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BrBRCVHe0034-71672013000200021

BrBRCVHe0034-71672013000200021

National varietyBr
Country of publicationBR
SchoolLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN0034-7167
Year2013
Issue0002
Article number00021

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Considerações éticas sobre pesquisas com mulheres em situação de violência

INTRODUÇÃO A violência vem sendo compreendida como um fenômeno mundial de causalidade múltipla e com consequências previstas para quem perpetra, é vítima ou presencia o ato de agressão. Por ser considerado um fenômeno sócio-histórico presente nas diversas faces dos relacionamentos humanos, suas definições guardam uma íntima relação com os valores, a cultura e as formas da sociedade em perceber e tolerar estes atos(1-3). Suas noções baseiam-se na tradução da força física ou de poder em atitudes que possam resultar em danos biopsicossociais, bem como de ordem moral ou econômica, contra um ou mais indivíduos(4).

Tratando-se de um problema multifacetado e com diversas tipificações, não um perfil definido para as vítimas de violências(1). Fatores como desigualdades e privações de acesso aos serviços básicos, como educação, saúde e emprego também estão fortemente associados à maior prevalência do evento, conforme proposto pela Organização Mundial da Saúde em seu modelo ecológico para compreender as violências(3). A ocorrência deste fenômeno também está geralmente associada a adultos-jovens solteiros e de cor preta ou parda, principalmente nos casos de agressões físicas que ocorrem em ambientes urbanos. Quanto ao sexo das vítimas, tem se observado um predomínio masculino em quase a totalidade dos cenários da violência, exceto no ambiente doméstico onde as mulheres e as crianças são especialmente afetadas(5-6).

Nos casos em que a agressão é praticada por uma pessoa com vínculo afetivo ou parental, a violência é denominada por alguns autores como íntima ou interpessoal. O termo violência familiar também é utilizado para abarcar este tipo de conflito. Estima-se que até 50% das mulheres tenham sido vitimadas por alguma forma de agressão ao menos uma vez na vida, durante relações íntimas conflituosas, sendo as formas psicológicas e físicas as mais comuns. Outra característica marcante além da elevada ocorrência de violência contra a mulher seria a freqüente sobreposição das diferentes formas de agressão, envolvendo atitudes da ordem física, psicológica e sexual, conferindo ao evento um caráter preocupante e tornando-o um problema de saúde pública(1).

Devido à complexa teia de causalidade envolvida no fenômeno, bem como os possíveis desfechos negativos relacionados à saúde da mulher(7-9), pesquisadores do mundo inteiro vêm investindo seus esforços na tentativa de entender a dinâmica e a existência de alguns padrões na ocorrência do problema.

Um dos desafios existentes nestas linhas de investigação diz respeito à fragilidade das vítimas, e a necessidade de maior cuidado no sentido de preservar sua integridade e dignidade, trazendo uma reflexão sobre a bioética presente nestes estudos.

Considerando a compreensão de bioética(10) como interseção entre os saberes biomédicos, socioambientais e a cultura humanística, este ensaio tem por objetivo refletir sobre os princípios ético-metodológicos envolvidos em pesquisas com mulheres em situação de violência. Espera-se que os aspectos discutidos neste estudo possam contribuir para a adoção de atitudes positivas durante a realização de pesquisas sobre este tema e com este grupo vulnerável, mediadas pelos princípios propostos pela ética em pesquisa e servindo de suporte para futuras investigações nesta área temática.

REFLETINDO SOBRE OS PRINCÍPIOS DA NÃO MALEFICÊNCIA E BENEFICÊNCIA NO ÂMBITO DAS PESQUISAS SOBRE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER Com vistas a proteger os sujeitos de pesquisa de possíveis danos previstos, faz-se necessário refletir sobre o princípio de não maleficência e seus desdobramentos sobre o ato da pesquisa(11,12). As mulheres que vivenciam situações de violência apresentam diversas fragilidades e vulnerabilidades, tendo em vista as consequências decorrentes dos abusos sofridos, que também acabam por afetar os demais atores sociais que participam de seu núcleo familiar. A violência não deixa apenas marcas físicas, mas acabam por levar à perda da identidade da vítima, que vai entrando em processo de invisibilidade, com gradual perda de sua autoestima e determinação. Vale ressaltar aqui o papel de destaque que a mulher exerce na família, principalmente quando existem filhos envolvidos.

Em geral, a atmosfera que se cria durante a coleta de dados parece influenciar diretamente no equilíbrio emocional dos participantes e, por sua vez, na qualidade dos dados obtidos para o estudo. Essa premissa parece ainda mais pertinente quando o foco da investigação envolve questões para além de questões numéricas ou materiais. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) (13), além de reforçar um compromisso ético dos pesquisadores, pode favorecer o início da formação de vínculo entre o pesquisador e o sujeito. A exposição clara dos objetivos da pesquisa, das suas possíveis contribuições e, obviamente, do anonimato e da liberdade de participação no estudo auxiliam no empoderamento dos indivíduos com informações que mediarão à decisão em participar ou não da pesquisa. Todavia, Santos e Emmerich(14) demonstraram que alguns grupos têm optado por participar de trabalhos científicos muitas vezes pelo depósito de confiança no pesquisador, quando este acumula a função de seu profissional de saúde de referência ou até por ser colega de trabalho, sem muitas vezes mostrar interesse pelo conteúdo dos respectivos protocolos de pesquisa.

Segundo as recomendações da Resolução 196/96(13) do Conselho Nacional de Saúde, que dispõe sobre as diretrizes e normas de pesquisas envolvendo seres humanos, estes Termos precisam ser elaborados com uma linguagem acessível e de forma que garanta a autonomia dos possíveis sujeitos participantes. Acredita-se que o simples ato de entrega destes formulários não garante o entendimento dos sujeitos escolhidos para participar, principalmente se tratando de grupos com uma vulnerabilidade prevista, como no caso de mulheres em situação de violência. Talvez para o entrevistado exista uma vontade de conversar sobre o tema, expor seu sofrimento, às vezes na esperança de conseguir algum tipo de ajuda ou conforto. Ou, ao contrário, o receio em falar sobre o problema e a perspectiva de uma possível piora na sua vitimização, possa interferir no aceite. Nestes casos em especial, seria oportuna uma discussão mais aberta destes Termos, visando dirimir possíveis dúvidas relacionadas ao documento, bem como os reais benefícios que podem ser esperados com a participação na pesquisa.

Esta é uma dúvida que deveria ser suscitada nos pesquisadores antes da entrada em campo e escolha de seus entrevistados: "por que os sujeitos aceitam participar dos estudos?". Quando se abordam temas da vida cotidiana e íntima, como no caso da violência entre os casais, não é incomum que as pessoas tenham resistências ou receio quanto à sua participação. Por mais que os trabalhos visem contribuições para o melhor entendimento do fenômeno estudado, dificilmente estas melhorias serão sentidas especificamente pela população do estudo. Mais ainda, os benefícios geralmente são de longo prazo, aos sujeitos participantes interessam que os estudos também pudessem oferecer algum tipo de suporte imediato aos participantes. O esclarecimento destas possíveis dúvidas durante a entrega, leitura e assinatura do TCLE pode se apresentar como um cuidado na manutenção da ética ao longo da investigação destes assuntos mais íntimos e que podem impactar emocionalmente os entrevistados.

O evento em questão possui amplo arcabouço legal que trata de sua notificação compulsória e que determina o encaminhamento à rede para o desenvolvimento de medidas protetivas. O desafio nestes casos seria lidar com a obrigação da notificação e garantia por parte do pesquisador em manter o sigilo das informações e da identidade dos sujeitos pesquisados(15). Uma recomendação que poderia minimizar este dilema seria o desenvolvimento de protocolos de pesquisas compostos também por estratégias que visem à beneficência imediata para estes grupos. Orientações sobre a violência e possibilidades de enfrentamento, bem como a criação de rede de suporte social para atendimento dos casos positivos, são ações sugeridas para minimizar os impactos dos abusos recém-identificados.

A organização de ações com os grupos participantes, antes e após a realização da pesquisa, também parece constituir uma boa prática, por reforçar o princípio da beneficência. Santos e Emmerich(14) dispõem que a educação e a pesquisa parecem ser indissociáveis e que esta relação possibilitaria a agregação de novos conhecimentos tanto para o autor do trabalho como para os sujeitos participantes. O esperado seria que ambos pudessem se beneficiar com os resultados do trabalho, cada um a seu tempo e da sua forma. Os voluntários passariam a ser incluídos em todo o processo da busca por novos conhecimentos.

Seriam participantes mais ativos em todas as etapas, desde aquelas destinadas à preparação - antes da coleta de dados, até depois de sua conclusão, beneficiando-se com os novos saberes incorporados pelo estudo.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A PESQUISA SOBRE VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER SOB A ÓTICA DOS PRINCÍPIOS DE JUSTIÇA E EQUIDADE Os princípios da justiça e equidade também deveriam fazer parte das preocupações do investigador durante todas as fases da pesquisa. Eles se referem ao equilíbrio entre a relevância social do estudo e seus desdobramentos para os sujeitos participantes, bem como a minimização de danos decorrentes da pesquisa para estes indivíduos(12,13). A Organização Mundial de Saúde (OMS)(15) recomenda ainda que os estudos que envolvam mulheres em situação de violência deveriam ser especialmente elaborados a partir destes princípios e seus resultados corretamente interpretados a fim que possam orientar a formulação de políticas de intervenção e redução do problema. Reforça também que a metodologia utilizada deveria idealmente seguir as experiências atuais com vistas à produção de dados que possam minimizar a subnotificação do evento.

A garantia de privacidade por meio de ambientes livres de ruídos externos parece uma estratégia quase imperativa neste tipo de pesquisa. Além de permitir uma fala mais aberta e honesta pelas participantes, auxilia a proteger o anonimato e a segurança das mulheres voluntárias e dos entrevistadores.

Portanto, dependendo do ambiente e do tipo de violência sofrida pela mulher, o pesquisador e as informantes também podem se encontrar em situação de vulnerabilidade no momento da coleta de dados. Medidas protetivas que atentem para estas circunstâncias precisam estar claramente descritas no protocolo de pesquisa(15).

A seleção dos entrevistadores também é uma etapa importante na construção do projeto, que pode impactar de forma definitiva a qualidade dos dados obtidos.

Em muitos estudos o profissional de saúde - envolvido na elaboração do projeto - acaba por ser o principal eleito para a coleta de dados. Todavia, as peculiaridades do objeto e do cenário de estudo precisam ser levadas em consideração nesta escolha. Alguns destes profissionais estão diretamente envolvidos com a comunidade ao entorno, principalmente quando se trata de estudos envolvendo a Atenção Primária à Saúde e a Estratégia de Saúde da Família.(16) Existem alguns questionamentos quanto à participação de membros da equipe técnica e de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) na aplicação de entrevistas relacionadas às questões de vida íntima, principalmente aquelas que envolvem mulheres em situação de violências. De um lado, a formação de vínculo entre as equipes e a clientela pode favorecer questionamentos de difícil abordagem(17), por outro, são personagens que fazem parte do cotidiano das entrevistadas e possíveis vítimas das violências, elevando os riscos de conflitos éticos em nível comunitário. Além disso, existe sempre a possibilidade de exposição por parte destes profissionais, caso os agressores tomem conhecimento da pesquisa ou da participação de suas companheiras. Para os Agentes que são membros da própria comunidade e servem como um elo entre as unidades de saúde e a população adscrita, estas questões podem ser ainda mais preocupantes - na verdade se constituem como um desafio para algumas investigações no âmbito da ESF.

Outro aspecto que deve ser levado em consideração seria o sexo dos entrevistadores, que as noções tradicionais sobre o papel que mulheres e homens devem exercer nos espaços sociais estão entre as principais responsáveis pela ocorrência de violência entre o casal (3,18). Por se tratar de uma temática cujo cerne da discussão envolve as relações de poder e hierarquia entre os sexos, ou seja, o debate sobre gênero(19) parece mais adequado que as entrevistas sejam realizadas preferencialmente por mulheres e para as mulheres Por estes motivos, não é difícil imaginar que escolha por entrevistadores do sexo masculino pode trazer algum constrangimento ou até distorções nas respostas fornecidas pelas voluntárias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Para Bourdier(20), a essência da sociedade traduz uma necessidade de ruptura e separação dos opostos, como o próprio autor exemplifica: o alto e o baixo, o seco e o úmido, o homem e a mulher. Por outro lado, e por motivos óbvios relacionados à autoria deste estudo, não se pretende marcar a discussão exclusiva sob a ótica feminina. Acredita-se que a visão masculina sobre o assunto também possa contribuir com a outra face do debate, gerando subsídios e intensificando a compreensão do fenômeno e a formulação de políticas promotoras da saúde.

O contexto de vínculos complexos envolvidos na ocorrência das violências parece apontar para uma necessidade de constante reflexão sobre a realização de pesquisas nesta área. A proteção da autonomia, privacidade e confidencialidade, bem como o referenciamento seguro dos casos revelados durante a coleta de dados, são princípios e atitudes que precisam ser destacados durante todas as fases dos desenhos de estudo. Exercitar os princípios da beneficência, não maleficência, justiça e equidade parece ser o caminho premente para a adoção de medidas protetivas para o pesquisador e seus voluntários no momento de construção e prática dos protocolos de pesquisas que envolvem mulheres em situação de violência.

Aponta-se como um desdobramento das reflexões sugeridas neste ensaio a realização de estudos que contemplem a aplicação destes princípios éticos durante a elaboração e desenvolvimento de estudos sobre violência. Sugere-se, ainda, a reflexão sobre o quanto estas discussões seriam de interesse, quando comparadas a estudos envolvendo grandes amostras e ou análises estatísticas mais robustas. Principalmente quando se reflete sobre a constante demanda por publicações e as exigências relacionadas a manter um conceito elevado no ambiente acadêmico e o conseqüente reconhecimento entre os pares. O tempo atual parece curto, tudo acontece rápido, é urgente. De uma forma geral, os cuidados éticos não têm sido valorizados na sociedade atual, perdendo espaço para questões mais imediatistas e que possam trazer visibilidade e sucesso rápidos.

Não dedicar o tempo necessário a estas questões, que podem trazer entraves para a realização de investigações relacionadas à ocorrência de violência - neste caso, especialmente aquela direcionada à mulher - pode significar um retrocesso. Dar valor à ética na pesquisa pode ser um manifesto de vanguarda, mais uma contribuição inestimável da pesquisa para a sociedade atual e futura.


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