Relação EU-TU Eterno no viver de cuidadoras de crianças com AIDS: estudo com
base em Martin Buber
INTRODUÇÃO
A epidemia pelo vírus da imunodeficiência humana/síndrome da imunodeficiência
adquirida (HIV/AIDS) pode ser considerada, atualmente, problema em termos de
saúde pública, tanto no nível nacional como mundial, que traz consequências,
desafios e implicações para as instituições de saúde e no/para o viver das
pessoas que estão direta e indiretamente relacionadas a ela. De acordo com
dados do Ministério da Saúde(1), de 1980 até junho de 2008, foram registrados o
total de 544.846 notificações, das quais 188.386 entre mulheres, parcela da
população que vem se destacando dentre os novos casos de AIDS.
A intensificação desse processo de feminização fez aumentar as notificações de
AIDS pediátrica (total de 14.184), sendo a transmissão vertical a principal
responsável pelos novos casos de infecção pelo HIV, respondendo por 86,1%(1). A
constatação desses fenômenos que vêm delineando os novos rumos adotados pela
epidemia na atualidade, aliada às vivências e experiências do autor no cuidado
às pessoas que vivem com AIDS, levaram ao surgimento de inúmeros
questionamentos que conduziram à necessidade de se estudar o significado que a
mulher cuidadora de criança com AIDS atribui à sua existencialidade.
Isso porque se acredita que, ao entender os sentimentos, as emoções, os
desafios e as (im)possibilidades presentes na existencialidade dessas
cuidadoras, se conseguirá melhorar as práticas de saúde e, consequentemente, o
cuidado de enfermagem, com vistas a propiciar o viver com mais dignidade e
autenticidade, no mundo. Sendo assim, propôs-se esta pesquisa que objetivou
compreender o que é ser familiar cuidadora de criança com AIDS, interpretando
os achados à luz do referencial filosófico buberiano(2-3). Do estudo emergiu a
unidade de significação Diálogos "entre" o EU familiar e o TU Eterno, que
contém questões presentes na existencialidade da cuidadora de criança com AIDS
e que ela desvela por meio da relação dialógica com Deus.
Sendo assim, acredita-se que a grande contribuição deste artigo encontra-se no
fato de desvelar as compreensões e relações que cuidadoras de crianças com AIDS
estabelecem com Deus, tendo por fundamentação uma filosofia ainda pouco
explorada pelas áreas da saúde e Enfermagem. Para tanto, justifica-se sua
relevância tendo em vista que outros estudos têm indicado ser a religiosidade/
espiritualidade importante fenômeno presente no mundo do cuidado de enfermagem
(4-6), assim como no viver de pessoas com HIV/AIDS(7-9).
RELAÇÃO EU-TU ETERNO NA FILOSOFIA DE BUBER
A filosofia buberiana, de acordo com alguns estudiosos, inscreve-se na vertente
da corrente existencial-humanista, uma vez que sua preocupação primordial
reside na necessidade de resgatar a humanidade presente na essência do homem
(10-11). Seu pensamento desenvolve-se ao redor de dois conceitos que podem ser
considerados centrais: a relação e o diálogo. Considera-se, dessa forma, que a
relação com o outro instaura um modo de ser no mundo, sendo que é por meio da
palavra dialógica que o homem adentra à existencialidade.
Entende-se, assim, que o existir no mundo dependerá da palavra princípio
evocada pela pessoa, ou seja, poderá presentificar a relação EU-TU, que se
caracteriza por ser um encontro dialógico sempre novo, fugaz e atemporal, ou,
então, experienciar o relacionamento EU-ISSO, que é a atitude monológica de uso
e experimentação de uma pessoa sobre coisas. Vale ressaltar, ainda, que cabe ao
ser humano instaurar a mais autêntica e genuína relação, que é aquela em que a
palavra emitida pelo EU busca o diálogo de reciprocidade com o TU Eterno(2).
A relação EU-TU Eterno é o meio através do qual o homem terá a possibilidade de
resgatar a essência de seu ser, bem como entrar em relação com o outro, pois
"todo TU particular é um reflexo de TU Eterno. É por intermédio de cada TU
particular da minha experiência que a palavra primária dirige-se ao TU Eterno"
(12). Há que se entender que o estabelecimento desse diálogo com Deus permite o
revelar da humanidade e de alternativas para a compreensão dos problemas
existenciais ao estar consigo, com o outro e com o mundo.
O EU tem a possibilidade de entrar em relação dialógica com o TU Eterno por
meio de encontro interpessoal, uma vez que Deus é considerado um Deus-pessoa,
isto é, além de tudo, Ele é também pessoa e, portanto, acessível à relação EU-
TU e jamais passível de ser reduzido a um ISSO(2-3,12). Nesse sentido, não
caberá ao homem discorrer sistemática e dogmaticamente sobre Ele, pois o TU
Eterno é considerado em sua alteridade absoluta. A significação maior dessa
relação não está em descobrir o que Deus é em essência, mas o que é, em relação
a ele, ser humano. Para o filósofo, não importam as diferenciações conceituais
entre religiosidade, espiritualidade, fé e crenças, mas sim o modo como o ser
humano estabelece a relação com Deus.
Esse encontro não ocorre em um espaço e tempo (pré) determinados, mas acontece
no aqui e no agora, na presença autêntica ao estar com o outro e na
possibilidade de abertura à relação existencial. Deus é considerado uma
potência transcendente, sem a qual o existir do ser humano estaria limitado a
percorrer o mundo sem encontrar significados para os fenômenos que se
manifestam ao seu ser-sendo, ao seu devir. Há que se considerar, ainda, que
"falar de Deus como TU Eterno, como ser em relação ao devir, exprime a mesma
realidade, pois, para Buber, Deus é ao mesmo tempo transcendente e imanente,
absoluto e relacional. Deus é totalmente Outro, mas é também o totalmente
Mesmo, o totalmente Presente"(12).
O encontro EU-TU Eterno, portanto, é um fenômeno puro, verdadeiro e autêntico,
uma vez que o ser humano dialoga com o que há de mais supremo em sua
existência, com o que dá sentido ao seu vivido, com o que possibilita que
realize as outras atitudes possíveis (a relação EU-TU e o relacionamento EU-
ISSO). Para além disso, após sair do "ato essencial da relação pura, o homem
tem em seu ser um mais, um acréscimo sobre o qual ele nada sabia antes e cuja
origem ele não saberia caracterizar corretamente"(3). Esse acréscimo não pode
ser compreendido como um conteúdo, mas como uma presença que é força em seu
ser.
CAMINHO METODOLÓGICO
Trata-se de estudo qualitativo de natureza fenomenológica, no qual é importante
apreender o sentido e o significado das vivências do ser-no-mundo, a partir das
descrições das situações existenciais, assim como compreendê-lo no âmbito de
suas particularidades e possibilidades de ser e de realizar escolhas livres e
responsáveis(13). Assim, buscou-se conhecer e compreender as vivências e
experiências presentes no vivido de mulheres cuidadoras de crianças com AIDS,
permitindo o emergir do fenômeno tal como ele se mostra, o que só é possível
quando há suspensão de juízo e de preconceitos por parte do pesquisador.
Desenvolveu-se esta investigação no Ambulatório de Pediatria de um hospital
escola do município de Porto Alegre-RS, Brasil, tendo como informantes sete
familiares cuidadoras de crianças com AIDS, sendo quatro mães biológicas, duas
avós maternas e uma mãe adotiva, as quais foram intencionalmente selecionadas.
A equipe médica avaliava as seguintes características da cuidadora que estava
com a criança no dia da consulta (frequência de acompanhamento ao serviço e
saúde mental), bem como o histórico da família (estrutura e rede de apoio) e,
quando compreendiam que estavam de acordo com a proposta do estudo, indicavam
ao pesquisador, o qual a convidava para participar da entrevista.
A partir do aceite e da assinatura do termo de consentimento livre e
esclarecido (TCLE), iniciava-se a coleta das informações, que ocorreu entre
setembro e outubro de 2006. Utilizou-se a entrevista fenomenológica(14), que
possibilita o emergir da fala originária do sujeito, com a preocupação de se
estar aberto às muitas perspectivas que se apresentam nas descrições do
fenômeno; de interpretar de forma compreensiva a linguagem dos informantes; e
de perceber seus movimentos como gestualidade que veicula significações. Após o
aceite das informantes, as entrevistas foram gravadas em audiotape.
A interpretação das informações fundamentou-se na filosofia hermenêutica(15),
que objetiva fazer emergir o sentido originário dos discursos, trazendo para a
frente do texto aquilo que até então estava velado, permitindo a compreensão
dos aspectos significantes das vivências e experiências do ser humano e,
consequentemente, do fenômeno estudado.
Esta investigação foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição
(Parecer n° 06-122) e teve como preocupação seguir as recomendações previstas
na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde(16), as quais estavam
garantidas no TCLE.
DIÁLOGOS ENTRE A CUIDADORA DE CRIANÇA COM AIDS E DEUS
Esta unidade de significação emanou dos discursos das cuidadoras, em meio às
compreensões acerca do que é ser familiar de criança com AIDS e as implicações,
repercussões e desafios desse fenômeno em seu vivido. Para além de estabelecer
relação dialógica com o TU criança, o EU familiar dialoga, também, com o TU
Eterno. Essa relação, considerada a mais verdadeira(2), se revela por meio de
duas subunidades: Dialogando com o TU Eterno eEsperanças na vivência do EU
familiar.
Dialogando com o TU Eterno
Esta subunidade apresenta o modo como se estabelecem os diálogos entre o EU
familiar e o TU Eterno, os quais se fazem presentes por meio da fé e, ainda,
por meio de perguntas e respostas que buscam compreensões acerca do vivido e
experienciado ao estar, no mundo, com o outro.
Se eu não tivesse fé agora, o quê que ia sê da minha vida? Eu ia ficá
bebendo, fumando, fazendo um monte de coisa, achando que a minha vida
é, é,... que não tenho problema nenhum, que a minha saúde é normal
como os outros. Não é, né,... então a fé é importante, tem que ter
fé, né! (F1).
No depoimento acima se percebe que a fé é reconhecida como importante elemento
no vivido dessa cuidadora ao estar-no-mundo com o HIV/AIDS. A fé, ainda, é
vislumbrada no encontro com o TU Eterno ao propiciar respostas à
existencialidade do EU familiar e às suas relações com o outro e com o mundo.
Esses fenômenos, vividos e sentidos, são descritos nos depoimentos a seguir:
Deus vai mostrá como ele (o companheiro) não vai tê a doença, né. Até
hoje ele faz exame e não tem, né, daí eu digo que vai se habituá, que
a gente vive até hoje junto, né, tamo junto e é, é o que eu te digo,
a fé é a base [...] tem que pensá em Deus, Deus é maior, né...
(silêncio) (F3).
Tem tanta religião que a gente perde até a fé. Tu vai pra uma
religião, tu vai noutra... (risadas)... eu não sei, eu acredito só em
Deus! Que eu acho que se Deus não te ajuda, ninguém mais vai te ajudá
[...] religião é muito boa, mas a religião boa mesmo é Deus (F7).
As cuidadoras afirmam a importância de Deus em suas vidas, exemplificando
quando relatam a não infecção do companheiro, mesmo mantendo relações sexuais
sem o uso do preservativo. Também, referem questionar a quantidade de religiões
existentes e as desvinculam da fé em Deus, o qual as ajuda no (con)viver com a
epidemia da AIDS. Os diálogos que o EU familiar estabelece com o TU Eterno
podem ser vislumbrados abaixo, quando é revelada a necessidade de se conformar
com a sua existencialidade e com as suas relações consigo, com o outro e com o
mundo:
Sabe, minha vida, pra mim... (silêncio)... pra mim tá sendo boa,
porque eu tô enfrentando as coisas, eu tô me tratando, né, tenho um
pouco de medo, assim, de algumas coisas, né, mas depois eu peço assim
pra Deus que Ele me dê vida pra eu podê vê os meus filho tudo grande,
né (F3).
Eu acho que no momento que Deus tiro a (nome da filha) de mim, ah...
(silêncio)... no momento de cada dor Ele qué ensinar alguma coisa, eu
acho, porque eu fiquei dentro do (nome do hospital), na frente da
estátua que nós temo lá no saguão, eu perguntei pra Ele o quê que Ele
queria me dize aquela hora, com aquele sentimento tão ruim que eu não
tinha conhecido ainda, porque é o sentimento mais forte, é um
sentimento assim, devastador! (F6).
A fé aparece como meio de ressignificar o vivido após a descoberta de se ser
portador do HIV, bem como por estar convivendo com uma criança que tem AIDS. O
diálogo que as cuidadoras estabelecem com Deus lhes possibilita compreender
suas experiências e, assim, tornar a vida mais tranqüila. Ao estar com o TU
Eterno, o EU familiar vivencia um encontro autêntico e acredita que a força
para viver se faz presente a partir dessa relação dialógica.
Esperanças na vivência do EU familiar
Esta subunidade revelou as esperanças presentes nas vivências do EU familiar ao
estar em relação dialógica tanto com o TU criança com AIDS como com o TU
Eterno. É em Deus e para Deus que as familiares cuidadoras voltam seu diálogo
na busca de respostas às suas necessidades e dificuldades existenciais, ao
cuidar de uma criança com AIDS, especialmente no que tange a possíveis mudanças
que se possam fazer presentes no seu processo de viver, bem como esperanças de
cura e de desenvolvimento de uma vacina anti-HIV.
No depoimento que segue podem-se perceber as esperanças de mudanças lançadas em
direção a/e dialogadas com o TU Eterno, que o EU familiar desvela ao estar-com,
existencialmente, o TU criança com AIDS:
Quanta coisa tá pra acontecê, né, quantas mudanças porque só esses
remédios que ele toma é fora de sério, né, porque, a carga viral dele
tá abaixo de 50, né, os CD tá 1000 e pouco. Quer dizé, ele tá
superbem, superprotegido, né, só que por tá ali, a gente sabe que o
vírus tá ali, né. [...] E a AIDS, eu creio que uma pessoa pode morrer
de velha, pelo menos é a minha esperança de vê meu filho, Deus sabe
disso, nem vê porque eu vô morrê antes que ele, né, mas que ele morra
de velho, porque se tu vê ele saudável como ele é, lindo, sabe (F2).
Para além dos diálogos que se estabelecem em torno das mudanças existenciais ao
conviver com a criança com AIDS, a cuidadora desvela, também, esperanças
relacionadas à cura dessa epidemia, como pode ser vislumbrado nos excertos
abaixo:
Daqui pra frente a gente tem que lutá pra, pras coisas melhorá cada
vez mais, né. Falam em cura, em coisa assim, né, se vier, já tamo
tratado pra se curá mesmo, né, tomara a Deus, porque eu sô, nesse
ponto assim eu sô bem, bem objetiva assim, gosto de fazê tudo que tem
que faze, né, pra dá certo e lutá por eles, que eles também não
pediram, né, pra vim e pra tê um poblema (F3).
... A gente sabe bem, bem no fundo do coração da gente, e Deus sabe
disso. É um poblema bem sério. Tu não tem certeza assim? É um poblema
bem sério isso aí, é a coisa... tomara que venha essa cura! (F4).
As crenças e esperanças relacionadas à cura da AIDS aparecem nas falas das
cuidadoras como expectativa que se faz presente em seu vivido e apresenta
relação com os diálogos que estabelecem com o TU Eterno. A cura é compreendida
como algo que pode vir a acontecer e que se apresenta como possibilidade de
solucionar os problemas advindos da infecção e das demais implicações dela
decorrentes, não só à criança com AIDS, mas também aos demais indivíduos
portadores do HIV.
Ao estar dialogando com Deus, as cuidadoras também desvelam suas expectativas
no desenvolvimento de uma vacina, como se percebe nos seguintes depoimentos:
Daqui uns tempo, de repente, já vai saí a vacina e tu pode tomá a
vacina e daí pronto, fica bom eu disse pra ele (criança com AIDS),
daí tu não vai mais precisá tomá remédio. Mas enquanto não saí a
vacina, a cura, nós vamo tê que tomá os remédio, e Deus vai nos
ajudando (F2).
O meu sonho é que venha a, a vacina, né, tomara a Deus! [...] Elas
têm caras de gurias bem normais e vamos lutar até o que dé, né! Eu
tenho muita fé nessa vacina que tá vindo, essa é a minha fé, porque
vai chegá uma hora que vai ter tudo isso aí. Então eu penso, no meu
pensamento, assim, que um dia vem a cura! (F4).
Ao encontro dos diálogos com Deus que revelam as esperanças do EU familiar para
a cura da AIDS, também aparecem as crenças e expectativas, vividas e
experienciadas, na possibilidade de desenvolvimento de uma vacina. Percebe-se
que as cuidadoras associam a vacina como algo complexo, aparecendo na relação
dialógica com o TU Eterno. Isso pode ser vislumbrado quando descrevem a vacina
como um "sonho", estando sua fé voltada para essa esperança, o que traz
implicações e repercussões à sua vida.
COMPREENSÕES ACERCA DAS RELAÇÕES E DIÁLOGOS ENTRE O EU FAMILIAR E O TU ETERNO
Dos discursos das cuidadoras de crianças com AIDS pode-se descortinar as
relações e os diálogos estabelecidos com o TU Eterno, seja em virtude de suas
próprias experiências quanto em virtude do vivido com a criança e das
(con)vivências com a epidemia HIV/AIDS. Isso porque o encontro dialógico com
Deus é descrito como relação que possibilita respostas sobre sua existência ao
estar convivendo com a infecção pelo HIV, bem como para significar sua relação
com a criança com AIDS. Nesse sentido, percebe-se que a fé aparece como algo
importante à vida daqueles que se descobrem (con)vivendo com a AIDS e, também,
como meio que possibilita o encontro do EU familiar com o TU Eterno.
Vislumbra-se que a fé, como possibilitadora do diálogo com o TU Eterno, é
considerada fundamental nas vivências e experiências do EU familiar ao estar
com AIDS. Percebe-se que a fé propicia à familiar cuidadora compreender os
significados de estar passando por dificuldades ao conviver com o HIV, além de
dar sentido à sua vida. Assim, "como fonte de interpretação para os
acontecimentos da vida, a religiosidade pode representar apoio para o
enfrentamento das dificuldades e para as mudanças de atitude"(7). A fé, então,
aparece para além de um meio para estar-com Deus, mas como elemento importante
por possibilitar à familiar compreender o que se apresenta ao seu vivido. É na
relação dialógica com Deus que ela busca significações e associações entre sua
saúde e o que faz como ser-no-mundo.
Pode-se compreender que a fé do EU familiar lhe possibilita o estabelecimento
da relação dialógica com o TU Eterno. É no diálogo com Deus que as cuidadoras
conseguem respostas às suas vivências e experiências como ser-no-mundo, além de
possibilitar a elas significar a relação com o outro, em especial com o TU
criança com AIDS. Sendo assim, Deus se faz presente na vida dessas mulheres
como uma força que dá sentido ao vivido(7,9,17).
O TU Eterno aparece nos diálogos com o EU familiar como se fosse um
conselheiro, um dos polos da relação interpessoal que propicia reflexões acerca
da vida e do futuro. É de Deus que as familiares cuidadoras esperam respostas
para os desafios que se apresentam em sua existência como, por exemplo, o
relacionamento amoroso com o outro, a ajuda nos momentos de dificuldades e as
preocupações em relação à infecção ou não do parceiro.
Faz-se importante destacar que o TU Eterno é absoluto e relacional, ou seja, é
um ser supremo e transcendente, estando presentificado no mundo, no outro e no
EU, mas também não pode ser separado da realização da comunidade humana e, por
isso, é um ser de relação, que possibilita o encontro por meio do diálogo(2).
Deus, então, precisa ser considerado "no mundo de todos os dias, em que os
homens realizam sua existência. É no diálogo da vida humana, constituída pelo
espírito que essa possibilidade de encontro último surge"(12).
Em meio a esses diálogos, aparece, ainda, a associação entre o TU Eterno e a
religião; porém, na compreensão do EU familiar, a religião emana em meio a
questionamentos e descrenças, descrevendo que o importante é ter fé em Deus, o
qual se revela uma "religião boa mesmo". A religião é instrumento criado pelo
ser humano para estar-com Deus, no entanto, o diálogo só acontecerá entre eles
quando o ser humano estiver aberto e disposto, de forma autêntica(2-3). Há que
se evitar que o TU Eterno "possa tornar-se objeto no mundo para ser explorado,
seja em nome da religião ou de qualquer outro sistema dogmático"(11).
Assim, os diálogos EU-TU Eterno fazem parte do existir da cuidadora ao
(con)viver com a epidemia da AIDS nas mais diferentes situações cotidianas,
como quando significa sua vida e tenta se conformar ao estar infectada pelo
HIV, ou quando busca respostas para enfrentar a perda de uma pessoa
significante. Deus, assim, está presente e é presença incondicional no vivido
por essas familiares cuidadoras, sendo que "a espiritualidade, a fé e as
crenças lhes dão forças necessárias para o cuidado e autocuidado e [para] não
se sentirem solitárias na luta pela vida"(7). O TU Eterno, ainda, é o mediador
nas situações cotidianas compartilhadas com o TU criança com AIDS, ajudando,
ensinando e significando para um viver mais pleno e tranquilo.
Percebe-se que essas mulheres compreendem e significam suas existencialidades,
bem como as implicações e desafios presentes ao estar, no mundo, (con)vivendo
com o HIV/AIDS, a partir do diálogo com o TU Eterno. Suas crenças,
desconfianças, esperanças e fé auxiliam-nas a suportar as dificuldades que se
manifestam no dia a dia, e a projetar o futuro(9,17). Assim, a relação dia-
logal e dia-pessoal com o TU Eterno é vivida em sua plenitude ao ter como
possibilidade um encontro com o seu próprio EU, com o outro (TU) e com o mundo.
Além disso, no descortinar dos discursos entende-se que as familiares
cuidadoras deixam emergir suas crenças e expectativas relacionadas ao vivido e
ao futuro da criança com AIDS. Porém, a relação que estabelece é voltada para o
TU Eterno, dialogando acerca das esperanças relativas às mudanças que possam
vir a acontecer em suas vidas e no contexto da infecção pelo HIV. O tratamento
antirretroviral que possibilita redução da carga viral e aumento das células de
defesa (CD4+) aparece como importante mudança percebida pela familiar, conforme
já encontrado em outros estudos(9,18).
Entende-se que o ser humano "só pode corresponder à relação com Deus, da qual
ele se tornou participante, se ele, na medida de suas forças, à medida de cada
dia, atualiza Deus no mundo"(2). Assim, as familiares, ao estarem em relação
dialógica com o TU Eterno, depositam Nele esperanças relacionadas às situações
cotidianas que vivenciam no compartilhar de experiências com a criança com
AIDS. Percebe-se, ainda, que Deus é presença ativa, atual e significativa na
vida dessas cuidadoras, influenciando suas relações consigo, com o outro e com
o mundo.
Ao entrar em relação dialógica com o TU Eterno, as cuidadoras, ainda,
relacionam suas crenças e esperanças às mudanças que estão se fazendo presentes
ao conviver com uma criança com AIDS, referentes, em especial, à morte. Isso
fica explícito quando o EU familiar descreve acreditar que, atualmente, uma
pessoa com AIDS possa "morrer de velha" e tem esperanças de deixar a criança
com AIDS neste mundo, vivendo bem e saudável.
O ser humano, como finito no tempo e no espaço, busca no diálogo com o TU
Eterno respostas sobre o seu vivido, sobre suas relações existenciais e sobre a
essência de seu ser. Essa relação autêntica que se firma com Deus possibilita
ao ser humano compreender suas potencialidades e limitações(2,10). Nesse
sentido, percebe-se que o EU familiar dialoga com o TU Eterno visando
consubstanciar suas crenças e expectativas.
Os diálogos com Deus, então, configuram tentativas para o ser humano buscar
respostas e compreensões sobre sua vida e sobre a relação existente entre eles.
O ser humano não está interessado em descobrir o que é Deus, mas qual a força
que Ele tem sobre suas vivências e experiências como ser-no-mundo e com-o-
outro. Isso porque Deus é significado como um ser atual, uma relação "dialogal
autêntica exige que o homem se considere não como objeto do pensamento de Deus,
mas como pessoa realmente livre, como companheiro em diálogo"(12). Assim,
quando as familiares desvelam suas crenças na cura da AIDS, buscam, na
companhia e no diálogo com o TU Eterno, esperanças para que esse desejo se
torne realidade.
Entende-se, ainda, que a vacina, assim como a cura da AIDS, aparece como
solução a uma situação que é considerada difícil e que é experienciada no dia a
dia ao (con)viver com a infecção pelo HIV, qual seja: a morte. Para essas
cuidadoras, a vacina representa a possibilidade última de cura e, portanto, o
meio que poderá assegurar vida futura autêntica à criança com AIDS. Seus
diálogos com Deus se desdobram em solicitações de ajuda, de atendimento a suas
necessidades e desafios existenciais ao estar no mundo com o outro.
Ainda, faz-se importante destacar que esses diálogos que o EU familiar
estabelece com o TU Eterno emanam das possibilidades, limitações e expectativas
ao conviver com o TU criança com AIDS. Portanto, os diálogos que atualizam as
esperanças em mudanças, na cura e na vacina acabam por revelar que o EU
familiar está em relação com o TU Eterno, com o intuito de buscar respostas às
suas crenças existenciais. As familiares cuidadoras, por meio de sua fé, buscam
em Deus respostas que lhes possibilitem compreender o significado das
repercussões e experiências que ocorrem em sua vida ao conviver com a criança
com AIDS.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo permitiu dar visibilidade a uma temática considerada complexa e de
delicados desdobramentos, que é fenômeno presente nas vivências e experiências
humanas e, cada vez mais, relacionado às situações de saúde e de doença que
acometem a população. Em especial no contexto da epidemia da AIDS, os diálogos
com Deus têm sido considerados elementos essenciais de enfrentamento às
diversas questões a ela relacionadas bem como representa importante fonte de
apoio às pessoas que vivem com a infecção pelo HIV.
Nesse sentido, os achados permitem depreender que as familiares cuidadoras de
crianças com AIDS buscam no diálogo com Deus respostas, autênticas e genuínas,
que possibilitem significar sua existencialidade e compreender os desafios,
necessidades e dificuldades presentes em sua vida e nas relações que
estabelecem com o outro e com o mundo. Em meio às perguntas e respostas,
atualizadas no encontro dialógico EU familiar e TU Eterno, importantes
elementos despontam como a fé, as crenças e as esperanças.
As cuidadoras significam a relação dialógica com Deus como importante fenômeno
presente em suas vidas, adquirindo maior relevância frente às facilidades e
dificuldades que se manifestam ao (con)viver com a AIDS. Uma resposta do TU
Eterno é buscada quando o EU familiar sente medo de infectar seu parceiro,
quando tem esperanças em ver os filhos crescerem, quando experiencia a perda de
pessoas significantes, quando vislumbra mudanças futuras relacionadas ao
tratamento antirretroviral, ao desenvolvimento de uma vacina e à cura.
A relação EU-TU Eterno, portanto, é vivida cotidianamente pelas cuidadoras de
crianças com AIDS e as auxilia a entender e superar obstáculos, a tirar
ensinamentos dos momentos difíceis e a continuar tendo esperanças e fé. Assim,
é importante conhecer as repercussões e implicações que esses diálogos com Deus
adquirem no modo como as mulheres cuidadoras significam sua vida e a relação
com a criança com AIDS. Ainda, esse conhecimento possibilitará desenvolver
cuidado de enfermagem técnico-científico e humanístico, visando potencializar o
viver melhor e mais saudável às pessoas que têm HIV/AIDS, a partir de um olhar
relacional-dialógico.