
confrontar consigo mesma e com o seu ser-para-o-fim.
...a gente começa assim, quando tem uma lesão assim, na mão, mão
direita, quando imobilizava a mão não conseguia fazer nada com a mão
esquerda, queria morrer... (Marília)
A verbalização de Marília revela que seu mundo-vida foi intensamente modificado
em razão da doença e quando, ao longo do discurso, refere "mão direita",
evidencia-se que na sua relação com o mundo e com as coisas do mundo ela
percebe sua incapacidade. Passa assim, a questionar sua existência, onde o
"querer morrer" parece o fim de tudo, o fim de se deparar com uma fragilidade
tão íntima, tão sua, explicitando a angústia desta trabalhadora que se percebe
enquanto ser-para-morte.
Além disso, em vários momentos durante as entrevistas, as mulheres se remetem a
acontecimentos passados, recordando-se de fatos marcantes da doença, os quais
as sensibilizam ainda mais, pois trazem a elas a consciência do adoecimento e
lembranças do agravamento do seu estado.
Na maioria das vezes, essas lembranças estão ainda vivas na mente das mulheres,
pois repercutiram imensamente em suas vidas, fazendo com que outras pessoas
participassem da sua doença e visualizassem ainda mais as suas dificuldades e o
agravamento do seu estado como no trecho subseqüente:
...se eu pegar um peso hoje, eu vou embora na cadeira de rodas, como
eu já fui uma vez... cheguei no pronto-socorro de cadeira de rodas,
travei, não deu para andar, foi uma cena assim terrível, que eu não
quero mais lembrar disso... (Júlia)
Algumas lembranças de eventos que marcaram a limitação ou que evidenciaram
ainda mais as características da doença fazem emergir nessas trabalhadoras o
sentimento de angústia. Os comprometimentos, que não são poucos, as inúmeras
adaptações que elas necessitam fazer para continuar interagindo no mundo e com
as coisas do mundo obrigam as mulheres a remeter um olhar mais profundo para a
sua existência, transmitindo a elas a noção exata de que somos ser-para-a-
morte, dada a consciência que ali se faz presente por ocasião do adoecimento.
A vivência dos DORT é experimentar um mundo novo, um mundo repleto de
alterações físicas, marcadas pela dor, por efeitos colaterais dos medicamentos
e mais, por dificuldades físicas próprias do aparelho osteomuscular. Após o
início da sintomatologia, e à medida que a doença se agrava, a rotina de vida
dessas mulheres apresenta uma série de modificações, caracterizadas por
limitações nos movimentos e por sensação de incapacidade para inúmeras
atividades do seu dia-a-dia (10).
O aborrecimento, a tristeza e o medo aparecem nos discursos das mulheres
trabalhadoras de enfermagem que convivem com os DORT. Assim, à medida que elas
vão se percebendo em um novo contexto de vida, elas se questionam quanto ao
futuro, quanto ao prognóstico da sua doença e inevitavelmente fazem reflexões
acerca das suas capacidades e limitações. O futuro passa então a ser mais
incerto, mais obscuro, e, pouco a pouco, estas mulheres admitem a sua
fragilidade enquanto ser-no-mundo.
O caminho até este estágio é longo e incerto, pois os profissionais ainda não
têm muito domínio no diagnostico precoce e rápido. As patologias
musculoesqueléticas que podem provocar sintomas dolorosos são inúmeras, mas o
que ocorre na pratica clinica diária é que, dentro do conhecimento cientifico
atual, não se consegue ainda diagnosticar a razão etiológica do quadro doloroso
na maioria dos pacientes(14).
Os discursos abaixo demonstram a náusea ontológica, manifestada pelo
aborrecimento, tristeza e principalmente dúvida, nos quais as trabalhadoras se
questionam e questionam aos profissionais da saúde quanto às chances de
recuperação, de melhora e do seu próprio futuro:
...eu vim aqui doutor para o senhor tentar resolver o meu problema,
que não é possível eu fazer fisioterapia e não ver um resultado... Eu
já estava tão aborrecida porque assim você faz a fisioterapia, tudo
bem, mas você continua fazendo força física, então eu melhorava,
fazia uma semana a fisioterapia e eu melhorava, mas o primeiro peso
que eu pegava pronto...maca, cama, de paciente...então eu me aborreci
de tal maneira...(Neide)
A verbalização de Neide evidencia a dificuldade para aceitar a sua nova
realidade e, embora tenha consciência das suas limitações, ela procura
esforçar-se, especialmente no trabalho. No entanto, quando as manifestações
dolorosas surgem em decorrência do esforço físico realizado, manifesta
aborrecimento, esperando que haja uma solução mais imediata e eficiente para o
seu problema.
Ao compreender o mundo vida das trabalhadoras que vivenciam os DORT, evidencia-
se a esperança de uma recuperação, conforme relata Inês:
...eu sempre pensava assim, tanta gente já operou e ficou boa, mas
cada caso é um caso, o meu caso é diferente ele falou:- O seu caso é
diferente não tem nada a ver... Aí eu falei puxa vida doutor,, eu
tinha esperança que você ia me dar uma solução,olha no dia que eu
falei com ele eu fiquei bem chateada....(Inês)
No entanto, ao longo do tempo, vão percebendo a cronicidade da doença e, após
procurarem diferentes tratamentos e opiniões profissionais variadas, demonstram
decepção, e sofrem pela realidade que a elas se apresenta.
Ao serem diagnosticados com esta patologia ficam deprimidas, angustiadas,
sentindo-se inferiores, impotentes, muitas iniciam o uso de uma gama de
medicamentos diários que, muitas vezes, não têm o resultado esperado e vão à
procura de exaustivos tratamentos, culminando com longos períodos de
afastamentos do trabalho(14) .
Além disso, os discursos evidenciaram que as mulheres precisam ouvir uma
resposta mais assertiva em relação à doença e, infelizmente, muitos
profissionais especialistas não fornecem esclarecimentos claros, objetivos. Na
maioria das vezes, isso ocorre na tentativa de amenizar o sofrimento dessas
mulheres. No entanto, à medida que eles procuram ocultar informações, as
incertezas e dúvidas, associadas ao medo do futuro, trazem ainda mais angústia:
...o ortopedista daqui falava: 'Você está pegando peso, mas você não
pode pegar peso'... Aí eu me perguntava: 'que saída eu vou ter?'
(Inês)
Pudemos observar que, após negar a doença, lutar contra os sintomas, insistir
nas tarefas e no trabalho, a mulher trabalhadora de enfermagem precisa chegar
no seu limite quanto à dor e também quanto às limitações, momento em que ela
olha para si, como diz Júlia:
... e eu sou uma funcionária agora que eu tenho restrição de serviço,
eu não posso pegar peso, manuseio de pacientes, pesos e então é assim
agora a minha vida, entendeu? (Júlia)
Segundo Heidegger(13), ao reconhecer a possibilidade da morte é que o ser
humano encontra sua autenticidade, já que a morte é uma possibilidade
incondicional e insuperável, portanto, para o autor, a angústia é um tipo de
náusea ontológica que invade o ser humano quando este está perto de compreender
a incerteza de sua existência.
Ao compreender a mulher trabalhadora de enfermagem vivenciando os DORT,
percebemos que a trajetória percorrida pelas mulheres é extremamente árdua,
porém quando elas se reconhecem, quando o ser-aí se assume enquanto
trabalhadora portadora de DORT, os caminhos parecem se abrir, a mulher se
reconhece como era e como está, permitindo que a sua relação com os outros seja
estabelecida diante da sua nova condição.
...quando eu consegui o CAT eu soube que legalmente eu tinha um
respaldo, o hospital estava reconhecendo... eu tenho um respaldo
assim de pedir uma indenização para a minha lesão...(Marília)
O relato de Marília revela que, no momento em que ela, "ser de
intersubjetividade", aceitou que o ser-com estava pautado na verdade do seu
ser-aí, passa a compreender que, mesmo diante de uma situação tão difícil, ela
pode se beneficiar dos aspectos legais inerentes ao seu processo de saúde-
doença.
...então uma hora realmente eu não tive alternativa, eu tive que
decidir, eu não né, quem decidiu foi a médica, eu chorei pra
caramba.... No dia que ela me mandou para o INSS comecei a chorar,
mas tudo bem... ela entendeu... Então é isso, a gente vai levando o
melhor que a gente pode... (Inês)
Para viver de forma autêntica, a mulher precisa enfrentar sua nova situação; a
presença é e está essencialmente na verdade, a abertura só se dá quando a
presença está na verdade(13), e, por mais que seja difícil, essa trajetória
parece indispensável para que ela possa reelaborar novas maneiras de ser-
mulher-no-mundo.
Ao atravessar pelas dificuldades inerentes ao processo de adoecimento pelos
DORT, as mulheres trabalhadoras de enfermagem vivenciam sentimentos de perda,
de revolta e tristeza, mas a partir do momento em que admitem a sua doença e a
sua nova condição, abraçam novos objetivos, atribuindo novo significado a sua
existência (9).
Ponderando sobre os aspectos apresentados, evidencia-se a necessidade de que as
instituições e trabalhadores atuem em conjunto, no sentido de planejarem e
implementarem estratégias de mudanças nas estruturas e comportamentos para
provocar melhoria das condições de trabalho e promover a qualidade e satisfação
no trabalho dos profissionais de saúde. Considerando que a atual conformação
dos serviços de saúde fundamenta-se em gestões que nem sempre consideram a
organização do trabalho como espaços coletivos de aprender e de compartilhar, a
construção conjunta, envolvendo, de fato, todos, é um processo que requer novos
arranjos de poderes e de saberes que certamente podem dar outros contornos para
o trabalho em saúde e em especial para o trabalho da enfermagem (15,16).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise dos discursos segundo os pressupostos de Martin Heidegger sobre o
existencialismo permitiu compreender que a experiência de vivenciar os DORT faz
emergir sentimentos como a angústia, onde as mulheres passam a questionar sua
existência no mundo e a fragilidade do seu ser. Quando as trabalhadoras de
enfermagem percebem que o mundo-vida é um mundo que deve ser re-criado,
considerando as perdas advindas do processo de adoecimento, elas passam a
interagir com o mundo e com os outros, sob outra ótica, o que significa aceitar
sua realidade, e aprender a lidar com as transformações.
Ao perceber-se mulher trabalhadora de enfermagem portadora de DORT e estando
aberta para uma nova forma de ser-no-mundo, é possível conviver com a doença de
maneira menos sofrida, pois este é o único caminho para que essa mulher possa
re-começar sua história, aceitando sua nova condição enquanto ser no mundo,
transcendendo a doença.
Os resultados apresentados neste estudo direcionam para um repensar nas
condições de trabalho e nas possíveis estratégias para transformar o cenário do
adoecer por DORT na enfermagem, apontando para a necessidade de mais estudos
nessa temática.