Cuidado integral: concepções e práticas de docentes de enfermagem
INTRODUÇÃO
Dada a polissemia que aporta a palavra cuidado, delimitamos, inicialmente,
neste artigo, a nossa compreensão desse conceito, pois o vimos a partir de um
contexto específico, que é a educação e a formação em Enfermagem. Nesse espaço,
onde ocorrem práticas pedagógicas voltadas para o aprendizado do cuidado
humano, há três sujeitos, com necessidades diferenciadas: o discente de
Enfermagem, um aprendiz do cuidado; o docente, que ensina o cuidado; e o
usuário do serviço de saúde, que recebe o cuidado desse aprendiz. Este último,
por sua vez, tem a sua ação cuidativa constantemente mediada pelo docente.
É nosso entendimento, ainda, que as práticas pedagógicas mais consistentes no
ensino de Enfermagem devem ter como centro aprender a cuidar do outro de uma
maneira singular e integral. As práticas de cuidado que buscamos valorizar e
que emergiram como concepções nas falas dos docentes, foram aquelas que
apontavam para a idéia do acolhimento, da resolutividade e da formação de
vínculo, indo além do atendimento às necessidades biológicas e mais imediatas e
alcançando a compreensão de necessidade que o usuário do serviço expressa no
processo relacional que aproxima o cuidador e sujeito cuidado.
É dentro desse processo relacional, onde acontece o cuidado, que percebemos que
o ensino, quando adequadamente conduzido, pode fazer emergir a sensibilidade no
discente, fundamental para sua formação como enfermeira(o) na atenção integral
à saúde do usuário do SUS. Ficou claro ainda que compete ao docente pensar as
suas práticas pedagógicas de tal maneira que estas possam favorecer o despertar
da sensibilidade no aluno, de modo que este pense o cuidado como um valor
humano e como o objeto primeiro da ação em Enfermagem.
O processo educativo, tal como o processo de cuidar, é um trabalho que acontece
sempre no âmbito das relações interpessoais, sempre em interação. Para melhor
compreendermos as concepções dos docentes de Enfermagem sobre o cuidado
integral, pensamos no ensino e em práticas pedagógicas adequadas como aquelas
providas de elementos que não só caracterizam, mas que dão sentido ao cuidar do
outro e, ao mesmo tempo, reafirmam a identificação do aluno com a profissão e
com o Sistema Único de Saúde (SUS), lócus privilegiado onde ocorrem todas as
práticas de ensino desenvolvidas no curso onde foi feito o estudo.
O SUS traz em seus princípios vários elementos que perpassam o conceito de
cuidado integral, e vários deles estão descritos no Programa Nacional de
Humanização (Humaniza-SUS). Este programa aponta vários elementos que compõem o
cuidado integral, sendo que o primeiro deles é o acolhimento, que traz em si a
idéia de resolutividade e, também, de responsabilização. O acolhimento é
[...] um modo de operar os processos de trabalho em saúde de forma a
atender a todos que procuram os serviços de saúde, ouvindo seus
pedidos e assumindo no serviço uma postura capaz de acolher, escutar
e pactuar respostas mais adequadas aos usuários. Implica prestar um
atendimento com resolutividade e responsabilização, orientando,
quando for o caso, o paciente e a família em relação a outros
serviços de saúde para a continuidade da assistência e estabelecendo
articulações com esses serviços para garantir a eficácia desses
encaminhamentos(1).
A resolutividade traz implícita a articulação que o trabalhador deve fazer com
os outros serviços de saúde para a continuidade da atenção a esse outro, o
usuário do serviço. Articulação essa quase sempre é mais facilitada por quem
está dentro do serviço e conhece os entremeios dos encaminhamentos que permitem
atender ao outro e à sua saúde de forma integral.
Assim as idéias de relacionalidade, de interação entre pessoas, de acolhimento,
de responsabilização, a escuta atenta, são elementos que deverão fazer parte do
olhar do docente, no momento de pensar e colocar suas práticas pedagógicas em
ação nos diferentes contextos onde se produz saúde.
O espaço do cuidado se estabelece através da empatia entre ambos, sujeito que
cuida e sujeito que é cuidado, e se realiza através da escuta atenta e de ações
concretas. A mediação deste encontro se dá através do conhecimento como
"ferramenta" do primeiro, o trabalhador de saúde, e pela necessidade do
segundo, o usuário do serviço.
O professor que ensina ao futuro enfermeiro o trabalho em saúde precisa ter a
sensibilidade de (ao colocar o aluno/ aprendiz frente a frente com um usuário-
sujeito com necessidades de saúde) trabalhar práticas pedagógicas que deixem
claro que este é um encontro entre seres humanos, e que ele - o docente - é, de
certa forma, o mediador desse encontro, pois se supõe que detém o conhecimento
que o aluno de Enfermagem ainda está construindo/aprendendo. O aluno é um
aprendiz e, como tal, não tem ainda a dimensão da complexidade que o cuidado
exige para realmente ser integral.
Nesse encontro entre aluno e sujeito cuidado, muitas vezes, se não houver a
mediação do professor, o discente não percebe as diferentes maneiras de ampliar
seu ato cuidativo e pode torná-lo mais técnico e menos integral. Pequenas
ações, formas de tocar ou de se comunicar, esclarecer ao sujeito cuidado o que
se faz, porque se faz dessa forma, como ele pode colaborar, dão qualidade e
aumentam a satisfação daquele que precisa ser cuidado e, também, exigem do
professor uma atenção ao aluno que está sob sua supervisão. Ele também é um
sujeito a ser cuidado, pois a proximidade física e emocional, que o ato de
cuidar exige, pode inibir o discente e tornar o processo de cuidar mais árduo;
e o professor é aquele que facilita essa aproximação e faz a mediação entre o
aprendiz e o sujeito cuidado, garantindo que, se houver algum impedimento por
parte do aluno, ele assume o cuidado e pode finalizá-lo.
Quando um usuário do serviço se 'entrega' a um cuidador que ainda é um
aprendiz, este último desconhece as razões e sentimentos que trouxeram aquele
sujeito ao serviço. Temos, então, uma situação de desequilíbrio, de habilidades
e expectativas diferenciadas onde um - o usuário - busca assistência, em estado
físico e emocional frequentemente fragilizado, junto ao outro - um profissional
supostamente capacitado para atendê-lo e cuidar do outro. O docente deve estar
atento para que se crie um vínculo entre ambos, pois se conseguir esta
sensibilização do aprendiz ao cuidar do outro, neste momento ele pode estar
gerando a ligação afetiva, traduzida pelo respeito não só entre ambos, mas
neste encontro ele está propiciando ao aluno a identificação com o objeto
primeiro da nossa prática cotidiana, que é cuidar do outro e estar sensível e
de prontidão para atender às suas necessidades. Assim, o cuidado humano é
[...] uma atitude ética em que seres humanos percebem e reconhecem os
direitos uns dos outros. [...] consiste em uma forma de viver, de
ser, de se expressar. É uma postura ética e estética frente ao mundo.
É um compromisso com o estar no mundo e contribuir com o bem estar
geral, na preservação da natureza, na promoção das potencialidades e
da dignidade humana e da nossa espiritualidade; é contribuir na
construção da historia, do conhecimento, da vida(2).
Mesmo que o docente consiga a sensibilização do aprendiz no cuidado para com o
outro, este deve estar atento quanto às múltiplas faces que o cuidado
apresenta, dentre elas, a técnico-científica que, por vezes, se sobrepõe às
demais e ao próprio sujeito que vem em busca de ajuda, ou seja,
[...] ainda que o cuidado assuma tal importância na construção dessa
identidade profissional, as práticas têm privilegiado o
estabelecimento de procedimentos cada vez mais complexos, em
detrimento da valorização do sujeito na construção de um cuidado
integral(3).
A consideração acima nos parece pertinente, uma vez que o cuidado se constitui
no principal elo entre todas as profissões de saúde, tanto que ao nos
referirmos sobre a adoção de modelos que priorizam o cuidado, acreditamos que a
"troca de experiências entre docentes e a constante atualização parecem ser
sugestões pertinentes, pois sempre é necessário buscar meios que valorizem o
cuidado humano" (4). O primeiro passo a ser dado neste sentido é a criação de
"um ambiente de cuidado onde as relações de cuidado sejam cultivadas"(4:).
Por relação de cuidado entende-se o relacionamento entre pessoas que exibem
comportamentos de cuidar que são aqueles
[...] que se distinguem pela expressão de comportamentos de cuidar,
que as pessoas compartilham, como confiança, respeito, consideração,
interesse, atenção, entre outros... Em um ambiente de cuidado, as
pessoas sentem-se bem, reconhecidas e aceitas como são; conseguem se
expressar de forma autêntica e se preocupam umas com as outras no
sentido de atualizar informações, fornecendo e trocando idéias,
oferecendo apoio e ajuda e se responsabilizando e comprometendo com a
manutenção desse clima de cuidado(5).
Para que se estabeleça uma relação de ensino entre docente e discente, é
necessário que haja, por parte do docente, uma intenção e uma predisposição
para ensinar. Pois ensinar é
[...] reforçar a idéia de aprender, sem agir como se ela estivesse
tomada de uma vez por todas. É não encerrar o aluno em uma concepção
do ser sensato e responsável, que não convém nem mesmo à maior parte
dos adultos. É [...] estimular o desejo de saber(6).
O aprendiz, por sua vez, apresenta uma atitude responsiva, que pode variar
segundo a forma como é iniciada a relação, através de ações, atitudes e
comportamentos por parte do docente. A percepção da presença real de ambos
envolvidos no processo de aprender permitirá que no processo de ensino/
aprendizado haja maior engajamento por parte do aprendiz e este passa a
responsabilizar-se mais pelo seu próprio aprendizado.
PERCURSO TEÓRICO METODOLÓGICO
Trata-se de uma pesquisa descritiva e exploratória, com abordagem qualitativa,
desenvolvida em um Curso de Enfermagem de uma universidade pública de Mato
Grosso, após a aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital
Universitário Júlio Müller (Parecer nº 315/CEP/HUJM/07). Atendemos todas as
determinações da Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Pesquisa (CONEP) e
todos os participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido, depois de conhecer os objetivos e finalidades do estudo(7). O
anonimato e o sigilo dos participantes foram garantidos.
Os critérios adotados para a seleção dos sujeitos do estudo foram: ser docente
efetivo do curso estudado; estar no exercício da docência há mais de 01 (um)
ano na ocasião da coleta de dados; ser enfermeiro e aceitar participar da
pesquisa; e assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Tivemos 12
docentes do Curso de Enfermagem que aceitaram participar do estudo, sendo 16%
do sexo masculino e 84% do sexo feminino.
Os dados foram coletados no período de maio a julho de 2009 por meio da técnica
da entrevista aberta e individual acompanhada de um roteiro norteador para
aprofundar aspectos de relevância para a pesquisa. Como estratégias utilizadas
para coletar os dados, foi encaminhado, inicialmente, convite a todos docentes,
via e-mail, apresentando os objetivos e as finalidades da pesquisa. À medida em
que houve aceitação por parte destes, foi feito agendamento prévio,
especificando e entrando em acordo com o sujeito do estudo a data, horário e o
local de sua preferência para a entrevista. Foram considerados critérios para
encerrar as entrevistas a "saturação" dos dados, que se caracteriza pela
"repetição de conteúdos relativos aos problemas investigados" nas entrevistas
que sucederam(8).
Após a coleta de dados e as transcrições das fitas, os dados foram organizados
seguindo os seguintes passos: primeira ordenação, classificação por temas e
análise final. Na fase de ordenação, procedeu-se à organização inicial dos
dados por meio da leitura exaustiva de cada entrevista individual e depois do
conjunto de todas que foram feitas. Nesse processo encontramos os núcleos de
sentido e formamos os grandes temas e os classificamos de acordo com sua
repetição e similaridade com os conceitos sobre cuidado integral em saúde. Em
seguida fizemos nova leitura do material, para apreender, nas descrições das
falas, as estruturas de relevância encontradas nos relatos dos docentes. Esses
dados foram submetidos a análise de conteúdo, na modalidade de análise
temática, quando então interpretamos os dados em um constante diálogo com os
conceitos base que deram sustentação ao estudo(8).
Para facilitar a apresentação dos resultados, as unidades nucleadoras,
encontradas nos discursos dos docentes, foram registradas em letra estilo
itálico, identificadas com uma letra, seguida de um número, como por exemplo,
D-1. A letra D corresponde ao docente participante do estudo e o número,
representa a ordem da realização das entrevistas.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Percebemos ao longo das entrevistas realizadas com os docentes a concepção de
cuidado integral é um elemento fundamental para uma prática de Enfermagem de
qualidade. Essa prática deverá ser "capaz de formar profissionais imbuídos de
práticas cuidadoras em saúde, com respeito à pluralidade e à singularidade dos
processos de viver a vida" (9:9). Essa pluralidade pode ser encontrada no
depoimento do docente abaixo, quando explicita a sua compreensão sobre a
integralidade do cuidado.
[...] o sujeito, ele precisa ser visto na sua integralidade, o que
significa pra mim que a gente não tem que preocupar na saúde só com
as necessidades que são individualizadas, orgânicas... [estas são]
uma das dimensões do ser humano, a dimensão orgânica. Mas [...] as
necessidades, elas têm outras naturezas também, necessidades
psicoemocionais, necessidades socioculturais que precisam ser
consideradas no âmbito do cuidar e do ensinar. (D-9)
Outros aspectos sobre o cuidado integral são importantes e o docente D4 faz uma
apropriação entre o que entende por cuidado integral e as formas de articulação
que ele exige.
[...] eu entendo o cuidado integral em saúde como produto do trabalho
de muitos, de vários profissionais de saúde, não acho que seja
produto do trabalho exclusivo do enfermeiro ou da Enfermagem.
Especial porque articula, tem objetivos comuns, é onde estabelece
processo de comunicação, a interação em torno de um processo de
trabalho. (D-9)
O "desenvolvimento do pensamento crítico envolve um processo longo de reflexão
que implica na introspecção pessoal, o que nem sempre é fácil para a maioria
das pessoas"(10), pois compõe-se de "atitudes, habilidades e conhecimento e
traz uma grande dependência do contexto"(10) onde se desenvolve a ação. Como
lembra essa docente:
Bom, [sobre] o cuidado integral na formação do enfermeiro, eu
acredito na possibilidade de que nós, enquanto docentes, devemos
levar o aluno a entender um cuidado de Enfermagem voltado não apenas
para a questão biológica, [para] o corpo doente, o tratamento, ou
direcionado a uma doença, [...] mas também que ele [o aluno] possa
ter a possibilidade de entender os indivíduos, suas famílias, o seu
contexto social, [possa perceber] como a pessoa está inserida no
mercado de trabalho, como é a sua renda, como é a sua escolaridade,
como esses fatores estão fortalecendo a saúde ou como eles estão
desgastando a pessoa e facilitando o desenvolvimento de uma doença.
(D-04)
As concepções de cuidado que estão subjacentes às falas acima remetem ao
sujeito do cuidado como um ser de necessidades diversas e diferenciadas, nas
quais se sobressaem as necessidades de natureza psicoemocional, sociocultural,
educacional, econômica, todas podem associar-se e facilitar 'o desenvolvimento
de uma doença'. Este depoimento da D4 lembra que a complexidade do cuidado
integral remete à complexidade da existência, do viver a vida cotidiana, onde
uma necessidade não satisfeita pode interferir em todas as outras e expor o
sujeito de forma a torná-lo mais vulnerável socialmente e com isso torná-lo
mais suscetível ao adoecimento. Essa perspectiva lembra que as necessidades de
saúde são
[...] busca de algum tipo de resposta para as más condições de vida
que a pessoa viveu ou está vivendo (do desemprego à violência no
lar), a procura de um vínculo afetivo com algum profissional, a
necessidade de ter maior autonomia no modo de andar a vida ou, mesmo,
de ter acesso a alguma tecnologia de saúde disponível, capaz de
melhorar ou prolongar sua vida (11).
O sujeito que cuida, ao acolher o outro e respeitar sua cultura, limites,
entorno social, reafirma-se com um sujeito cuidador. Isto se dá dentro de um
processo relacional com o sujeito que é cuidado, pois ele - cuidador - precisa
compreender e se aproximar da realidade da pessoa cuidada, para, saber que,
quem está ali,
[...] é uma pessoa, não é apenas uma perna, não é apenas um braço, é
uma pessoa com sentimentos, com prazeres, com dores, com direitos,
com deveres. (D-10)
Ser docente de Enfermagem implica dominar várias competências das quais muitas
estão na área pedagógica e outras na área específica de conhecimento que é a
Enfermagem. Para que possamos ensinar alguém a cuidar de outrem, precisamos
reaprender continuamente a cuidar, pois o cuidado exige esta atitude ativa, mas
precisamos também e todos os dias reaprender a ser professor. Esta última
atividade implica em um amplo rol de competências que não nos foi ensinado na
vida acadêmica, mas que dela nos apropriamos por necessidade e com algumas
dificuldades, que acabam por ser contornadas com estudo de autores da área da
pedagogia, como diz a depoente:
[...] procuro trabalhar na minha prática pedagógica, com alguns
autores como o Contreras, ...ele traz [a idéia] de que o aluno quando
ele tem autonomia, ele aprende melhor! Ele se sente responsável pelo
seu aprendizado! É diferente quando você transmite pra ele tudo
àquilo que você acha que é mais importante... assim você não dá
autonomia para o aluno. (D-03)
Nesse sentido, o professor é alguém que estando mais adiantado no processo de
aprendizagem e dispõe de conhecimentos e práticas sempre renovados sobre a
aprendizagem, assim se tornaria capaz de cuidar da aprendizagem na sociedade e
pode melhor garantir aos alunos o direito de aprender (12demo). Seguindo essa
linha de pensamento o docente abaixo assim se expressa:
[...] nas aulas que eu tenho dado, tenho procurado fazer o aluno
pensar como que está a nossa sociedade hoje, como está a dinâmica de
trabalho e da vida mesmo [...] que acesso as pessoas estão tendo aos
alimentos, não só por questões econômicas, mas como a mídia tem
interferido nisso, como que a globalização das coisas e da vida tem
influenciado as pessoas a desenvolver alguns tipos de hábitos. (D-04)
Ao reportar-se aos modos de vida impostos pela globalização e definir esta como
um fenômeno que interfere e induzem novos modos de viver que podem ser
prejudiciais ao ser humano, o docente lembra que está falando como um formador,
que precisa ampliar a visão que o discente tem sobre os processos que nos levam
ao adoecimento, que podem estar no modo de vida, de consumo, de compreensão do
que nos diz a mídia, pois "ensinar exige reflexão crítica sobre a prática, em
um movimento dinâmico e dialético entre o fazer e o pensar sobre esse fazer"
(13). O docente lembra que o meio é um vetor poderoso de indução de novos
hábitos, que acabam por ser prejudiciais a nossa saúde, não podendo, jamais,
ser ignorados no processo de cuidar em Enfermagem.
A reflexão sobre as diferentes maneiras de viver, que podem ser ou não
saudáveis, aparece também no depoimento a seguir, no qual o docente insiste
sobre o aprender reflexivo, que ajude o discente a pensar na importância de que
suas ações nunca sejam apenas de reproduzir conhecimentos, mas de criação, de
conexão com o outro e seu mundo.
[...] nas minhas aulas práticas [eu tenho] buscado introduzir os
alunos [para que] percebam que o que eles estão fazendo não é
simplesmente uma atividade mecânica, mas sim algo que precisa ser
refletido, que tem uma razão de ser. E também o conhecimento
científico [que deve] embasar seu procedimento, [e além disso] nós
precisamos olhar para o sujeito enquanto sujeito integrado, como um
todo, [que] não tem só cabeça, tronco e membros, mas que está
inserido numa sociedade, que está com seus problemas econômicos, que
tem uma cultura, que tem um conhecimento. (D-08)
O educador deve voltar-se para si mesmo, refletir e adotar uma postura de
questionamento tanto sobre sua formação como precisa também conscientizar-se de
que esta deve ser permanente e contínua e acompanhar todas as transformações da
realidade (13:93). Este olhar crítico e reflexivo sobre a prática atual ou a
passada é o que ajuda e a melhorar a próxima prática pedagógica. Essa concepção
está inserida no relato seguinte:
[...] a cada ano você vai repensando suas práticas, vai repensando em
como você pode melhorar, o que você pode modificar, porque eu vejo
hoje, que quando se fala em pedagogia moderna ou pós-moderna, as
pessoas estão confundindo muitas coisas. Então, muita gente está
achando que hoje ser um professor moderno não é mais você partilhar
conhecimento com aluno, é você sempre jogar pro aluno buscar [...] E
não foi isso que Paulo Freire quis dizer quando ele criou a pedagogia
do oprimido, mas sim construir juntos (D-02).
Assim, ao refletirmos continuamente sobre o nosso fazer cotidiano como docentes
podemos melhor aproveitá-los para a melhoria de nosso fazer.
A "autonomia e a responsabilidade de um profissional dependem de uma grande
capacidade de refletir em e sobre sua ação"(14). O docente valoriza a reflexão
sobre a ação realizada quando promove a discussão das atividades realizadas
diariamente, conforme ilustra o relato:
[...] Sempre no final das atividades, eu sento aqui com eles [alunos]
na sala de reuniões, e a gente discute o que eles vivenciaram naquele
dia e a gente tem trabalhado muito nesse sentido[...] (D-4)
O desenvolvimento do pensamento crítico "envolve um processo longo de reflexão
que implica na introspecção pessoal, o que nem sempre é fácil para a maioria
das pessoas"(14), mas a prática pedagógica, tal como o processo de cuidar, é um
trabalho que acontece sempre no âmbito das relações interpessoais. Sendo assim,
as mesmas devem ocorrer sempre em interação, e essa favorece esse processo de
estar juntos para o aprendizado do cuidado ao outro.
O docente, quando traz o conhecimento teórico e o aplica, o torna mais
inteligível ao aluno e isso acontece mais nas práticas de estágio. Nesse
movimento de ensinar a cuidar do outro e cuidando também do aluno, para que ele
não se contamine, que fique mais relaxado, dando-lhe mais segurança para o
cuidado, permite ao aprendiz vivenciar o que é ser cuidado pelo docente que
cuida não só da aprendizagem dele, aluno, mas também dele, pessoa que está
aprendendo, que precisa de tolerância e paciência por parte do docente. Nesse
processo, o docente cria a ambiência necessária ao aprendizado sobre o cuidado
do outro, que é a finalidade do curso de Enfermagem.
[...] eu sempre trago essa disciplina pra realidade local, pra
realidade do campo de prática, pra realidade na qual o aluno está
inserido, sem esquecer do aluno. Então, eu entendo que, essa
contextualização da teoria com a prática vigente, é que vai
transformar esse cuidado, porque o ensino é como Waldow diz, ele faz
parte do construto do cuidado, quando você está compartilhando o
conhecimento com alguém, você também está cuidando! (D-02).
Assim, ao pensarmos em ensino e práticas pedagógicas adequadas, eficientes e
éticas, precisamos pensar nos elementos que caracterizam e dão sentido ao
cuidar do outro também, desde a perspectiva das políticas públicas que estão
postas para os serviços de saúde e que precisam ser ensinadas aos futuros
enfermeiros. Um desses elementos é o acolhimento que, como política e programa,
pode ser visto em sua inteireza no Programa Nacional de Humanização - Humaniza
SUS(1). Este diz que acolher é receber o usuário desde a sua chegada ao
serviço, responsabilizar-se integralmente por ele, ouvir suas queixas, permitir
que ele expresse suas preocupações, angústias, praticando a escuta atenta do
que o aflige. Essa concepção aparece no depoimento do docente D8, a seguir.
[...] precisamos estar atentos a outras dimensões desse cuidar, não
só as doenças em si ou as partes que estão envolvidas nesse processo
de doença, ou que passaram por algum procedimento, mas quem está
sendo atendido ali [é] um sujeito que tem medos, que tem ansiedades,
que é pai de família, que é mãe de família, que deixou um filho em
casa, que precisa voltar ao trabalho... (D-8).
Como diretriz para a apreensão do cuidado integral, podemos entender que este é
também uma "ação técnico-assistencial que pressupõe a mudança da relação
profissional/usuário e sua rede social através de parâmetros técnicos, éticos,
humanitários e de solidariedade, reconhecendo o usuário como sujeito e
participante ativo no processo de produção da saúde"(15). Mas esta ação precisa
ser complementada com outros elementos, que vão dar um sentido mais humanizador
ao cuidado, que não pode ser visto apenas como uma ação 'técnica e
assistencial'. O acolhimento é um desses elementos e, nas práticas de produção
em saúde, pode ser entendido como ato ou efeito de acolher que expressa, em
suas várias definições, uma ação de aproximação, um "estar com" e um "estar
perto de", ou seja, uma atitude de inclusão(16).
O docente, ao adotar práticas de ensino e práticas de cuidar próprias, como
enfermeiro-docente que é, valoriza os múltiplos elementos que se somam e que
compõem o cuidado integral ao usuário. Nesse movimento, ao mostrar-se ao
aprendiz como sujeito cuidador, ele ajuda o aluno no seu processo de formação
valorizando atitudes de aproximação com o outro, acolhendo esse outro nas suas
necessidades de saúde e também apoiando os familiares dos sujeitos que são por
eles cuidados. Podemos ver essa preocupação na fala da depoente 1 [...] como eu
trabalho com crianças, a gente passa a ver [tanto] a doença que afetou a
criança como a criança afetada, [vê] ainda o cuidador afetado [que na
pediatria] é a mãe, o pai ou o responsável (D-1).
Assim, todos os elementos do cuidado integral podem ser 'transferidos',
amalgamados, juntados e vir a somar-se quando alguém de uma família adoece, ela
adoece junto, suas rotinas mudam, seu tempo para si muda, os sentidos ficam
voltados para aquele que está doente. O aluno, como aprendiz de cuidador,
precisa ter clara essa dimensão do cuidar que se estende por toda a família e,
não raro, também pela equipe de Enfermagem.
Na internação pediátrica é comum o envolvimento de toda a equipe que, ao cuidar
integralmente e cotidianamente de crianças doentes, acaba por sensibilizar-se
com os problemas que as afetam e também à sua família. Formam assim vínculos
que vão além do cuidado técnico com a família e a criança. Na realidade onde
realizamos esse estudo o vínculo que extrapola o espaço do cuidado e leva a
amizades duradouras entre cuidadores e pessoas cuidadas são mais comuns na área
pediátrica do que nas outras áreas clínicas.
Há profissionais de Enfermagem procuram voltar para trabalhar comunidades onde
aprenderam a ser enfermeiros. Temos casos de ex-alunos que foram absorvidos nas
mesmas comunidades onde realizaram seus estágios curriculares.
Mas, da mesma forma que há alunos que se integram e retornam como trabalhadores
aos locais onde fizeram seus estágios, há, também, momentos na prática
pedagógica docente, de alguns alunos literalmente detestarem uma determinada
clientela ou um espaço de prática. Nesse casos, relativamente frequentes, os
docentes precisam de um especial sentido de alteridade para poder dar o apoio
que o aluno precisa quando não há essa identificação imediata entre o discente
e uma clientela ou uma determinada prática, pois o aluno na sua imaturidade,
pode, por insegurança provocar iatrogenias no processo de cuidar. Nesses
momentos, os docentes precisam recorrer a outras técnicas didático-pedagógicas,
específicas para a área da saúde, para apoiar o aluno e fazer com que ele
perceba que o cuidado ao humano extrapola o sentido individual de gostar ou
não, se identificar ou não, pois o cuidar de um outro ser, igual a nós mesmos,
portador dos mesmos direitos, exige um tipo de entrega singular, que não é
comum em outras profissões, mas é ela que nos faz cuidadores genuínos.
Há outros momentos no processo de aprendizagem em que se trabalha com
sofrimentos intensos e mesmo com o enfrentamento da morte. Para dar sentido ao
ato de ensinar em Enfermagem e, ao mesmo tempo, construir um sujeito que seja
sensível e solidário com o outro que sofre, sem perder a objetividade que
muitas situações de agravamento de saúde exigem do enfermeiro, há necessidade
de envolvimento e conhecimento especiais do docente de Enfermagem, que nem
sempre estão claros nas teorias pedagógicas.
Estas modalidades de ensinar a enfrentar o sofrimento e a morte de um ser igual
a nós mesmos exigem novos conhecimentos pedagógicos, e estes precisam ser
recriados para o adequado exercício da docência em Enfermagem. São habilidades
e competências que não estão claramente dadas nas atuais teorias pedagógicas;
assim nós, docentes de Enfermagem, precisamos investir para produzir novos
conhecimentos que nos ajudem a melhor conduzir o ensino na nossa área.
Tal como o usuário, o nosso aluno também precisa ser acolhido, atendido, ouvido
e ter respostas às suas necessidades, para tornar-se um profissional de saúde
ético, solidário e corresponsável pelo outro que recebe o cuidado. Pressupomos
que, quando somos/estamos ainda como alunos de um curso universitário - a
depender de nosso nível de maturidade emocional - podemos introjetar valores,
atitudes, maneiras de cuidar que venham muito mais reproduzir aquilo que o
professor faz de fato, do que aquilo que ele diz ser importante fazer. No
processo de ensino-aprendizagem se o docente não estiver atento às suas
atitudes e práticas, ele pode estar mais 'deformando' do que formando pessoas,
pois apreendemos valores quando os vemos concretizados através das ações, ou
seja, docente ainda é um espelho no qual o discente se enxerga.
Concordamos que ensinar a cuidar inclui contribuir para o
crescimento do outro, reconhecer a sua independência e deixá-lo em
liberdade, incluindo-se o da humildade, um dos elementos que exige do
cuidador disponibilidade para aprender sobre o outro e sobre si
mesmo, superar a pretensão, falsa modéstia e avaliar as próprias
limitações e poderes(19).
Da mesma maneira, o docente genuinamente interessado no processo de ensinar em
Enfermagem precisa desenvolver a paciência, um atributo da docência e um
importante coadjuvante no processo de aprender a cuidar do outro. É fundamental
permitir ao aluno crescer "em seu tempo e de sua maneira, ter tolerância com as
suas muitas limitações, confusões e divagações, ser honesto e sincero" para com
aquele que está aprendendo, pois a sinceridade é uma condição necessária para
que o aprendiz valorize o que sabe e se abra para aprender o que ainda não sabe
(17).
A coragem, em fina mescla com a responsabilidade, é um componente importante na
docência do cuidado, pois requer do docente-cuidador que este, muitas vezes, se
lance no desconhecido e confie nas suas próprias capacidades de apoiar sem
tirar as oportunidades de o aluno aprender. O docente de Enfermagem precisa
estar ali, junto ao aluno, para ajudá-lo e apoiá-lo e, ainda que este erre, o
professor precisa recorrer a sua sensibilidade para não reiterar no aprendiz o
medo, mas sim que ele, o aluno, aproveite o erro para desenvolver a
autoconfiança de se acreditar, como aluno que ainda é, estar em 'processo de' e
isso lhe dá o direito de errar mas acrescenta ao professor a responsabilidade
de complementar o cuidado, mostrando ao aluno que ele não é incapaz, mas esta
ainda aprendendo a cuidar.
O ensino do cuidado exige esta complementaridade entre docente e discente e o
erro nesta área do conhecimento precisa ser visto como em todas as outras, mas
nela, ao docente compete não deixar que este erro prejudique o sujeito cuidado
e o que esta aprendendo a cuidar. Por todas essas razões que as atividades de
acompanhamento de práticas em Enfermagem exigem um número menor de alunos por
professor que nas demais áreas, na razão de dez alunos para um professor.
A esperança e a confiança são aspectos essenciais no ato de ensinar a cuidar e,
para essa atividade, é fundamental a capacidade de que o docente sempre
acreditar nas potencialidades do aprendiz para ajudar no seu desenvolvimento
como futuro cuidador. Isso precisa ser feito em concomitância com atitudes de
apoio ao discente para que ele supere os próprios limites e cresça
desenvolvendo a responsabilidade, a ética, o conhecimento e a autoconfiança,
pontos em que docente genuinamente interessado e envolvido no processo de
aprender do aluno de Enfermagem faz enormes diferenças.
Assim, finalizamos lembrando que o
fenômeno da aprendizagem, na relação pedagógica, contempla não só a
informação, mas também aprende-se a (re)estabelecer uma relação entre
quem ensina e aquilo que é ensinado. Ensina-se e aprende-se a
refletir sobre a realidade, colocando-se frente a um conhecimento
contextualizado, provocando mudanças nas formas de pensar, sentir e
agir(18).
CONCLUSÃO
O estudo teve como eixo central compreender as concepções sobre o cuidado
integral dos docentes de Enfermagem e em como estas interferem na formação do
enfermeiro. Ao iniciarmos este estudo tínhamos como pressuposto de que docente
que domina a arte de cuidar, consegue cuidar tanto do aprendizado do aluno como
do outro que o aluno esta aprendendo a cuidar, mas ao terminar o estudo pudemos
perceber que ensinar em Enfermagem exige muito mais que o domínio das artes do
cuidado, precisamos pensar em uma pedagogia para melhor ensinar a cuidar da
vida e da morte, da dor e do sofrimento e esta ainda não está dada nas teorias
pedagógicas tal como as conhecemos na atualidade.
O cuidado integral aporta muitos elementos que podem servir como base para se
pensar estas novas pedagogias e novos projetos pedagógicos que nos ajudem no
planejar e executar cotidiano do ensino em Enfermagem. Percebemos na vasta
produção sobre o tema, que há um grande potencial nas teorizações sobre cuidado
integral que podem apoiar o desenvolvimento de novos estudos sobre novas
práticas pedagógicas em Enfermagem e saúde.
A competência pedagógica se revela na ação pedagógica docente, ou seja,
caminhamos no sentido de reafirmar o professor de Enfermagem está condenado a
aprender seu ofício na prática cotidiana reflexiva, já que cada sujeito que
ensina é único e cada dia de ensino é absolutamente singular no mundo da saúde.
A isso acrescentamos, já que falamos desde a Enfermagem: é no espaço concreto
da prática profissional em Enfermagem que as competências para o cuidado são
demonstradas, é no fazer que elas emergem, ou seja, é na prática que
exercitamos nossas potencialidades e nelas também as atualizamos, sobre elas
refletimos coletivamente e só assim as aperfeiçoamos. O ensinar em Enfermagem
precisa ser cada vez mais reflexivo e coletivo, é através das trocas de
experiências e da abertura dos processos de planejar e organizar o ensino aos
discentes que poderemos criar as bases para uma pedagogia que possa contribuir
para melhor ensinar em Enfermagem.