Processo de morte e morrer: evidências da literatura científica de enfermagem
INTRODUÇÃO
A temática da morte e o processo de morrer, intrínseco a ela, residem
atualmente no ideário coletivo das sociedades ocidentais, sendo propalados
indiscriminadamente por veículos de comunicação de larga natureza. A morte é a
notícia mais frequente(1), destacando-se os casos nos quais o delinear do
morrer se sucede em completo anonimato, na solidão, sem cuidados, em
substância, sem uma presença amiga que possa propiciar o aconchego de uma
relação humana aliado a cuidados embasados em conhecimentos científicos.
A morte e o morrer são inerentes à existência humana(2). As incertezas e a
imprevisibilidade que se dispõem em volta do binômio morte-morrer compelem o
ser humano a conviver com a sua presença desde o início ao estágio final do seu
desenvolvimento(3).
Partindo deste pressuposto, é justificado os indivíduos concederem à morte um
caleidoscópio de significações. Os conflitos acarretados pela morte nos seres
humanos, seja em relação à sua própria morte, à de seus familiares, ou mesmo no
exercício profissional, deixam em relevo sentimentos diferentes exemplificados
pela raiva, pela tristeza, pela barganha e pela negação, os quais carecem de
discussão e de análise, de modo a propiciar um enfrentamento mais apropriado do
processo de morte e morrer(4).
As distintas formas de se encarar a morte e o morrer são encontrados nos vários
períodos da História, traduzindo a diversidade de culturas que existiram no
mundo, as variedades de pensamentos e as muitas individualidades que expressam
sua ideia(5). Com o rompimento dos paradigmas construídos socialmente pode-se
ressaltar ainda a mutação dos contextos concernentes aos rituais funerários e à
ascensão do âmbito hospitalar como principal cenário de morte em nossa
realidade.
Este fato é justificado porque se vigora a necessidade de se esconder a morte e
os mortos, ocultando-se a figura social do moribundo(6). Neste sentido,
percebe-se a constante institucionalização de idosos e enfermos na tentativa de
evitar quaisquer vínculos afetivos com estes sujeitos.
Denota-se assim, a premência da implementação de ações direcionadas à
preparação dos profissionais de saúde, especialmente, de enfermagem uma vez que
se acercam a todo instante e de modo íntimo dos sentimentos, das frustrações e
dos medos que são próprios da cultura e dos vividos de cada indivíduo que
padece. Neste sentido, é relevante valorizar a dimensão emocional da equipe de
enfermagem, destacando que antes de cuidar do outro que está morrendo, é
preciso cuidar da emoção dos que cuidam(7).
O interesse em estudar a morte emerge do propósito de se promover uma reflexão
sobre o fenômeno da morte e do morrer tendo-se em vista as limitações inerentes
aos seres humanos, de um modo geral, na convivência com este evento, que é
inalienável à nossa realidade existencial.
Com este estudo, esperamos contribuir para o processo de desmistificação da
morte e do morrer, tornando-o mais humano, através da substituição da
curiosidade, do medo e da insegurança pela necessidade de reformular a
assistência com desígnio de priorizar o enfrentamento do fato em detrimento de
sua contestação. Esperamos, também, contribuir dando subsídio para outras
pesquisas que relacionem esta problemática, tendo em vista a escassez de
estudos congêneres.
Considerando a revisão sistemática da literatura como via de acesso ao
conhecimento pré-existente e à necessidade dos autores de, a partir de
resultados em evidência, refletirem acerca do que já se pesquisou sobre o tema
em foco, formula-se a seguinte questão: quais as percepções, sentimentos e
intervenções efetivas de estudantes e profissionais de enfermagem, diante o
processo de morte e morrer no exercício profissional?
Partindo desta interrogativa, definimos como objetivos para este estudo:
identificar o perfil das produções e analisar percepções, sentimentos e
intervenções efetivas diante do processo de morte e morrer no exercício
profissional evidenciados na produção científica da enfermagem no período de
1994 a 2009.
METODOLOGIA
Estudo de natureza qualitativa e descritiva, desenvolvido por meio de uma
revisão sistemática da literatura: recurso que proporciona a incorporação das
evidências científicas na prática da enfermagem, tanto na pesquisa, quanto na
assistência(8-9).
A pesquisa compreendeu três fases: revisão sistemática da literatura; avaliação
crítica dos artigos e metassíntese: método de pesquisa cujo objetivo é a
análise minuciosa da teoria, métodos e resultados obtidos por estudos que
utilizaram a abordagem metodológica qualitativa(10).
A primeira fase: revisão sistemática da literatura realizada a partir de
pesquisa bibliográfica eletrônica, utilizando as bases de dados: PubMed, Lilacs
e SciELO a partir dos descritores: morte and enfermagem. Para seleção dos
estudos, adotou-se como critérios de inclusão: pesquisas qualitativas
realizadas pela enfermagem sobre o processo de morte e morrer, publicados em
português, inglês ou espanhol no período entre 1994 e 2009. Foram
identificados, inicialmente, 1.458 trabalhos.
Os estudos selecionados deveriam apresentar clareza quanto a alguns aspectos
metodológicos, tais como: estudo original com amostra de sujeitos de ambos os
sexos; desenho metodológico e enfoque teórico empregado na coleta e análise dos
dados; amostras intencionais com critério de seleção explicitado e tamanho
definido por processo de saturação de conteúdo; detalhamento da análise dos
dados. Foram excluídos capítulos de livros, teses e dissertações, assim como
estudos cujo objetivo central fosse o olhar dos pacientes diante da
possibilidade da morte.
A segunda fase, a avaliação crítica dos estudos, foi feita com base no Critical
Appraisal Skills Programme (CASP) (11) um check list que traça diretrizes para
a avaliação da qualidade de pesquisas qualitativas. O CASP é composto por 10
itens que permitem classificar os artigos em categorias de acordo com estrutura
metodológica. Os estudos foram classificados em categorias A e B.
A categoria A significa baixo risco de viés e deve atender pelo menos nove dos
dez itens propostos: objetivo claro e justificado; desenho metodológico
apropriado aos objetivos; apresentação e discussão dos procedimentos
metodológicos; seleção da amostra intencional; descrição da coleta de dados: a
escolha do instrumentos e o processo de saturação; relação entre pesquisador e
pesquisado; procedimentos éticos; análise densa e fundamentada; resultados
apresentados e discutidos, apontando o aspecto da credibilidade; descrição
sobre as contribuições e implicações do conhecimento gerado pela pesquisa, bem
como, suas limitações. A categoria B, por sua vez, corresponde a, pelo menos,
cinco dos dez itens e significa que são atendidos parcialmente os critérios
adotados, apresentando risco de viés moderado.
A terceira fase: metassíntese foi realizada por quatro revisores independentes.
As categorias utilizadas na avaliação e na metassíntese foram obtidas por
consenso entre os avaliadores. Os trabalhos selecionados foram lidos e
avaliados a partir do método meta-etnográfico, ou seja, àquele que envolve
indução e interpretação, trabalha com a ressignificação (translation) dos
resultados entre os trabalhos, permitindo a compreensão e transferência de
idéias, conceitos e metáforas ao longo dos diferentes estudos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Embasados na leitura crítica dos títulos e dos resumos de todos os estudos
localizados na busca eletrônica, 39 trabalhos preencheram os critérios pré-
estabelecidos e foram lidos na íntegra. Ao final desse processo, 10 trabalhos
atenderam a estes discernimentos de inclusão. Este conjunto foi então submetido
à avaliação de qualidade.
De acordo com os critérios de qualidade aplicados, três estudos foram
classificados como A e sete como B. Os estudos selecionados são apresentados na
Tabela 1, quanto aos autores, país do estudo, participantes, o método de coleta
de dados, enfoques teóricos e nível de qualidade do estudo.
O Quadro_1 mostra o quantitativo de participantes do estudo: os trabalhos sobre
o processo de morte e morrer incluem uma amostra diversificada, perfazendo
aproximadamente 222 sujeitos entre acadêmicos e profissionais de enfermagem.
Para produção dos dados, as estratégias foram várias: entrevistas semi-
estruturadas (12-15,18,20), grupo focal (18,21), entrevista em profundidade
(19,21), entrevista aberta (16), dinâmicas de grupo e oficinas (17).
Percepções acerca da morte
Os conceitos emergidos diante da morte e do processo de morrer desmembram-se em
elementos como: passagem, separação e finitude. O elemento denominado passagem
compreende uma concepção espiritual do tema, em que a pessoa tem a morte como
transição entre o mundo material e o espiritual.
Eu acho que é uma passagem, uma etapa da vida, eu acho que nosso
corpo fica e nosso espírito vai para outro lugar. (13)
A morte é uma continuidade, é separação e tristeza, é conseqüência da
vida, é descanso, é dever cumprido (14)
A morte é uma coisa desconhecida. (20)
Morte é o fim de tudo, da manifestação da vida de uma pessoa. É um
acontecimento biológico. (21)
A morte como passagem é a representação das crenças e convicções espirituais do
ser humano (20). Ela é vista como evento que ocorre com todos, num futuro,
portanto supostamente desconhecido. A morte vista como o desconhecido traz à
tona a emoção do medo, o mistério, o não familiar, que, é também associada a
certo fascínio, pois oferece a possibilidade de desvendar algo que não se
conhece e que pode ser mais instigante que a própria existência(16).
A morte vinculada à idéia de finitude pode vir acompanhada de tristeza e
revolta, considerando que ela interrompe a vida e reflete a idéia de pensar na
morte fora de hora. Pode também ser arrostada com indiferença, fatalidade, após
ter-se cumprido uma missão; poderá ser chamada de morte na hora certa(18).
Sentimentos relacionados à morte
Mediante as diversas formas como os participantes do estudo percebem a morte e
o morrer diversos sentimentos emergem. Estes devem ser exaustivamente
explorados considerando que o autoconhecimento é um processo importante a ser
averiguado a fim de melhor lidar com situações que impliquem manifestação de
emoções profundas, principalmente as relacionadas com a morte. Os estudos
revelam que os sentimentos são negativos: medo, perda, sofrimento, tristeza,
angústia, impotência, frieza, dor, fracasso e erro.
A morte é carregada por um estigma muito grande, um misticismo, isso
então cria uma concepção da morte como frustração e dor. (17)
A gente sente sim, e sofre bastante com a perda. (15)
Eu não consigo definir o que eu senti [...]. É mais do que uma
frustração, é um sentimento muito ruim, é uma impotência. (14)
Eu fico muito triste. (12)
A vivência da frustração é angústia frente à situação irreversível: a perda. A
sensação de frustração surge em conseqüência da própria formação direcionada a
recuperar a vida. A perda do controle da situação, a iminência da morte, apesar
de todos os recursos tecnológicos, faz com que os profissionais se defrontem
com suas limitações. Ao reconhecê-las, é como se a habilidade profissional
estivesse sendo testada, como se a manutenção da vida dependesse da competência
da equipe responsável pelo paciente(17).
Há também os sentimentos de tristeza e impotência que variam de acordo com as
estratégias de cuidado que são utilizadas. Aqueles que se envolveram mais com o
paciente, após maior convivência, revelam um profundo sentimento de tristeza e
angústia ligado a esse cuidado. Os dados encontrados são similares aos dados da
literatura. Sentimentos de frustração e impotência nesse cuidado ineficaz, que
acaba no momento da morte do paciente; assim como a própria percepção do
despreparo técnico e incapacidade de lidar com os próprios sentimentos são
relatados tanto por estudantes como por profissionais de enfermagem(12-21).
Estratégias de enfrentamento diante da morte
A dificuldade em se relacionar com pacientes com prognóstico de morte se deve
em parte às características apresentadas pelo paciente nesta fase e,
principalmente, à dificuldade interna que sentem em lidar com o problema.
De um modo geral, é perceptível que aos estudantes e profissionais de
enfermagem não é permitido viver o luto de outros, talvez, na tentativa de se
protegerem ou então porque não estão preparados para conviver com essas
manifestações somáticas e emocionais. Eles acreditam que sua postura deva ser
firme e que reconhecer o seu sofrimento significa ferir sua índole. Ainda há a
visão de que o profissional deva ser "frio" ou indiferente na situação de
morte.
Mentalmente, eu procuro separar um pouco a vida particular de dentro
da UTI, porque senão a gente entra em parafuso. Eu procuro separar.
(16)
Pra mim, é natural, eu já aprendi a lidar tanto com a vida como com a
morte. (17)
O enfrentamento da morte tem por princípio o desenvolvimento da sua própria
compreensão (de sua subjetividade), tendo por dimensão os conceitos de
irreversibilidade e universalidade. A irreversibilidade refere-se à compreensão
de que o corpo físico não pode viver depois da morte, portanto, inclui o
reconhecimento da impossibilidade de mudar o curso biológico ou de retornar a
um estado prévio. A universalidade refere-se à compreensão de que tudo que é
vivo morre(13,16).
É relevante destacar que o enfrentamento do sofrimento causado pela perda de um
paciente pode ser construtivo, desde que se tenha auto-estima elevada e
maturidade para encarar este tipo de atividade, orientada pela sua
responsabilidade e ética profissional. No entanto, para impedir o sofrimento é
necessário que tanto o acadêmico como o profissional busque maneiras para lidar
com ele, negando a sua presença ou acostumando-se com a sua existência(18).
CONCLUSÃO
Independentemente do método e da forma com que os dados foram coletados, os
sujeitos apresentaram percepções, sentimentos e enfrentamentos semelhantes a
respeito do processo de morte e morrer.
Evidenciou-se a partir da literatura que acadêmicos e profissionais de
enfermagem percebem este processo como passagem, separação e finitude.
Percebeu-se o despreparo, que aparece ao defrontar-se com a situação real. Para
todos, foi uma experiência dolorosa. Para alguns, resultou em aprendizado e
superação. A evidência da tensão entre o ideal pessoal de cuidar do paciente e
a realidade particular que se vive ao cuidar aparece nos discursos e estão
permeados de sentimentos de frustração e impotência.
O estudo demonstra que as intervenções mais efetivas diante deste problema é o
desenvolvimento de estratégias de enfrentamento que variam de acordo com a
realidade de cada indivíduo: o contexto e o vivido de cada ser. Para os
estudantes e profissionais de enfermagem são consideradas efetivas a
desvalorização do biologicismo em detrimento a subjetividade que permeia a
existência humana em que a morte é inevitável, considerando que o homem é um
ser-para-a-morte.
Dentre as evidências práticas relacionadas às estratégias de enfrentamento
destaca-se nos estudos: a separação das emoções vividas no trabalho da vida
particular; a resistência psíquica à agressão que constituem determinadas
atividades inerentes ao trabalho, em especial, àquelas relacionadas à morte.