Violência denunciada: ocorrências de maus tratos contra crianças e adolescentes
registradas em uma unidade policial
INTRODUÇÃO
As crianças e adolescentes são apontadas como as vítimas mais vulneráveis à
violência, devido às suas fragilidades físicas e de personalidade.
Infelizmente, trata-se de um problema que ocorre independentemente de raça,
classe, religião ou cultura. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde
(OMS), em 2002, 53 mil crianças foram assassinadas no mundo inteiro(1).
No entanto, somente nas últimas três décadas a discussão sobre violência sexual
contra crianças e adolescentes obteve uma maior visibilidade por parte de
órgãos governamentais, entidades civis e organizações não governamentais no
País e no mundo. Porém, no que diz respeito ao atendimento especializado às
crianças e adolescentes vitimizados ainda se encontra em fase de construção no
Brasil, necessitando de um maior comprometimento das instituições envolvidas
neste processo(2), tendo em vista que as estimativas do País demonstram que 18
mil crianças são agredidas por dia, 750 por hora e 12 por minuto(3). Dessa
forma, destaca-se que as principais causas de óbitos na faixa etária entre 5 e
19 anos são a violência e os acidentes, matando mais que doenças parasitárias e
inflamatórias(4).
A agressão de uma criança em sua própria casa, local onde supostamente estaria
protegida da violência, cria uma situação de profundo desamparo para a vítima.
A obrigação de conviver com seu agressor e enfrentar o pacto do silêncio que
costuma envolver as pessoas mais próximas nesse tipo de situação, são fatores
que podem gerar efeitos desastrosos na formação da personalidade desses
sujeitos que ainda não chegaram à fase adulta(5). Nesse sentido diferencia-se
violência doméstica de violência intrafamiliar, a primeira trata-se de pessoas
que habitam a mesma casa, como por exemplo, os empregados, já violência
intrafamiliar é aquela cometida por um membro da família, não necessariamente
cometida dentro do espaço físico do lar(6).
Neste contexto classificam-se as diferentes formas de violência sendo elas:
Física- qualquer ação que cause dor física a uma criança; Psicológica- quando
há depreciação da criança pelo adulto o que pode bloquear seus esforços para
sua autoaceitação, gerando grande sofrimento mental; Sexual- qualquer ato ou
jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual entre pais, parentes ou
responsáveis e uma criança que tenha por finalidade estimulá-la sexualmente ou
utilizá-la para obter uma estimulação sexual; Negligência- omissão das
necessidades físicas e emocionais da criança e do adolescente e pode ser
identificada quando os pais ou responsáveis deixam de atender necessidades de
alimentação, vestimenta, moradia, higiene, desde que isso não seja resultado de
condições de vida que extrapolem seu controle. E por fim a violência fatal, que
ocorre como resultado das outras formas levando o indivíduo à morte(7).
Desta forma, a violência contra a criança deve ser entendida como um fenômeno
articulado a um problema estrutural e social ao qual a sociedade está exposta
(8), e ser reconhecida e considerada como um problema de saúde pública dada às
altas taxas de morbimortalidade que ocasiona.
Para tentar minimizar as conseqüências acarretadas pela violência faz-se
necessário um maior investimento em estratégias de prevenção na primeira
infância. As iniciativas de cooperação entre setores tão diversos como os da
saúde, educação, serviços sociais, a justiça e a política são indispensáveis
para resolver essa questão(9).
A notificação é um poderoso instrumento de política pública, pois ajuda a
dimensionar a questão da violência intrafamiliar, além de determinar a
necessidade de investimentos em núcleos de vigilância e assistência, permitindo
o desenvolvimento de pesquisas e o conhecimento da dinâmica da violência em
família(10).
A denúncia pode ser iniciativa de qualquer pessoa que se sinta prejudicada
individualmente ou coletivamente e objetiva provocar a punição do criminoso ou
infrator. Esta constitui um fator crucial para o enfrentamento das situações de
abuso contra crianças e adolescentes, uma vez que a proteção desses indivíduos
depende do conhecimento da violência pelos órgãos competentes.
A implantação de políticas para enfrentar essa situação no âmbito familiar, tem
sido uma preocupação do Estado brasileiro. Contudo a formulação e o correto
planejamento de ações necessitam embasamento epidemiológico. Esses dados podem
ser originados pelas denúncias feitas às inúmeras Instituições responsáveis: o
Conselho Tutelar, Ministério Público, Judiciário e a Delegacia de Polícia.
Dada à escassez e precariedade de informações, pode-se afirmar que as
Delegacias de Polícia constituem fontes importantíssimas de dados que devem ser
aproveitados para a formulação das políticas públicas, uma vez que as pessoas
da comunidade geralmente buscam essas instituições, haja vista a grande
vinculação existente entre "polícia e violência".
Neste contexto o objetivo do trabalho foi verificar a ocorrência de maus-tratos
físicos, psicológicos e/ou sexuais e negligência contra crianças e
adolescentes, de ambos os gêneros, registrados nas ocorrências policiais da
Delegacia de Defesa da Mulher de Araçatuba-SP, no ano de 2008. E desse modo
determinar as relações de parentesco entre agressores e vítimas; analisar as
agressões quanto ao dia, horário e local de maior ocorrência e descrever o
perfil de agressores e vítimas.
MATERIAIS E MÉTODOS
O estudo foi conduzido na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Araçatuba-SP.
O município não conta com uma delegacia específica para o atendimento de
crianças e adolescentes. Desta forma, os crimes praticados contra esse grupo
são apurados pela DDM, independentemente do gênero da vítima.
A população do estudo compõe-se de todas as ocorrências registradas na
Delegacia de Defesa da Mulher de Araçatuba-SP, no ano de 2008. Os dados
referentes a 2008 somente foram disponibilizados para estudo após o
encerramento do ano, dessa forma a coleta de dados referentes a 2008 foi
realizada no ano de 2009. Dentre as ocorrências registradas, foram selecionadas
para compor a amostra apenas as que se referiram à violência física,
psicológica, sexual e negligência, praticadas contra crianças e adolescentes de
qualquer gênero. Considera-se criança o indivíduo com idade entre 0 e 11 anos,
e adolescente aquele que possui entre 12 e 18 anos(11).
A coleta de dados foi realizada a partir dos seguintes registros policiais:
Boletim de Ocorrência e Termo Circunstanciado. O Boletim de Ocorrência é o
registro inicial do delito, apresentando os dados básicos do fato e das partes
envolvidas. Em alguns casos, no entanto, se faz o Termo Circunstanciado, usado
apenas para crimes considerados de menor potencial ofensivo como lesões
corporais leves, ameaças, entre outros.
Nesses documentos todos, foram analisadas as seguintes informações: Agressão -
horário; dia da semana; local da ocorrência; relação vítima-agressor;
parentesco vítima-agressor - classificado em três grupos, sendo o primeiro
(Grupo A), composto por relações entre casais (cônjuges, companheiros,
namorados, etc.), o segundo (Grupo B) entre responsáveis (pais/responsáveis,
padrastos, madrastas) e o terceiro (Grupo C) entre os demais familiares
(irmãos, primos, tios etc.); características dos agressores e vítimas quanto ao
gênero e idade; procura da vítima por serviço de saúde.
O projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Faculdade de Odontologia de Araçatuba-UNESP para apreciação, respeitando-se os
ditames éticos da Resolução 196/96. A fim de preservar a identidade das vítimas
e agressores, os documentos foram analisados de forma a ocultar nomes ou
quaisquer outras informações que pudessem identificá-los.
Os dados coletados foram digitados em uma planilha eletrônica criada no
programa Epi Info, versão 3.5.1. Foi realizada a análise estatística
descritiva.
RESULTADOS
Em 2008 foram registrados na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Araçatuba,
1.281 Boletins de Ocorrência e 242 Termos Circunstanciados, dos quais 311
correspondiam a ocorrências contra crianças e adolescentes.
Em relação ao tipo de ocorrência, 37,7% dos casos correspondia à categoria
"Outro". Esta categoria inclui: abandono de incapaz, corrupção de menores,
tortura e lesão corporal culposa (quando não há intenção de lesionar a vítima),
porém nenhum desses resultados isolados foi maior que a prevalência de Lesão
Corporal, correspondendo a 22,6% das ocorrências (Figura_1).
![](/img/revistas/reben/v64n4/a06fig01.jpg)
A maior ocorrência de violência foi entre 18 e24 horas, correspondendo a 33,4%
dos dados. O sábado (16,4%) foi o dia da semana com maior registro de
ocorrências policiais. A própria residência foi o local onde ocorreu a maior
parte das agressões, totalizando 59,8% dos casos (Figura_2).
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Em relação ao agressor (Tabela_1), houve predominância do sexo masculino
(49,52%); em relação à cor da pele, a prevalência foi a branca (39,87%).
Analisando a idade, foi possível verificar que a maioria dos agressores
pertence à faixa etária de 21 a 30 anos. Quanto ao parentesco com a vítima, em
11,90% dos casos tratava-se da própria mãe e em segundo lugar o pai, com
10,61%.
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Em 49,6% dos casos o motivo que ocasionou a violência não foi relatado, e em
35,9% dos casos houve discussão ou desentendimento entre os envolvidos (Figura
03).
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Em 67,84% dos casos de violência registrados, as vítimas são do sexo feminino e
a maioria (64,95%) apresenta pele branca, sendo a faixa etária de maior
prevalência dos 11 aos 15 anos (41,48%). A maior parte das vítimas estava
presente no momento do registro da ocorrência, acompanhadas pela mãe no Plantão
Policial (45,98%); em 23 casos (7,39%) houve procura pelo serviço de saúde
(Tabela_2).
[/img/revistas/reben/v64n4/a06tab02.jpg]
DISCUSSÃO
As crianças e os adolescentes figuram como as principais vítimas de todos os
tipos de violência intrafamiliar, o que contraria a idéia de que o lar é um
local seguro e confere proteção à criança.
Dentre as formas de violência sofridas, destacam-se a violência física, o abuso
sexual e as negligências, tanto de ordem material, quanto afetiva(12).
Os dados deste estudo evidenciaram vários tipos de crimes praticados contra as
crianças e adolescentes, dentre eles, lesão corporal (violência física), maus
tratos (agressão e/ou negligência) e ameaça (violência psicológica). Abandono
de incapaz, estupro, corrupção de menores, entre outros, também se destacaram
entre as denúncias analisadas, o que confirma a diversidade das formas de
agressão.
Estudosenfatizam que a violência física é a mais notificada, seguida pela
negligência e violência psicológica(13). O lar aparece como local privilegiado
para os episódios desse tipo de violência, pois tanto as vítimas quanto os
agressores, muitas vezes, costumam permanecer a maior parte do dia em seu
domicílio(14). Isso porque o agressor supostamente conta com a cumplicidade de
outro(s) membro(s) da família ou ainda, por não assumir a criança mantendo uma
postura de não comprometimento com o agredido. No presente estudo pudemos
confirmar esse fato. Porém, esse tipo de violência também apareceu, com uma
menor freqüência, em outros locais como as instituições escolares e vias
públicas.
A agressão física é, sem dúvida, de mais fácil reconhecimento, todavia não é só
essa forma de violência que pode desenvolver-se no interior das famílias. A
violência psicológica tem-se mostrado muito freqüente e exige atenção redobrada
do profissional de saúde, já que sua manifestação, às vezes sutil, pode passar
despercebida. Destaca-se dessa forma a grande importância desses profissionais
em detectar e denunciar os casos comprovados ou mesmo suspeitos aos órgãos
competentes.
Quanto às características das agressões, de forma geral, o fato de ocorrerem
com mais freqüência aos sábados, no horário noturno, pode ser atribuído também
pela maior permanência dos membros da família em suas casas aos finais de
semana e durante a noite.
Os motivos alegados para justificar a agressão praticada contra crianças e
adolescentes são os mais variados, mas na maioria dos casos não há motivos
concretos. Os fatos corriqueiros e banais podem ser os responsáveis pela
conversão de agressividade em agressão. Estudos revelam que o elevado nível de
violência perpassa as relações entre os seres humanos, como o baixo nível de
tolerância ao outro, a ausência de diálogo na resolução dos problemas, a
desvalorização da vida e o elevado nível de estresse nas relações interpessoais
(15). Os conflitos conjugais geram insegurança emocional nas crianças que
presenciam estes eventos, refletindo em perturbações na qualidade e na duração
do sono desses indivíduos. Isto traz um efeito negativo em relação ao
desempenho acadêmico, comportamental e emocional(16).
Quando se analisa quem seria com maior freqüência o agressor, observa-se a
situação da mãe na família, pois é ela quem está mais próxima fisicamente da
criança, seja responsabilizando-se pelo cuidado afetivo e educacional dos
filhos, seja garantindo sua sobrevivência, já que, na maioria das vezes, quando
o casal está separado, é com ela que a criança permanece. Essa proximidade
parece favorecer a ocorrência de situações de violência(13). Este destaque da
mãe enquanto agressor é referendado em vários trabalhos(6,13,14), confirmando
os dados obtidos neste estudo. Seguido da mãe, pudemos verificar outras
relações entre vítima e agressor, como o próprio pai, colegas de escola,
funcionários das instituições escolares e outros adolescentes e adultos em
geral.
Quanto ao gênero das vítimas pudemos conferir que as crianças e adolescentes do
gênero feminino são submetidas a situações de violência com mais freqüência que
as do sexo masculino. Isto pode ser explicado pelo fato de o sexo feminino
estar mais vulnerável às agressões e pela ideologia de uma suposta fragilidade
feminina.
Quanto a baixa procura pelo Serviço de Saúde, outros estudos demonstraram que
ao investigar os locais de escolha por vítimas de violência doméstica encontrou
as delegacias de polícia como primeiro lugar (36,8%), enquanto que os serviços
de saúde só foram buscados em 5,3% dos casos(17). Isso pode significar que as
lesões não representaram um problema grave para as vítimas ou que as mesmas não
consideram o setor de saúde como competente para lidar com a violência(18). Ou
ainda o motivo da não procura de ajuda pode ser porque como são os responsáveis
que cometem na maioria das vezes a agressão, não tem consciência do dano
causado a criança ou não querem ser condenados, por isso evitam buscar o pronto
atendimento. Cabe, no entanto, aos profissionais de saúde ficar atentos para
casos suspeitos de violência e a notificação dos mesmos, visto que estão
sujeitos a penalidades sob forma de multa e, no caso de reincidência, uma multa
com o valor maior ainda. Além disso, a contribuição desses profissionais é de
fundamental importância uma vez que estão em contato direto com possíveis
vítimas, principalmente aquelas que são agredidas pelos seus responsáveis e
desta forma podem não ter acesso à procura por ajuda.
A criança que se desenvolve num ambiente violento pode apresentar sinais como
dificuldade para expressar-se, baixa autoestima, e ainda a percepção de ter
poucos amigos. Para aquelas que já apresentam características emocionais
instáveis, como por exemplo, a depressão, o fato de crescer num ambiente
violento pode prejudicá-las ainda mais, tornando-se uma atmosfera favorável
para novas vitimizações(19).
Em face da complexidade da violência contra menores, há necessidade de realizar
ações conjuntas entre setores da saúde, setores públicos e da sociedade civil,
a fim de prevenir e enfrentar essas situações(20).
Torna-se, portanto, imprescindível o traçado epidemiológico da agressão contra
a criança e o adolescente no mundo e no Brasil a fim de conhecê-la, e desse
modo mapear sua morbidade que ainda é pouco conhecida, formando assim um
diagnóstico que possa subsidiar o direcionamento de medidas de controle,
prevenção e efetivas ações de atendimento(20).