O Sistema Único de Saúde na representação social de usuários: uma análise de
sua estrutura
INTRODUÇÃO
Após vinte anos de sua existência, o Sistema Único de Saúde (SUS) se constituiu
como um instrumento de cidadania a partir de seu perfil inclusivo, deitando
raízes nas transformações sociais realizadas ou desejadas no fim de um dos
períodos mais difíceis do país. Dessa maneira, o SUS extrapola os limites de um
órgão estatal que tem o objetivo de oferecer saúde, sendo alimentado e
alimentando um processo social mais amplo que, ao longo dos anos, sofreu
avanços e retrocessos e comportou-se ora como os seus objetivos preconizavam e
ora sendo reduzido, normalmente a partir de manobras políticas, a uma atenção
pontual à saúde(1).
O SUS influenciou a noção e a vivência de saúde no Brasil, especialmente quando
se destaca que é um país de dimensões continentais e com características
sociais peculiares. Além disso, o que mais o caracterizou, desde o início, foi
o fato de ter aberto as portas das instituições para todos os brasileiros serem
atendidos sem nenhum tipo de discriminação, ainda que a implementação desse
processo não tenha se concretizado completamente.
Neste percurso, ao longo de todos esses anos, muitas coisas foram ditas acerca
do sistema, como o seu perfil, os seus objetivos, os seus desafios e as suas
dificuldades. Diversos atores sociais foram ouvidos, pronunciamentos foram
feitos, desvios de verbas descobertos e o mesmo teve continuidade, construindo-
se no que se apresenta hoje. Inúmeras reportagens foram escritas, a favor ou
contra, mostrando os seus pontos fortes ou destacando os nós do processo de sua
implementação. No entanto, um ponto ainda necessita de um aprofundamento:
oferecer voz para que os usuários do sistema possam expressar a sua opinião.
Neste sentido objetiva-se neste trabalho analisar a estrutura representacional
de um grupo de usuários do SUS na cidade do Rio de Janeiro acerca do próprio
sistema.
A importância deste trabalho se centra na possibilidade de oferecer um espaço
para que as representações dos usuários possam ser recuperadas e discutidas. Ao
considerarmos as representações como reconstrução de uma realidade vivida,
sentida, enfrentada e negociada pelo diálogo e pelas informações recebidas,
pode-se perceber que este estudo possibilitará a apreensão de como o sistema se
apresenta no cotidiano dos sujeitos, na atenção às suas necessidades, no
desenvolvimento de suas ações e nas dificuldades enfrentadas.
Ao mesmo tempo, as representações sociais têm profundas implicações nas
atitudes adotadas na vida cotidiana, o que aumenta o interesse em estudar as
representações do SUS, de modo a compreendermos os posicionamentos e os
interesses dos atores sociais no âmbito do sistema.
METODOLOGIA
Como já destacado, adotou-se para a orientação deste estudo a Teoria das
Representações Sociais(2), a partir da proposta complementar denominada
abordagem estrutural ou Teoria do Núcleo Central.(3) Define-se representações
sociais, neste contexto, como sendo o produto e o processo de uma atividade
mental, através do qual um indivíduo ou um grupo reconstitui a realidade com a
qual ele se confronta e para a qual ele atribui um significado específico.(4)No
que tange à abordagem complementar supracitada, destaca-se que esta considera
que a organização de uma representação social apresenta uma característica
específica, a de ser organizada em torno de um núcleo central, constituindo-se
em um ou mais elementos que dão significado à representação, fornecendo o
sentido fundamental e inflexível à mesma.(3)
O desenho metodológico envolveu cinco instituições de saúde localizadas na
cidade do Rio de Janeiro, que tinham sido constituídas antes da implantação do
SUS, de modo que tivessem construído uma história dentro do sistema de saúde
brasileiro. A escolha das instituições obedeceu aos seguintes critérios: um
hospital público federal; um hospital estadual geral; um hospital municipal; um
hospital privado, conveniado com o SUS, há pelo menos 21 anos; e um centro de
saúde pertencente à rede pública municipal de saúde.
A coleta de dados foi realizada no primeiro semestre de 2007 com 104
profissionais que desenvolviam ações no âmbito das instituições selecionadas,
aproximadamente 21 de cada unidade, que atuavam nas respectivas instituições há
pelo menos 21 anos. A escolha dos sujeitos obedeceu ao seguinte critério de
inclusão: ter sido atendido nas respectivas instituições antes da implantação
do SUS.
A coleta de dados foi realizada através da técnica de evocações livres que
busca apreender a percepção da realidade a partir de uma composição semântica
preexistente, composição esta normalmente não só concreta, mas também
imagética, organizada ao redor de alguns elementos simbólicos simples. Nesse
sentido, a aplicação prática do teste consiste em pedir aos sujeitos que
associem, livre e rapidamente, a partir da audição ou visualização de palavras
indutoras (estímulos), outras palavras ou expressões, no nosso caso a expressão
Sistema Único de Saúde.
Para o tratamento dos dados coletados foi utilizado o software EVOC (Ensemble
de Programmes Pemettant L´Analyse des Evoctions), versão 2000, que possibilita
efetuar a organização das palavras produzidas em função da hierarquia implícita
à freqüência e à ordem natural de evocação. A técnica de análise consiste em
construção de um quadro de quatro casas no qual são distribuídas as palavras
evocadas, considerando os critérios de maiores freqüências e ordem média de
evocação (OME)(5).
No tocante aos aspectos éticos da pesquisa, foram respeitados os princípios da
Resolução 196/96. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Parecer nº 006/2005) e pelas
instituições participantes, além da autorização dos sujeitos, expressa na
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS
Os resultados são organizados no que é chamado de Quadro de quatro casas, sendo
o quadrante superior à esquerda denominado de núcleo central, a parte mais
estável e permanente em uma representação, conferindo-lhe sentido; o inferior,
à esquerda, denomina-se zona de contraste, onde pode ser percebido um subgrupo
representacional, o que significa dizer que ele pode demonstrar grupos que
pensam de modo diferente da maioria. Os dois quadrantes à direita são a
primeira periferia (superior) e a segunda (inferior), que expressam o contexto
imediato que as pessoas vivem, o seu contato com a realidade.
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Os usuários do Sistema Único de Saúde, a partir de suas experiências e
vivências, bem como das informações recebidas e dialogadas diariamente com os
profissionais, outros usuários e seu círculo social, construíram uma maneira
peculiar de entender o sistema, atribuindo-lhe sentido e assumindo posições a
partir dessa mesma compreensão. Dessa maneira, o grupo estudado e o sistema
(por meio de seus agentes, do investimento governamental, das propagandas, do
serviço oferecido e da estrutura existente) se envolvem, de forma conjunta, na
reconstrução desse mesmo sistema, superando a dicotomia existente entre o
interno e o externo do próprio sujeito em um movimento dinâmico, misturando
imagens, conhecimentos, opiniões alheias, consensos sociais hegemônicos e
vários outros processos interativos e de construções subjetivas.
O grupo de usuários, em função do estímulo usado na produção dos dados, ligou
diversas palavras ao sistema de saúde consubstanciando um mundo semântico para
este objeto, de forma espontânea e com o menor controle mental possível. Para
que pudéssemos compreender este mundo semântico, foi necessário agrupar as
palavras usadas pelos sujeitos e, assim, compreender o sentido empregado pelos
mesmos. Esse agrupamento de sentido gerou quatro dimensões: a avaliativa, a de
finalidade, a espacial e a conceitual.
A dimensão avaliativa expõe o julgamento realizado pelos usuários acerca do
SUS. Esta avaliação começa no próprio centro da representação acerca do
sistema, com a expressão bem atendido, incluindo, neste contexto, um aspecto
prático no processo de reconstrução cognitiva do SUS. Isto implica dizer que os
usuários moldaram processo representacional em íntima relação com a sua
experiência prática e cotidiana dentro do sistema.
Dessa maneira, pode-se observar que o SUS é entendido à medida que também é,
não só palpável, mas também alcançado em meio aos dramas históricos, sociais e
do processo saúde-doença vividos por estes atores socais. Ou seja, os aspectos
teóricos, legais, éticos e jurídicos do sistema só possuem aderência à
organização do pensamento do grupo à medida que possuir relação com o cotidiano
pessoal, transformando-se em direitos, em relações interpessoais e em acessos à
ações e aos serviços em saúde(6).
Chama a atenção, ainda, que os sujeitos apresentem uma avaliação positiva
acerca do atendimento no contexto do SUS, configurando uma base
representacional eminentemente positiva, em que pese a presença de elementos
negativos em outros quadrantes, inclusive em uma avaliação do próprio
atendimento entre os elementos da zona de contraste, neste caso negativa. Esta
positividade pode deitar raízes na abertura das portas do sistema de saúde para
a população em geral, o que explica o fato da palavra atendimento possuir
importância no mundo semântico apresentado, especialmente quando se lembra de
que os sujeitos vivenciaram a assistência à saúde no contexto do INPS/INAMPS.
Pode estar relacionada, ainda, à relação interpessoal estabelecida entre os
profissionais e os usuários, à crescente cobertura das ações e dos serviços em
saúde na atualidade e o paradigma da promoção à saúde presente hoje no ideário
do sistema de saúde.
O Ministério da Saúde afirma que o SUS apresenta-se como fundamental no
processo de manutenção da saúde, da prevenção de doenças e da recuperação da
saúde para mais de 120 milhões de brasileiros, apesar dos inúmeros problemas e
desafios que enfrenta na concretização da assistência à saúde em um país das
dimensões do Brasil(7). A complexidade do sistema se dá, dentre outras coisas,
pelo fato de abarcar os extremos do processo assistencial, que vai da oferta de
ações e serviços da rede básica até procedimentos de alta tecnologia(8).
O SUS se faz presente, de forma visível e até imagética, nas consultas dos
programas da criança, da mulher e do adolescente, no âmbito da Estratégia da
Saúde da Família, inclusive através das visitas domiciliares, na distribuição
dos antirretrovirais para os pacientes soropositivos, na quase totalidade dos
transplantes realizados, nos tratamentos dialíticos e na atenção terciária e
quaternária, além de várias outras situações. Em um contexto de forte exclusão
social e econômica, em que uma grande maioria de brasileiros é privada de
serviços essenciais, encontrar um espaço de portas abertas ' mesmo que alguns
serviços não sejam alcançados, mas algum rosto será visto por trás do vidro em
algum prédio ' é estado de exceção, até mesmo considerado como resultado da
sorte, ou de uma intervenção divina direta, como os mesmos usuários já
pontuaram(9-10).
Esta interpretação do mundo semântico é reforçada quando aparece, na
centralidade da representação, um espaço típico para o atendimento,
concretizando a dimensão espacial, qual seja, o hospital, este mesmo espaço que
tende a apresentar um gargalo no processo de atendimento e de exclusões quando
não é público ou conveniado ao SUS (diferente da rede básica, que é, por
excelência, aberta a todos, ou as instituições filantrópicas que possuem uma
filosofia própria, que não a financeira, para a abertura de suas portas). O
aparecimento desse léxico talvez esteja correlacionado ao fato dos usuários
entrevistados serem de quatro instituições hospitalares e apenas um da rede
básica. No entanto, embora tenhamos de reconhecer o peso deste desenho
metodológico, diversos autores(11-12) apontam a importância que as instituições
de alta tecnologia possuem no imaginário dos profissionais e da população,
transformando os hospitais como uma das imagens mais visíveis do sistema de
saúde, apesar dos esforços das últimas décadas na atenção básica e,
especialmente, na promoção da saúde.
Desta maneira, considera-se que a importância adquirida pelo hospital no mundo
semântico dos usuários não se deva, ao menos não isoladamente, como
conseqüência da metodologia utilizada, mas também em função das construções
sociais, culturais e sanitárias que envolvem esta instituição e seu papel na
compreensão da saúde e em sua concretização prática. A história sanitária do
século XX, apesar do avanço proporcionado pelas conferências internacionais e
nacionais, foi marcada por um forte hospitalocentrismo e um incentivo ao
consumo de tecnologias de alto custo e de procedimentos cada vez mais
invasivos, necessitando de um espaço com características específicas e de
profissionais especializados(13).
A mídia, em todas as suas formas, trabalha na construção de uma associação
íntima entre saúde e hospital ' especialmente os privados ' em que se tornou
difícil pensar em saúde, felicidade e futuro sem a tendência de incluir o
hospital como instância fundamental, quase reguladora do saber e do fazer dos
cidadãos. Além disso, observa-se, por exemplo, que o número de hospitais tende
a apresentar relação com a riqueza e o desenvolvimento de uma cidade ou de um
Estado e, neste sentido, basta observar o eixo Rio - São Paulo e as histórias
dessas duas capitais brasileiras em comparação com as demais.
A representação do SUS, então, mesmo que parcialmente, é identificada, até
mesmo sobreposta, à do hospital, limitando, de determinada maneira, os
objetivos e os alcances do sistema e fortalecendo a ideologia hospitalocêntrica
em um círculo vicioso entre mídia, imagens, representações, opiniões e idéias.
Este fato talvez explique a procura do hospital para demandas que poderiam ser
sanadas em níveis menos complexos do sistema de saúde, mesmo quando o
atendimento emergencial não se faz presente(14). Se o sistema, para os
usuários, possui uma imagem e um sentido de hospital, nada mais natural que
este seja o lócus onde se encontra a saúde e a proteção contra as doenças,
independente se indicação se encaixa para este nível de complexidade.
Aqui reside um ponto nevrálgico que deve ser levado em consideração pelo
sistema público de saúde: torna-se premente a necessidade de um trabalho de
marketing nas mídias de massa, uma atuação profissional na relação direta com a
clientela e um forte processo de educação em saúde com o objetivo de que novas
representações poderão gerar outras relações dos usuários com o sistema, talvez
incorporando outros loci no processo de se pensar e se produzir saúde, como o
posto de saúde, a estratégia da saúde da família, a escola e a igreja, por
exemplo. Destaca-se aqui o poder heurístico das representações e a sua relação
com a prática cotidiana, elementos importantes para o planejamento em saúde, a
prática profissional e o sucesso em diversos processos implementados na unidade
de saúde, como a adesão ao tratamento e a compreensão de determinadas práticas
populares.
Na dimensão conceitual, os usuários definem o sistema único como saúde,
associando o seu aspecto conceitual com o da finalidade. Ao mesmo tempo, torna-
se interessante destacar o fato do mundo semântico dos usuários definir o
sistema a partir do ângulo da saúde, entendendo que este termo traduz um dos
bens mais preciosos do ser humano. Como consequência, pode-se depreender a
importância atribuída pelos sujeitos ao sistema e o seu papel na vida de cada
um deles, gerando saúde e, conseqüentemente, a continuidade da existência com o
máximo de qualidade possível.
No entanto, como apontam diversos autores(15-16), o termo saúde apresenta-se,
caracteristicamente, polissêmico e, por isso, pode adquirir vários sentidos em
função da formação discursiva empregada pelo autor. Diante do exposto, saúde
pode ganhar conotações de ausência de doenças, limitando a sua compreensão à
dimensão biomédica e patológica. Em outro extremo, este conceito pode evocar
generalizações tão abstratas que não abarcam questões concretas, quando
analisadas em profundidade. Mesmo a definição de saúde promulgada pela
Organização Mundial da Saúde, que a compreende como um completo bem estar
físico, mental e social, carece de uma dinâmica característica do processo de
nascer, viver e morrer dos indivíduos(17-18), que não possui reflexo na
definição supracitada, em função de seu caráter estático que não corresponde ao
ser e ao agir humanos no mundo.
O sentido utilizado pelos sujeitos à saúde parece estar desdobrado entre os
elementos de contraste e na segunda periferia. Ao serem indagados sobre o
sistema único de saúde, os usuários responderam médico (contraste),
explicitando uma visão biomédica da saúde e reforçando a representação de saúde
hegemônica na sociedade. Responderam, também, baixa-renda (segunda periferia),
compreendendo o SUS como um atendimento para pobres. Como este último
apresenta-se como uma definição, mas não fornece uma ajuda substancial no
entendimento do polissêmico termo saúde, o abordaremos em sua parte específica.
Neste processo, resta-nos o binômio saúde-médico, binômio este bastante
recorrente na mídia, presente nas conversas cotidianas e difundido
coletivamente, bem como esclarecedor do sentido empregado no uso do primeiro
termo. Ou seja, como pontuado no parágrafo acima, os indivíduos entrevistados,
neste contexto, entenderam a saúde especialmente em sua dimensão biomédica,
reforçando e sendo reforçada, inclusive, pela palavra atendimento, também
central.
A saúde enfoca, neste caso, as patologias enfrentadas, as terapêuticas
adotadas, o atendimento profissional e a solução da situação especialmente
através da cura, ancorando-se no modelo biomédico(17). Neste sentido, deve-se
destacar que esta forma de compreender a saúde gerou importante evolução na
tecnologia em saúde, queda nos índices de mortalidade (especialmente em doenças
agudas e situações emergenciais) e aumento da perspectiva de vida. Por outro
lado, transformou-se em um terreno fértil para um consumo acrítico dessas
mesmas tecnologias e o estabelecimento de uma visão mecanicista e reducionista
do corpo humano e suas reações.
O principal problema da ciência biomédica nos últimos anos foi o seu status de
verdade que definiu um modo próprio de enxergar a saúde, excluindo totalmente
outras possibilidades mesmo quando não existem respostas de sua parte. O
tratamento de diversos tipos de cânceres seguiu esse caminho através do
processo de descrédito dos conhecimentos fitoterápicos, indígenas e populares
que, por não terem um método como a ciência, era considerado atrasado e
ineficiente. O mesmo se deu com a influência da mente sobre as reações
corporais e o processo de psicossomatização em que a morbidade não se localiza
apensas no espaço celular ou em interações bioquímicas(17).
Deste modo, a solução não é abrir mão da ciência biomédica, e assim dos seus
benefícios, mas sim levar em consideração que ela não consegue oferecer solução
para todos os problemas sanitários atuais. Ao mesmo tempo, compreender que
nenhuma outra ciência apresenta-se profunda o suficiente para abarcar a
complexidade humana e os desafios da atualidade.
Observa-se, ainda, no centro da representação a dimensão de finalidade,
expresso, nesta parte do quadro, pela palavra atendimento. O atendimento
configura-se como sendo o motivo pelo qual o sistema foi criado, atingindo o
seu público-alvo e disponibilizando as bases e as ferramentas possíveis para
gerar saúde, prevenir doenças e reduzir agravos neste encontro entre o usuário
e o próprio sistema.
Ainda que as ações do SUS sejam mais amplas que o atendimento individual, é
este, como já pontuado em outras dimensões, que mais tocam os usuários em
função do alcance de suas necessidades, às vezes prementes. Esta situação
apresenta-se ainda mais importante em se tratando de um sistema com as
características universais como o SUS dentro do qual todas as necessidades
sentidas e vividas pela população são englobadas com relação a um conceito mais
amplo de saúde.
A própria Lei Orgânica da Saúde(19) inclui, entre os objetivos do SUS, a
identificação e a divulgação dos fatores condicionantes e determinantes da
saúde; a formulação de política de saúde destinada a promover, nos campos
econômico e social, a redução de riscos de doenças e de outros agravos; o
estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às
ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação; e a
assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e
recuperação da saúde a partir da realização integrada das ações assistenciais e
das atividades preventivas. Percebe-se, ainda, que os objetivos do sistema, por
mais amplo que se apresentem, concretiza-se, para a maioria da população, no
interior da relação profissional-clientela no contexto do atendimento ou da
atenção direta.
Nesta mesma lei, o SUS adota como seu campo de ação todas as questões que estão
relacionadas com a promoção da saúde e da vida humana, entendendo como
condicionantes desse processo, "entre outros, a alimentação, a moradia, o
saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o
transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de
saúde da população expressam a organização social e econômica do País"(19).
Entre os elementos de contraste, a estrutura da representação mostra uma forma
diferente de compreensão do sistema daquele mostrado no núcleo central, o que
chamamos de sub-grupo representacional. Se a representação mostrou-se
basicamente positiva, neste quadrante revela-se eminentemente negativa,
comportando palavras e/ou expressões como atendimento-ruim, ruim e tristeza, Ou
seja, observa-se que parte do grupo estudado possui representações negativas
acerca do sistema, desdobrando-as em três áreas.
A primeira refere-se ao atendimento, construindo uma oposição à centralidade do
bom atendimento e mostrando duas facetas para o mesmo fenômeno. Se a expressão
bem atendido possui uma freqüência maior em sete evocações, as duas foram
evocadas em uma ordem semelhante, o que implica dizer que nenhuma foi lembrada
mais prontamente que a outra e que não existe uma hegemonia tão absoluta da
avaliação positiva no contexto dessa representação.
Em outras publicações, já se pontuou a existência da tensão entre a
positividade e a negatividade na representação do sistema de saúde, mesmo entre
os profissionais(14). Destaca-se que é importante a existência dessa tensão de
modo a explicitar a complexidade da concretização do sistema, à medida que
nenhuma estrutura inclusiva e universal no contexto de um país em
desenvolvimento e com a dimensão do Brasil tenderá a ser considerado apenas
positivo.
De forma simultânea, esse resultado questiona a constante divulgação da mídia e
o marketing majoritariamente negativo realizado em cima do sistema. Apesar das
inúmeras dificuldades enfrentadas pelo SUS que todos conhecem em maior ou menor
grau, também é verdade que ele se caracteriza pela transformação que causou na
sociedade brasileira em plena abertura política, fruto de uma mobilização e uma
articulação social entre diversos seguimentos como pouco se viu nos últimos
anos. O sistema tem fornecido ampla abrangência de ações e um crescimento
constante da cobertura populacional com aperfeiçoamento de seus dispositivos,
como o atendimento fora de domicílio, a internação domiciliar e os transplantes
e a expansão da Estratégia da Saúde da Família.
No entanto, mesmo entre os elementos de contraste, observa-se ainda um elemento
positivo (bom), reforçando a avaliação positiva presente no núcleo central, e
um neutro (sem queixa). Essas presenças tendem a reforçar muito mais a
interpretação de que a representação dos usuários é alicerçada em uma base
positiva, mesmo tensionada com uma certa negatividade presente neste quadrante,
diferenciando-se do modo como, em estudos anteriores, os profissionais
representam o sistema único de saúde(14).
No contexto da primeira periferia pode-se perceber a presença de duas
dimensões, quais sejam, a de finalidade e a avaliativa, ambas apresentando
forte inter-relação entre si. A primeira é concretizada a partir de dois
termos, remédio e exame, enquanto a segunda, também com duas palavras,
apresenta fila e demora.
A de finalidade engloba tecnologias (remédio) e ações (exames) de saúde que são
carros-chefe na estrutura sanitária ocidental. Com a evolução tecnológica, a
atenção à saúde organizou-se, basicamente, ao redor dos diferentes fármacos que
possuem suas ações em áreas e estruturas cada vez menores do organismo humano,
oferecendo soluções à situações de grande sofrimento para os indivíduos, mas
provocando reações em outras estruturas corporais, uma vez que a ação no micro-
espaço não tem levado em consideração as inter-relações existentes na
complexidade das funções corporais.
Seja como for, o fato é que, ao longo do tempo, descobriu-se um medicamento
para cada infecção, para cada dor e para cada agressão sofrida, sofisticando a
química à medida que mais se conheciam os detalhes do funcionamento
fisiológico, bioquímico e histológico do homem. A imagem de modernidade e
resolutividade que foi criada (e facilmente aderida) para essas composições
químicas fez com que toda a atenção à saúde (inclusive de profissões, como a
Enfermagem, que não possuem, no âmbito de suas competências regulares, a
prescrição medicamentosa) se organizasse ao seu redor, mesmo com a advertência
de vários pesquisadores sobre o baixo impacto na saúde da população em geral e
do alto custo que este tipo de terapia exige(20-21).
Alguns autores mostram que uma das ações mais valorizadas pelos usuários na
cidade do Rio de Janeiro é a dispensação de medicamentos em domicílio,
especialmente aqueles prescritos no âmbito dos programas de saúde, como
hipertensão e diabetes(9-10). Os sujeitos pontuaram que não é a comodidade de
recebê-los em casa que os impressionam, mas o fato de ter acesso a tal
tecnologia de maneira tão organizada e prática.
Em um processo muito similar, os exames de apoio diagnóstico tornaram-se
centrais no modo de se compreender e fazer saúde, apresentando-se como
indispensáveis ao fechamento diagnóstico e representando um importante
afastamento do contato dos profissionais com a clientela. A partir de sua
utilização, a arte da diagnose através da clínica, do toque profissional e da
compreensão do corpo humano a partir da relação interpessoal foi preterida por
imagens e dados bioquímicos que descrevem, com precisão, o que está acontecendo
no interior do corpo do paciente.
Potencializando este fato, o apoio clínico, de per si, foi ficando ultrapassado
quando comparado à capacidade do maquinário usado para a detecção das micro-
alterações. De resto, nesta relação sobrou a desconfiança: a desconfiança do
profissional em seu próprio conhecimento ' semiologia, clínica, epidemiologia -
que possui, sem a perfeita conexão com a tecnologia dura, uma representação de
ultrapassada pelos modernos meios diagnósticos; a desconfiança deste mesmo
profissional, de que nem o paciente e nem o tribunal os perdoará caso algo não
tenha o desfecho desejado e os instrumentais mais modernos não tenham sido
usados (mesmo que só para confirmar o que os profissionais, pela experiência e
sensibilidade, já sabiam); e a desconfiança do usuário, que prefere confiar na
objetividade de um resultado da informática do que na experiência dos
profissionais.
Na esteira dos medicamentos, desenvolveu-se uma série de exames cada vez mais
específicos, com maior sensibilidade e menor abrangência, onerando cada vez
mais os diferentes tratamentos em saúde e, conseqüentemente, gerando um
processo de exclusão daqueles que não possuem estrutura financeira para tal.
Alguns autores já pontuavam a excessiva utilização dessa tecnologia sem o
retorno financeiro ou social para o sistema de saúde, com uma enxurrada de
indicações inadequadas que não possuem impacto na evolução do processo saúde-
doença individual e nem importância do ponto de vista epidemiológico(17, 20).
Chama a atenção como o modelo biomédico da saúde manteve-se presente na
representação do sistema de saúde, jogando ainda mais luz à compreensão deste
termo. O modo de se pensar e de se compreender o SUS, para os sujeitos, está
atravessado pelas compreensões tecnológica, farmacológica e medicalizada do
processo saúde-doença, em que pese os objetivos do sistema contidos em sua
própria legislação, como expostos alguns parágrafos acima.
Deve-se ressaltar a importância dos exames de apoio diagnóstico e dos
medicamentos para a solução de diversos problemas, no impedimento da morte de
inúmeras pessoas e na redução de angústias e sofrimentos, mas eles não podem
ser os únicos suportes para se compreender ou identificar os distintos
processos vivenciados pelos usuários. Se eles forem bem dimensionados àquelas
situações em que realmente podem ser úteis para complementar a clínica no caso
dos exames e para solucionar situações pontuais no caso dos medicamentos,
contribuem, com as suas finalidades e utilidades, para um nível maior de saúde
da população.
Da dimensão avaliativa, este quadrante traz as palavras fila e demora. No que
tange à fila, ressalta-se que esta é uma situação das mais presentes no
contexto do sistema de saúde, sendo noticiadas cotidianamente nas portas dos
hospitais, das unidades básicas e dos ambulatórios. As filas significam uma
porta menor do que a demanda pelas ações e serviços de saúde, impedindo o seu
alcance a todos aqueles que procuram as instituições no interior do SUS.
Implicam em uma organização em que o princípio da universalidade vê-se
continuamente ameaçado pela possibilidade do acesso ser negado e o sistema,
assim, apresentar-se desconfigurado e desenraizado de seus princípios. Além
disso, em diversas situações elas se mostram profundamente perversas e
frustrantes para as pessoas que não conseguem ter as suas necessidades
satisfeitas, após horas de espera, de cansaço e de estresse físico e mental.
Outra questão relacionada às filas é o congestionamento do sistema nos níveis
de maior complexidade, especialmente nas instituições terciárias e
quaternárias, esgotando os recursos e as vagas existentes com situações que
poderiam ser resolvidas em unidades básicas ou, no máximo, nos ambulatórios.
Dessa maneira, podem ser encontrados episódios de crise hipertensiva e
distúrbios neurovegetativos que poderiam ser atendidos (o primeiro) ou
prevenidos (o segundo) na porta de entrada do sistema. Este fato pode estar
relacionado, ainda, à estrutura burocrática das unidades de saúde, que
dificultam o acesso fazendo com que a procura por ações e serviços se dêem em
situações de emergência.
Destaca-se, ainda, a universalização do sistema após a implantação do SUS sem
uma política estratégica e financeira que permitisse tal desafio. Para piorar o
quadro que seria enfrentado, o Governo Collor provocou um aperto nos
investimentos em saúde, gerando um caos antes não experimentado: a abertura das
portas e aumento dos gastos em concomitância com cortes de verbas e
desaceleração do investimento estatal nas dimensões sociais e básicas(22). Os
reflexos desse fato podem ser vistos até hoje e uma de suas conseqüências mais
visíveis é o fenômeno da fila no atendimento à saúde.
Junto com fila, a demora é colocada como uma avaliação negativa do sistema e é
associada semanticamente a atendimento, medicamentos e exames. Neste processo,
normalmente, perde-se a continuidade do tratamento e oportunidades que poderiam
gerar maior qualidade no cotidiano dos sujeitos e, em alguns casos, até mesmo a
manutenção da vida, postergando soluções que, em princípio, estariam próximas e
seriam de fácil acesso.
Em algumas situações, a demora pode ser conseqüência da falta de estrutura do
sistema de saúde que não possui recursos materiais e/ou humanos para dar
continuidade ao processo de assistência. Em outras, por falta de vaga de
retorno para o profissional e/ou instituição que controla o atendimento de um
determinado indivíduo, apesar das etapas intermediárias terem sido feitas com
sucesso. Por fim, ressalta-se, novamente, o importante papel do princípio da
hierarquização que, ao não ser concretizado, facilita ou propicia o surgimento
de casos de gargalo no fluxo do sistema e, conseqüentemente, de demora no
processo de atendimento e de chegada ao seu término.
A segunda periferia apresenta novamente todas as dimensões que estão contidas
na estrutura da representação do sistema para os usuários. A de finalidade se
faz presente através dos léxicos atender-todos, internação e limpeza; a
espacial em função da citação de uma unidade hospitalar específica que é a
emergência; a avaliativa, pelo destaque dado à desigualdade; e a conceitual
pela definição do sistema como aquele dirigido aos pobres, através da expressão
baixa-renda.
Como o sistema periférico mostra a relação dessa representação com a realidade,
percebe-se um desdobramento do núcleo central neste sistema. Assim, hospital se
desdobra em emergência que, para nossa surpresa, foi a única unidade hospitalar
citada, o que parece representar o seu grau de importância para os sujeitos
estudados. A dimensão da finalidade evoca o princípio da universalidade
(atender-todos), reforça o hospital como o lócus privilegiado de atendimento
(internação) e traz a higiene como um dos objetivos do SUS (limpeza), sendo a
mais freqüente neste quadrante.
A dimensão avaliativa, por sua vez, foi a única transversal à análise como
conseqüência do seu aparecimento em todos os quadrantes. A desigualdade
apontada nesta dimensão possui sua raiz na agressão ao princípio da eqüidade,
em que todos devem ter as suas necessidades atendidas de acordo com a sua
situação e suas demandas, provavelmente pela vivência de situações em que
algumas pessoas foram privilegiadas no processo de atendimento, sem que este
privilégio tivesse relação com a gravidade do caso ou com as suas necessidades.
Quando comparamos as representações dos usuários com os profissionais(6,14),
podemos perceber que se trata de duas representações distintas, tendo a dos
usuários um traço eminentemente positivo e a dos profissionais, negativo. A
positividade trazida pelos usuários chama a atenção em função da complexa
realidade que permeia o sistema e que, em uma análise mais superficial, poderia
ter deixado uma marca mais profunda na reconstrução cognitiva do sistema. Por
outro lado, os profissionais, além de estarem inseridos no quadro funcional do
sistema, também possuem uma relação com ele como usuários, o que pode ter
potencializado essa representação negativa.
O ponto comum entre os dois grupos é a palavra atendimento e, conseqüentemente,
a dimensão finalidade no núcleo central de ambas as representações. Esta
observação demonstra o quanto o conjunto de profissionais e usuários se
preocupam com a concretização do SUS, o primeiro por fazê-lo acontecer e o
segundo por necessitar dele, às vezes de forma vital, em seus cotidianos. Outro
ponto a ser aprofundado é a oposição estabelecida entre igualdade e
desigualdade, sendo o primeiro trazido pelos profissionais em sua zona de
contraste e o segundo pelos usuários, na segunda periferia. Igualdade e
desigualdade são pontos de vistas distintos para o mesmo fenômeno: o acesso a
ações e serviços de saúde, do lado de quem evoca um princípio para organizar o
sistema de saúde e do lado de quem sofre os efeitos da sua implantação ou da
sua não implantação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os usuários do sistema de saúde possuem uma forma particular de compreendê-lo,
definindo-o, vendo suas finalidades, o espaço onde ele se concretiza em suas
experiências e avaliando-o a partir dessas mesmas experiências, daquilo que
ouve a seu respeito e das informações que recebe a todos os momentos, inclusive
da grande mídia. A partir deste conjunto apresentam atitudes diante do mesmo,
internalizando alguns dos seus princípios e constroem determinado grau de
afetividade, reconstruindo-o nesse processo de interação constante a cada nova
experiência, nova notícia ou nova opção. Dessa maneira, o sistema não é apenas
algo externo aos sujeitos, objetivo em sua dimensão concreta e estrutural, mas
também interno no processo de sua reconstrução cognitiva a partir de
determinadas características grupais.
O sistema, para os usuários, é reconstruído a partir de sua faceta prática e
mesmo o seu suporte teórico, como os princípios, é incorporado a partir deste
aspecto. Neste sentido, a universalidade se mostra através do atendimento e a
equidade a partir de seu oposto, a desigualdade. O conhecimento, as opiniões
alheias e as informações recebidas gravitam ao redor da experiência prática,
dando-lhe sentido e esta, por sua vez, faz uma triagem do saber recebido,
permanecendo somente aquele que possui coerência e afinidade com a vivência e a
experiência.
Destaca-se a necessidade de uma política pública que avance na implantação do
SUS e que, além disso, produza transformações nas representações sociais dos
sujeitos, o que, por sua vez, gerará mudanças em suas atitudes e na relação que
estabelece com o próprio sistema. No aspecto micro-político, os profissionais
de saúde podem exercer um importante papel no processo de atendimento à
clientela, estimulando a sua participação ativa no sistema, o conhecimento dos
seus direitos e o exercício do controle social nas instâncias possíveis, a fim
de torná-lo melhor e mais próximo das necessidades da população, em sua maioria
marcada e sofrida com um grau de miséria que fere a dignidade humana.