Qualificando o cuidado à criança na Atenção Primária de Saúde
INTRODUÇÃO
O cuidado à criança, ou a qualquer outra fase do ciclo vital humano, é
complexo, multidimensional e sofre influência de diversos e distintos fenômenos
nas ações do cuidar. O cuidado apresenta-se, como um conjunto de circunstâncias
interdependentes, que resulta em um uma conjugação de elementos que confluem
para um todo complexo que se constrói e se modifica continuamente(1). Por
conseguinte, a integralidade, como princípio da política de saúde, remete para
a compreensão de que os fatores que interferem na saúde da criança são amplos e
perpassam por outros setores que não só o da saúde.
O Programa de Atenção Integral à Saúde da Criança (PAISC) tem como proposta,
além da organização dos serviços, a organização de um processo de abordagem que
envolve toda uma rede de instituições e serviços de forma a obter impacto
epidemiológico sobre determinadas circunstâncias do processo de viver da
criança. É uma proposta que exige que profissionais, equipe, instituição e
unidades de saúde se organizem como um todo, implicando na atuação multi, inter
e transdisciplinar. Trata-se, portanto, de um fazer/pensar integrado de todo o
serviço e de toda a equipe e não da tarefa de um profissional ou de uma
categoria isoladamente. O sentido da integralidade do cuidado é muito mais que
um procedimento, uma ação, uma conduta terapêutica/assistencial realizada por
um profissional de saúde. Na perspectiva da integralidade, o cuidado tem o
sentido de "atitude cuidadora que envolve o assistir ou o tratar segundo os
parâmetros do acolher e do respeitar"(2). É uma prática que se traduz em
atitudes de sensibilidade, confiança, pertencimento, tratamento digno,
horizontalidade e continuidade da atenção.
Por outro lado, a abordagem na saúde se constitui em espaço de intervenção de
sujeitos que podem exercer o seu trabalho conforme seus modos de compreender e
atribuir sentidos ao seu fazer, ao seu agir, pois, em um sistema de saúde os
profissionais produzem modos diferentes de cuidado e de cuidar que também são
percebidos de diferentes maneiras por quem é cuidado. Portanto, os modos de
cuidar e de produzir cuidados vão se delineando e sendo percebidos por quem
produz e por quem os recebe. Nessa perspectiva questiona-se: Como é
caracterizado o cuidado à criança na atenção primária para profissionais da
Estratégia Saúde da Família, gestores, docentes e mães? Objetivou-se, pois,
compreender modos de cuidar e de cuidado à criança na Atenção Primária de
Saúde.
METODOLOGIA
Estudo qualitativo, apoiado nos pressupostos da Grounded Theory(3). Foram
sujeitos da pesquisa gestores estaduais e municipais de saúde, enfermeiros e
médicos da Estratégia Saúde da Família, docentes dos cursos de graduação e pós-
graduação de Enfermagem e Medicina, coordenadores de serviços da área da
criança e mães de crianças menores de cinco anos cadastradas e atendidas pela
Saúde da Família no município de São Luís, capital do estado do Maranhão,
situado na região nordeste do Brasil. A coleta e análise dos dados foi guiado
pela amostragem teórica, que consistiu em decidir quais dados coletar e onde
encontrá-los para assim reunir dados sobre o mesmo evento ou fenômeno e
entrevistar múltiplos atores. Portanto, o objetivo da amostragem teórica é
permitir ao investigador buscar "locais, pessoas ou fatos que maximizem
oportunidades de descobrir variações entre conceitos e de tornar densas
categorias em temos de suas propriedades e de suas dimensões"(4). Em síntese, o
investigador decide, com base em seus próprios dados, que informação coletar e
onde encontrá-las.
Por compreender que o objeto investigado encontra-se situado sob três grandes
dimensões: da política de saúde, da organização do sistema de saúde e da
organização das práticas de cuidado, procuramos buscar, nestas três dimensões,
os participantes da investigação, que representassem melhores possibilidades
para a compreensão da integralidade do cuidado à criança na Atenção Primária de
Saúde. Assim, para o primeiro grupo amostral, centramos a investigação na
primeira e segunda dimensão sendo sujeitos de pesquisa o gestor estadual e
municipal, os coordenadores e chefes de serviços da Atenção Primária de Saúde
totalizando sete participantes.
Participaram do segundo grupo amostral os profissionais que, no período da
coleta, exerciam função de coordenadores de curso de graduação (Enfermagem e
Medicina); coordenadores de curso de pós-graduação (Especialização em Saúde da
Família e Mestrado em Saúde da Mulher e da Criança) e docentes totalizando seis
participantes. O terceiro grupo amostral envolveu sete profissionais da
Estratégia Saúde da Família (05 enfermeiros e 02 médicos). Cabe relatar que,
para este grupo, foram definidos alguns critérios de inclusão: ser Unidade
Saúde da Família, estar com a equipe completa e os profissionais terem vínculo
definido por concurso público e em exercício profissional por pelos menos um
ano. O quarto grupo amostral foi constituído por cinco médicos da Estratégia
Saúde da Família, para os quais foram estabelecidos os mesmos critérios do
grupo anterior. O quinto grupo amostral foi composto por quatro mães, cujas
famílias eram cadastradas na Estratégia Saúde da Família e as crianças
acompanhadas pela equipe de saúde. Participaram, portanto, 29 sujeitos entre
profissionais de saúde, gestores, docentes e mães.
A coleta de dados foi realizada com o recurso da entrevista semiestruturada
realizada nos locais de trabalho dos participantes, em data e horário por eles
definidos. O encontro com as mães para a entrevista aconteceu antes ou depois
do atendimento de enfermagem ou médico de seus filhos na própria unidade de
saúde.
Buscando alcançar o objetivo proposto na investigação as entrevistas foram
conduzidas por diversos questionamentos que se diferenciaram segundo as
hipóteses e o grupo amostral. Para o primeiro grupo foi perguntado: Como os
profissionais de saúde centram seus atos de cuidado à criança? No segundo e
terceiro grupo as perguntas foram as seguintes: Como acontece o cuidado à
criança na sua equipe de trabalho? Que escolhas você faz para cuidar da
criança? A partir das categorias e das relações entre elas, foi elaborada a
seguinte pergunta de pesquisa para o quarto grupo amostral, constituído somente
por médicos: Como os médicos se posicionam frente ao trabalho no PSF e às
demandas do cuidado à criança? De que forma você contribui para o cuidado à
criança? Buscamos no quinto grupo amostral maior densidade das categorias.
Participaram desse grupo cinco mães que foram assim questionadas: O que você
pensa sobre o cuidado à criança no PSF? O que você deseja para o cuidado dos
seus filhos no PSF?
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital
Universitário, da Universidade Federal do Maranhão (HU-UFMA), sob o Registro nº
254/06 e Processo nº. 33104-850/2006. Nas falas dos participantes optamos por
identificá-las por nomes próprios, mas que não são os verdadeiros nomes dos
participantes. Seguindo os critérios éticos, definidos na Resolução 196/96 do
Conselho Nacional de Saúde nos preocupamos em somente iniciar a coleta de dados
após o parecer formal do Comitê de Ética e da autorização da Secretaria
Municipal de Saúde. A adesão, dos participantes à investigação foi voluntária,
independente de qualquer benefício ou constrangimento. A coleta dos dados foi
posterior aos esclarecimentos sobre os objetivos do estudo e da leitura e
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foi garantido aos
participantes o acesso às pesquisadoras para quaisquer esclarecimentos, assim
como o desligamento dos mesmos a qualquer momento do processo da investigação;
mantivemos em sigilo o nome de todos os participantes atribuindo codinomes.
RESULTADOS
Cuidar da criança relaciona-se às práticas dos trabalhadores de saúde, no
sentido de que esses sejam capazes, em um diálogo recursivo, gerar acolhimento,
vínculo e responsabilização em um esforço, para desfragmentar o atendimento e
gerar um legítimo encontro com o outro, no nosso caso, criança e família. No
entanto, não existe um sentido comum sobre o que seria o melhor para as
diversas maneiras de agir, de cuidar. O que podemos interrogar são os valores
que atribuímos ao nosso agir. Pois são os valores que determinam e revelam os
nossos compromissos e responsabilidades para com o outro. Assim, o conceito
Qualificando o cuidado à criançadiz respeito à nossa essência como
profissionais da saúde. Diz respeito às nossas opções e desejos, às nossas
escolhas. Do ponto de vista dos participantes da investigação o cuidado se
manifesta nos modos de cuidar que se conformou no processo de análise dos dados
em cinco subcategorias: Vendo o Cuidado Diferente; Falando do Cuidado Desigual;
Comentando sobre o Cuidado "Invisível"; Caracterizando o Cuidado Integrale
Atribuindo Valores ao Cuidado.
A subcategoria Vendo o cuidado diferenteindica uma maneira de ser e de se
ocupar de alguém(5-6), tendo em consideração as suas necessidades, os seus
desejos. Dá a ideia de conhecer, dedicar atenção particular. Enquanto que,
Falando do cuidado desigual,significa fazer julgamentos à mãe assim como as
dificuldades de acesso aos serviços de saúde. Estas duas subcategorias colocam-
se entre as dimensões do cuidado percebidas pelos participantes e expressas nas
suas falas:
Eu aqui (na Unidade de Saúde) me sinto em casa, todo mundo me
conhece, sabem onde eu moro, como é que eu vivo. Conhecem meus
filhos, meu marido, todo mundo, as pessoas sabem quem eu sou, e quem
meu filho é. Eu sinto a diferença quando eu vou para outro hospital,
para outro posto porque lá ninguém me conhece e a gente é uma pessoa
estranha. Gosto daqui por causa disso. Lá eu não sei o nome deles
(profissionais) e eles não sabem o meu. É diferente. Lá no hospital
eles acham que a culpa do filho da gente adoecer é da mãe. Elas dizem
que se o menino está assim é porque a gente não leva no médico...
dizem essas coisas assim. (Emilia)..
Eu vejo que no PSF existem duas coisas que são importantes em relação
ao cuidado a criança. Uma é que nós identificamos nas visitas
domiciliares que as mães cuidam, apesar de todas as dificuldades, e
isso afasta aqueles julgamentos que às vezes nós fazemos quando não
conhecemos. E outra coisa é que as mães percebem que estamos
interessadas na saúde dela e dos filhos. Isso faz do cuidado aqui ser
diferente. (Camila).
Aqui é assim, se eu venho da feira e vejo o carro da doutora na
porta, eu já entro, já falo com ela, com as pessoas, se tiver
sentindo alguma coisa, eu já falo, é bom porque a gente pode fazer
isso. E eles falam, só se eles estiverem muito ocupado, que aí não
pode mesmo. Eu só faço isso aqui porque todo mundo me conhece. Outro
dia eu levei meu filho pra consultar com uma médica neurologista, e
quando chegou a vez dele a moça chamava o nome dele bem alto e eu
tava bem pertinho, mas como ela não conhecia ela gritava. Aqui (ESF)
não precisa chamar assim porque eles me conhecem e sabem quem é meu
filho. Aqui eles (profissionais) conversam comigo, diz o jeito de
fazer as coisas direitinho. Em outro hospital eles nem falam com a
gente, tratam mal as pessoas. É muito diferente daqui. (Elisa).
[...] O PSF ajuda muito porque permite olhar a criança de uma maneira
mais completa, até pela proximidade com a casa e pela convivência da
equipe com a família. Isso faz a diferença. E aí as famílias passam a
nos enxergar como amigos, não só como profissional que só ajuda na
hora da doença. Tanto que muitas pessoas vêm aqui no Posto pra
conversar problemas pessoais com a gente. (Camila).
Eu consigo marcar uma consulta quando um dos meus filhos precisa, mas
quando é problema de doença mesmo tudo fica mais difícil, porque não
tem vaga nos hospitais e a gente fica correndo de um lado pro outro
sem saber o que fazer. As pessoas não querem nem saber, não tem pena
da gente, nem dos filhos da gente. Aqui no posto é diferente. Outro
dia a enfermeira e a médica ficaram comigo aqui até quase de noite
porque a febre dele não baixava, elas ficaram comigo, conversaram
comigo, arranjaram remédio. (Elisabete).
As falas parecem colocar em evidência que o cuidar tem uma intenção que é a de
reparar, a de aliviar, a de satisfazer, a de educar, a de informar. Cuidar tem
a ver com o fazer o que é bom (cuidado diferente). Então existe o cuidar mal?
Cuidar mal (cuidado desigual) não é a negação da ação de cuidar, mas a sua
inadequação(6). Para o autor(6), apesar de haver a preocupação e a ocupação do
cuidado, a ação não é boa e para esclarecer descreve algumas situações: a
primeira é a diferença entre tomar cuidado e prestar cuidado. Tomar cuidado é
no sentido de dedicar uma atenção particular à pessoa em uma situação
particular com o objetivo de promover a sua saúde (cuidado diferente). Prestar
cuidados parece limitar-se aos atos que requerem um saber fazer baseado em
conhecimentos e técnicas precisas (cuidado desigual) e tem o sentido de "fazer
o que se sabe fazer para tratar uma doença tendo em vista a sua cura"(6).
Portanto, Vendo o cuidado diferentee Falando do cuidado desigualfoi revelado
como tensões entre os níveis do sistema de saúde - APS e hospital -, por
exemplo. Refletiram que aspectos significativos do sistema de saúde baseados na
equidade ficam à sombra em um funcionamento desigual dos cuidados de saúde à
criança. O cuidado desigual é atribuído também ao momento em que as dimensões
relacionais se afastam das relações de cuidado. Valoriza mais o saber técnico e
as regras institucionais do que as atitudes de escuta e acolhimento no momento
do encontro para a produção do cuidado. O "diálogo e a escuta foi colocada em
segundo plano para dar lugar a um processo centrado nas regras instituídas como
se fosse um fim em si mesmo"(7). Por outro lado, a forma de organização da ESF
favorece a quebra de certas hegemonias na saúde, facilita o processo de
interação entre profissionais e famílias/comunidade gerando horizontalidade nas
relações, o que pode fazer com que as mães sintam-se mais a vontade para falar
dos seus problemas e das suas dificuldades.
A terceira subcategoria Comentando sobre o Cuidado "Invisível" manifesta-se em
pequenas atitudes, gestos, atos do cotidiano, em especial, realizados pela
enfermeira:
Eu acho que o cuidado não precisa ser uma grande coisa, tem essas
coisas pequenas que tem um valor imenso. Aqui no Posto na nossa
relação com as mães isso acontece diariamente. E são coisas que nós
fazemos que não é quantificado, não tem como eu registrar na
produtividade e fica assim como um cuidado invisível. Quando eu vou
fazer a produtividade, aquilo que realmente a enfermagem faz de
cuidado, não tem como registrar e a gente tem a sensação de que não
fizemos nada apesar do dia ter passado e a gente não ter parado.
Então eu acho que é um sistema que não serve para o cuidado da
enfermagem. Não sei se a preocupação é com o cuidado ou se o que eles
querem é a produtividade, é o número. (Carla).
O deslocamento das atividades da Saúde da Família para a produção de
procedimentos entre outras limitações impõe um agir isolado dos profissionais.
No que tange às práticas, esse sistema de registro, exclui o cuidado como
prática do enfermeiro nas atividades diárias de atenção à criança e é
caracterizado como "cuidado invisível". As ações são realizadas, mas dado o
caráter subjetivo do cuidado, o enfermeiro não encontra formas de registro no
sistema disponível nas Unidades de Saúde da Família.
O Sistema de Informação da Atenção Básica ' SIAB(8) foi desenvolvido como
instrumento de gestão da saúde pelo Ministério da Saúde e tem sofrido algumas
alterações sem, no entanto, contemplar as práticas de enfermagem em saúde
coletiva. Por meio do SIAB são obtidas informações sobre cadastro das famílias,
condições de moradia e saneamento, situação de saúde, produção e composição das
equipes de saúde. O SIAB é para o Ministério da Saúde o principal instrumento
de monitoramento das ações com o objetivo de fornecer informações que subsidiem
a tomada de decisão pelos gestores e a instrumentalização pelas instâncias de
Controle Social, tornando públicos os dados para uso de todos os atores
envolvidos na consolidação do SUS. São informações epidemiológicas que visam
também o financiamento da saúde no município. Não há no município de São Luís '
MA, um sistema de registro de práticas de enfermagem na APS. No SIAB são
registrados procedimentos quantificáveis. No entanto, definir e registrar a
prática de enfermagem é uma necessidade ' deveria ser uma prioridade -,
utilizando uma linguagem especifica da profissão. Vale ressaltar que desde a
década de noventa existe uma mobilização mundial para a sistematização da
linguagem específica da enfermagem. No Brasil, a Associação Brasileira de
Enfermagem (ABEn) tem se articulado e envidado esforços para a consolidação da
Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem ' CIPE. Em 1996 foi
publicada a versão alfa da CIPE seguida em 1999 pela publicação da versão beta
e em 2002 pela versão beta 2. Os objetivos da CIPE, entre outros, é identificar
um vocabulário especial e desenvolver um sistema de classificação dos
componentes da prática de enfermagem de modo a sistematizar uma linguagem
específica que descreva essa prática(9). Além da CIPE, a ABEn desenvolveu a
Classificação Internacional das Práticas de Enfermagem em Saúde Coletiva
(CIPESC) com a finalidade de revelar a dimensão, diversidade e amplitude das
práticas de enfermagem no contexto do SUS, visando um sistema de classificação
da prática de enfermagem em saúde coletiva. A CIPESC, entre outras questões,
tem como proposta dar visibilidade às ações de enfermagem no âmbito nacional e
internacional.
A quarta subcategoria, Caracterizando o cuidado integralsignifica tomar a
criança como totalidade envolvendo referenciais com os quais os profissionais
se confrontam subsidiando alternativas e encaminhamentos para a saúde infantil.
Os esforços são dirigidos para o agir profissional sustentado no vínculo e na
aproximação da equipe com a família, com a criança e com a comunidade, capazes
de assegurar o desenvolvimento de responsabilidades e de modificar o processo e
as relações de trabalho. Os diferentes modos de cuidar e de cuidado acompanham
o movimento no qual o cuidado integral é entendido pelos participantes da
investigação a partir de quatro dimensões: como a abertura dos profissionais
para atender outras necessidades que não as diretamente ligadas à doença; o
cuidado integral como direito da criança; o cuidado como dimensão humana e o
cuidado integral como acesso a todos os níveis da assistência:
[...] cuidado integral são os muitos olhares e olhares amplos, pois a
integralidade vai além da queixa clínica que a criança apresenta.
Esse momento de encontro com a criança e a mãe ou a família por
motivo de doença deve ser enriquecido por esse olhar mais amplo, um
momento para olhar a criança como um todo, independente da queixa.
(Alice).
[...] integralidade é a visão o todo. Nesse caso a criança é vista
por inteiro, como um sujeito de direitos. Uma criança que chega no
serviço para um atendimento específico, precisa ser observada em
todos os outros aspectos, por exemplo, veio consultar por uma otite,
mas é possível avaliar a vacina, o crescimento, o desenvolvimento,
porque não aproveitar essas oportunidades? São estas oportunidades
perdidas que precisam ser recuperadas para o atendimento integral. É
a oportunidade para que os diversos aspectos sejam vistos: promoção,
proteção, assistência e sempre com vistas a continuidade do cuidado.
Integralidade é o direito da criança a um fluxo que permita acesso
aos serviços de média e alta complexidade. Integralidade é essa rede
articulada para responder às necessidades da criança e de suas
famílias. É a integração das ações básicas com as de média e alta
complexidade. (Bianca).
[...] na saúde da criança a integralidade exige um conceito mais
abrangente, porque envolve a criança, o seu cuidador e sua família.
No cuidado à criança o profissional sempre deve ter a referência do
cuidador e da família dentro do seu contexto social. (Carmen).
[...] integralidade tem a ver com resolutividade do serviço. A
resolutividade tem a ver com a questão do ser humano. Porque muitas
vezes a gente consegue resolver alguma situação de doença, mas não
tem aquele estalo de olhar o outro como ser humano. Isso vai muito
mais além, de olhar e enxergar o todo, de olhar o outro como ser
humano. (Camila).
[...] Integralidade é ouvir, é assistir, é acompanhar, é compreender
o outro em todos os aspectos e dimensões. Então uma das coisas
importantes para a integralidade são as parcerias com a equipe, com
os agentes, com as famílias, com a escola e com a rede. (Cecília).
A categoriaCaracterizando o cuidado integralpede por uma ação política de
sujeitos individuais e coletivos numa combinação de saberes e técnicas para
atender as necessidades de crescimento e desenvolvimento da criança e não
somente a doença; por uma articulação entre prevenção e assistência; por
disponibilizar tecnologias de cuidado que envolva o atendimento individual, a
família e a educação em saúde por meio de processos dinâmicos e participativos,
atendimento domiciliar, visita domiciliar, ações de vigilância à saúde assim
como todas aquelas que garantam o acolhimento.
O cuidado integral implica atender às necessidades da criança por meio de um
sistema de cuidados organizados hierarquicamente, compreendido aqui, na
dimensão do direito. O acesso a níveis de maior complexidade no sistema é uma
dimensão importante da integralidade não sendo lícito negar os benefícios da
tecnologia em saúde hoje disponíveis. Além do caráter completo do cuidado, a
integralidade envolve a continuidade do cuidado(10). Estas questões dizem
respeito à capacidade de resolutividade não somente do PSF, mas do sistema de
saúde como um todo.
Caracterizando o cuidado integralpode ser percebido nos modos de cuidar da
criança por onde circulam afetos e emoções. Esse envolvimento e preocupação com
o outro permitem conceber práticas de cuidado integral à criança. Assim a
integralidade do cuidado à criança ganha cada vez mais centralidade nos modos e
atitudes de cuidado pelos profissionais de saúde em conexões desencadeadas pela
mobilização de atitudes subjetivas e nas escolhas de gestores e profissionais.
Mas, não existe um sentido comum sobre o que seria o melhor para as diversas
maneiras de agir. Da mesma forma que não se pode esperar da totalidade de
profissionais a mesma dimensão do cuidado. Mas podemos pensar que sentido tem o
cuidado para cada um de nós, interrogando os valores aos quais ele se refere,
pois embora a humanidade sinta as mesmas necessidades, a maneira de satisfazê-
las depende de inúmeros valores e a percepção do cuidado a cerca de si mesmo,
influi na capacidade de desempenhar a função do cuidar. Assim a subcategoria
Atribuindo Valores ao Cuidado, dá a ideia de fazer escolhas e nos remete a
valorização da condição humana; qualifica o cuidar e amplia o olhar do
profissional. Nesse olhar as enfermeiras sentem necessidade de apoiar seus
conhecimentos em outras disciplinas e com outros profissionais:
Sinto necessidade de ter aqui na unidade uma assistente social, um
psicólogo, um fisioterapeuta, porque o meu conhecimento de enfermeira
é pequeno se comparado com os problemas que as famílias trazem para
cá. Eu acho que um trabalho com outros profissionais e com outros
conhecimentos é fundamental (Camila).
Cuidar da criança é ser pedagogo, psicólogo, professor, porque
trabalhamos com a criança, com a mãe, com a família de uma maneira
maior, ensinando. E para eu ensinar eu preciso aprender mais.
Aprender mais para cuidar melhor (Célia).
Atribuindo Valores ao Cuidadoé mostrar-se sensível com o problema do outro, com
o sofrimento do outro. É emocionar-se:
O cuidado, só a palavra cuidado, por si só, significa sensibilidade.
Eu preciso da sensibilidade para me incomodar com o sofrimento do
outro. E misturar cuidado e criança, parece uma mistura perfeita que
só acontece com sensibilidade. (Cecília).
Na pediatria cuidando das crianças é emoção permanente, sorrimos,
choramos, vibramos, ficamos tristes, é tudo isso. [...] é emoção o
tempo todo. (Darci).
Atribuindo Valores ao Cuidadocaracteriza-se pela capacidade do profissional de
comunicar-se com o outro (criança/mãe/família) sem a atitude autoritária que
muitas vezes ronda as relações de cuidar em saúde:
A criança surpreende [...]. Outro dia [...] atendendo a uma criança
[...] estava explicando para a mãe como fazer a limpeza do couro
cabeludo da criança (ele estava com escabiose). Ele (a criança) vira
e diz assim: tia porque atua não fala comigo? Sou eu que lavo minha
cabeça (foi mais ou menos assim) [...] eu desmontei [...] desde esse
dia eu sempre falo para a criança [...] para a mãe ouvir. O foco
mudou porque essa criança me advertiu. Eu procuro falar com calma,
com palavras que ela possa compreender, brinco, mostro como fazer,
peço para ela fazer. (Claudia).
A comunicação é a nossa maior ferramenta. Falar para esclarecer e não
para complicar. Para orientar e não para assustar a mãe [...] falar
com a mãe e a criança, porque posso falar usando a palavra, mas falo
também com um afago, com um carinho, com o olhar. (Darci).
Somos seres de comunicação e, na saúde, não podemos pensar agir sem o processo
de comunicação: "para ajudar", "para apoiar", "para esclarecer". É "ferramenta"
para incorporar novos modos e novos comportamentos para cuidar e para o cuidado
porque o cuidado não se materializa sem a humanização(11). Nessa direção o
cuidado está relacionado ao modo como os profissionais lidam com as crianças,
com as mães e com as famílias exigindo adequada comunicação caracterizada como
aquela que tenta diminuir conflitos para o alcance dos objetivos(12). Essa
condição nem sempre existe nas relações profissionais e institucionais com mães
e crianças:
Eu fico chateada porque o pessoal daqui (da recepção) não fala
direito com a gente. Elas não respondem direito. [...] a gente
termina dizendo umas coisas, brigando não é? Ficando zangada. [...]
os médicos não diz direito as coisas. Meu marido briga comigo porque
ele diz que eu não sei dizer direito o que o menino tem [...] é
porque eles (médicos) não explicam [...] a gente pergunta, mas eles
(médicos) ficam calados. (Eliana).
A comunicação como valor foi também revelado nas queixas de profissionais e
mães:
Os atendimentos de maneira geral são curtos porque tem a coisa da
demanda e da produtividade. Apressamos o passo para atender todo
mundo e isso compromete a comunicação e a qualidade. (Cecília).
Terminamos atendendo um número maior de crianças e consequentemente o
tempo de cada atendimento é muito curto. Se por necessidade da mãe ou
da criança ela fica mais tempo na consulta vamos ter que correr com
as seguintes. (Denise).
[...] foi tão rápido que ele consultou que eu fiquei assim sem
entender [...] não entendia nada. Sair de lá sem entender nada.
(Elisa).
A pressa no atendimento se impõe como dificuldade para o cuidado à criança e
para que o processo comunicativo se efetive. Os momentos de encontros das mães
com os profissionais não podem se configurar como um encontro para buscar
sintomas e queixas. Se assim o for, o cuidado nem sempre é eficaz, pois impede
que a mãe se sinta à vontade para questionar e esclarecer dúvidas e
necessidades. A comunicação, como valor, é percebida tanto por quem cuida como
por quem é cuidado. É condição que exige repensar e reagir a favor da
reintegração da ação do pensar na saúde. Sob essa dimensão, as experiências
cotidianas constituem sua principal fonte de revalorização. A efetividade de
comunicação relaciona-se com a linguagem corporal que se expressa pela
proximidade, postura e contato visual com o outro(12), envolve interação,
processos sociais, psicológicos, pessoais e da própria organização do trabalho.
Utilizar de forma inadequada a comunicação pode ser caracterizado como
descuidado por fazer com que o modo de cuidar seja impessoal e
descompromissado; reduz o universo do cuidado e dos saberes para um modo de
cuidar estruturado, rígido, empobrecedor do encontro, onde crianças e mães são
"não-sujeitos", simples cumpridores de determinações e rituais da saúde
defendidos e operados pelos profissionais.
No cuidado à criança, o processo comunicativo deve estar atento aos valores,
opiniões e crenças da família, respeitando e considerando as diferenças. Desse
modo a cultura como valor do cuidado emergiu das falas em uma permanente
relação com o cuidado à criança.
Trabalhar com a criança é provocar o encontro. Não só o encontro de
pessoas, mas de culturas, de crenças e de modos de vida. (Betânia).
[...] cuidar pede para a compreensão do modo de vida das pessoas, das
famílias, a cultura dessas famílias e as nossas também. Porque o mais
difícil é esse choque entre a minha e a das famílias. E com a
criança, com os cuidados a criança, principalmente dos recém-
nascidos, temos muito para contar. Todos nós temos muitos relatos, o
que significa que isso é muito presente. [...] Não sei se sabemos
lidar bem com esses aspectos, tentamos. [...] as questões
alimentares, os mingaus, o leite fraco, o peito que secou, o cuidado
com o umbigo. São alguns exemplos que estão relacionados com a
cultura, com os valores que as mães atribuem e que aprenderam na vida
em família. (Claudia).
Nós fazemos um exercício para trazer para dentro da unidade essas
experiências culturais da comunidade [...] essas experiências que as
mães vivenciam lá fora. Conhecer as parteiras, as benzedeiras, as
rezadeiras. [...] nos auxiliem no cuidado à criança. (Cecília).
Madeleine Leinninger, baseada em conhecimentos da antropologia, desenvolveu a
Teoria Transcultural(13) cujo principal conceito é a cultura. Ao cuidar e
observar crianças com transtornos mentais, a teórica, comparou comportamentos,
estudou e determinou a importância e a influência da dimensão cultural no
cuidado de enfermagem e em saúde. A partir daí, os seus escritos dirigiu-se a
fundamentar o cuidado de enfermagem nos aspectos antropológicos. A cultura é
constituída por valores, crenças, normas e práticas formadas por membros de um
mesmo grupo social(14). São valores que passam a guiar pensamentos e ações e
são transmitidos de uma geração a outra. As crenças e práticas relacionadas à
saúde são características da cultura(15), determinam os modos de cuidar e de
viver. São aspectos que desafiam o agir dos profissionais, que buscam meios e
modos de cuidar e de lidar com essa dimensão no cotidiano do cuidado em saúde
da criança. Os aspectos culturais "interfere no modo como o indivíduo se coloca
no mundo e incluem o modo como ele promove a sua saúde e como busca caminho
para a cura"(16).
As falas, acima apresentadas, demonstram que a cultura reflete nos modos da
criança ser cuidada na família e na comunidade e, que, no cuidado à criança
haverá sempre as marcas do saber cultural e do saber técnico-científico. As
enfermeiras sujeitos de pesquisa relataram que aliam conhecimentos técnicos aos
aspectos relacionais que o cuidado exige. Destacam as dimensões psicológicas,
afetivas e sociais para valorizar a condição humana. Especificam como valores
para o cuidar o respeito pelo outro e pela dignidade humana. Para elas esses
valores são desenvolvidos no fazer cotidiano e é preciso ser exercitado.
CONCLUSÃO
Qualificando o Cuidado à Criança na Atenção Primária de Saúde,não é uma
classificação linear do cuidado; apresentou-se como processo mutável e possível
de ser reconstruído a cada encontro. Acreditamos que a saúde como ausência de
doença é uma ideia superada, no entanto, a atenção à saúde nos seus aspectos
subjetivos pressupõe transformações e requer, no cotidiano dos profissionais,
sobretudo das equipes de saúde, uma postura ética, política e moral de
reconhecimento da diferença da diversidade das demandas apresentadas pela
população infantil, assim como as respostas oferecidas para solucioná-las.
O cuidado diferente, nesta investigação, é aquele em que a aproximação com a
família se efetiva e onde as mães e as crianças são conhecidas pelo nome. O
cuidado diferente é o cuidado amoroso, sensível, humano, solidário e
terapêutico, que busca conciliar as várias dimensões da vida e do viver,
aliando aos aspectos biológicos os sociais, culturais e psicológicos. A visita
domiciliar pode se configurar como o que há de mais efetivo na relação de
iguais. Na casa da família as relações são horizontalizadas, as mães se sentem
importantes e seus esforços são reconhecidos pelos profissionais no cuidado
diário aos seus filhos. Na casa da família, os profissionais percebem que
apesar de todas as adversidades, como desemprego, precárias condições de
moradia e saneamento, as mães se esforçam no cuidado preventivo e de promoção
da saúde da criança.
O cuidado desigual parece ser um descuidado. No cuidado desigual as mães e as
crianças são desconhecidas dos profissionais, tidas "como mais uma" e são
responsabilizadas pela doença dos filhos. Vendo o cuidado diferente e Falando
do Cuidado Desigual reforça a necessidade da clínica centrada nos sujeitos e em
famílias reais onde as ações podem ser desenvolvidas pela utilização das
tecnologias leves e na dimensão relacional. Compreendemos que uma ação
realizada numa perspectiva médica técnico-científica não seja autenticamente de
cuidado. É útil para a cura ou para reduzir os efeitos negativos da doença. Mas
falta cuidar do agir e da atitude. É nesse contexto que se insere as práticas e
os saberes dos profissionais e que precisam ser desafiados. Desafiados por um
conhecimento que ultrapasse a fragmentação, pela perspectiva de saberes
integradores, mutantes, capazes de combater as certezas e as racionalidades. O
cuidado enquanto ato, meio e/ou produto de práticas em situação de saúde ou de
doença é tarefa de todos, ou pelo menos deveria ser.
O cuidado não significa um procedimento que se encerra nele mesmo; o cuidado é
o modo de estar em relação com o outro; significa valorizar o outro
(alteridade); não é somente um encontro marcado pelo mecanismo de uma
intervenção; o cuidado não aborda a doença, mas o individuo/sujeito portador de
necessidades; o cuidado não se reduz à dimensão biológica ' estende-se às
dimensões subjetivas e sociais das crianças e suas famílias; no cuidado não há
alienação ' há interesse, escuta, olhares, toques, tato, comunicação, não há
instrumentos padronizados ' há incertezas e surpresas. Os diferentes modos de
cuidar e de cuidado dão os contornos da atenção à criança na Atenção Primária
de Saúde, onde profissionais e mães buscam novos modos de fazer: pelo cuidado
diferente, pelo cuidado desigual, pelo cuidado integral e pelo movimento que
acompanha as relações e os valores do cuidado, do cuidar e do ser humano.
Afinal o cuidado deve mobilizar afetos, emoções, atenção.
Qualificando o cuidado à criança na Atenção Primária de Saúde é reconhecer que
cuidar tem sentidos diferentes que se fundam no valor da vida e na dignidade
humana. Compreendemos que o valor ao cuidado se constrói nos esforços, na
colaboração, na comunicação, na complementaridade e no fazer/agir de
profissionais, de famílias, de serviços e gestores. Qualificando o cuidado à
criança é cuidado singular, é encontro que valoriza a vida e que respeita o
outro nas suas diferenças. É atenção e responsabilidade pelo outro nas suas
particularidades.