Considerações éticas sobre pesquisas com mulheres em situação de violência
INTRODUÇÃO
A violência vem sendo compreendida como um fenômeno mundial de causalidade
múltipla e com consequências previstas para quem perpetra, é vítima ou
presencia o ato de agressão. Por ser considerado um fenômeno sócio-histórico
presente nas diversas faces dos relacionamentos humanos, suas definições
guardam uma íntima relação com os valores, a cultura e as formas da sociedade
em perceber e tolerar estes atos(1-3). Suas noções baseiam-se na tradução da
força física ou de poder em atitudes que possam resultar em danos
biopsicossociais, bem como de ordem moral ou econômica, contra um ou mais
indivíduos(4).
Tratando-se de um problema multifacetado e com diversas tipificações, não há um
perfil definido para as vítimas de violências(1). Fatores como desigualdades e
privações de acesso aos serviços básicos, como educação, saúde e emprego também
estão fortemente associados à maior prevalência do evento, conforme proposto
pela Organização Mundial da Saúde em seu modelo ecológico para compreender as
violências(3). A ocorrência deste fenômeno também está geralmente associada a
adultos-jovens solteiros e de cor preta ou parda, principalmente nos casos de
agressões físicas que ocorrem em ambientes urbanos. Quanto ao sexo das vítimas,
tem se observado um predomínio masculino em quase a totalidade dos cenários da
violência, exceto no ambiente doméstico onde as mulheres e as crianças são
especialmente afetadas(5-6).
Nos casos em que a agressão é praticada por uma pessoa com vínculo afetivo ou
parental, a violência é denominada por alguns autores como íntima ou
interpessoal. O termo violência familiar também é utilizado para abarcar este
tipo de conflito. Estima-se que até 50% das mulheres tenham sido vitimadas por
alguma forma de agressão ao menos uma vez na vida, durante relações íntimas
conflituosas, sendo as formas psicológicas e físicas as mais comuns. Outra
característica marcante além da elevada ocorrência de violência contra a mulher
seria a freqüente sobreposição das diferentes formas de agressão, envolvendo
atitudes da ordem física, psicológica e sexual, conferindo ao evento um caráter
preocupante e tornando-o um problema de saúde pública(1).
Devido à complexa teia de causalidade envolvida no fenômeno, bem como os
possíveis desfechos negativos relacionados à saúde da mulher(7-9),
pesquisadores do mundo inteiro vêm investindo seus esforços na tentativa de
entender a dinâmica e a existência de alguns padrões na ocorrência do problema.
Um dos desafios existentes nestas linhas de investigação diz respeito à
fragilidade das vítimas, e a necessidade de maior cuidado no sentido de
preservar sua integridade e dignidade, trazendo uma reflexão sobre a bioética
presente nestes estudos.
Considerando a compreensão de bioética(10) como interseção entre os saberes
biomédicos, socioambientais e a cultura humanística, este ensaio tem por
objetivo refletir sobre os princípios ético-metodológicos envolvidos em
pesquisas com mulheres em situação de violência. Espera-se que os aspectos
discutidos neste estudo possam contribuir para a adoção de atitudes positivas
durante a realização de pesquisas sobre este tema e com este grupo vulnerável,
mediadas pelos princípios propostos pela ética em pesquisa e servindo de
suporte para futuras investigações nesta área temática.
REFLETINDO SOBRE OS PRINCÍPIOS DA NÃO MALEFICÊNCIA E BENEFICÊNCIA NO ÂMBITO DAS
PESQUISAS SOBRE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
Com vistas a proteger os sujeitos de pesquisa de possíveis danos previstos,
faz-se necessário refletir sobre o princípio de não maleficência e seus
desdobramentos sobre o ato da pesquisa(11,12). As mulheres que vivenciam
situações de violência já apresentam diversas fragilidades e vulnerabilidades,
tendo em vista as consequências decorrentes dos abusos sofridos, que também
acabam por afetar os demais atores sociais que participam de seu núcleo
familiar. A violência não deixa apenas marcas físicas, mas acabam por levar à
perda da identidade da vítima, que vai entrando em processo de invisibilidade,
com gradual perda de sua autoestima e determinação. Vale ressaltar aqui o papel
de destaque que a mulher exerce na família, principalmente quando existem
filhos envolvidos.
Em geral, a atmosfera que se cria durante a coleta de dados parece influenciar
diretamente no equilíbrio emocional dos participantes e, por sua vez, na
qualidade dos dados obtidos para o estudo. Essa premissa parece ainda mais
pertinente quando o foco da investigação envolve questões para além de questões
numéricas ou materiais. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
(13), além de reforçar um compromisso ético dos pesquisadores, pode favorecer o
início da formação de vínculo entre o pesquisador e o sujeito. A exposição
clara dos objetivos da pesquisa, das suas possíveis contribuições e,
obviamente, do anonimato e da liberdade de participação no estudo auxiliam no
empoderamento dos indivíduos com informações que mediarão à decisão em
participar ou não da pesquisa. Todavia, Santos e Emmerich(14) demonstraram que
alguns grupos têm optado por participar de trabalhos científicos muitas vezes
pelo depósito de confiança no pesquisador, quando este acumula a função de seu
profissional de saúde de referência ou até por ser colega de trabalho, sem
muitas vezes mostrar interesse pelo conteúdo dos respectivos protocolos de
pesquisa.
Segundo as recomendações da Resolução 196/96(13) do Conselho Nacional de Saúde,
que dispõe sobre as diretrizes e normas de pesquisas envolvendo seres humanos,
estes Termos precisam ser elaborados com uma linguagem acessível e de forma que
garanta a autonomia dos possíveis sujeitos participantes. Acredita-se que o
simples ato de entrega destes formulários não garante o entendimento dos
sujeitos escolhidos para participar, principalmente se tratando de grupos com
uma vulnerabilidade prevista, como no caso de mulheres em situação de
violência. Talvez para o entrevistado exista uma vontade de conversar sobre o
tema, expor seu sofrimento, às vezes na esperança de conseguir algum tipo de
ajuda ou conforto. Ou, ao contrário, o receio em falar sobre o problema e a
perspectiva de uma possível piora na sua vitimização, possa interferir no
aceite. Nestes casos em especial, seria oportuna uma discussão mais aberta
destes Termos, visando dirimir possíveis dúvidas relacionadas ao documento, bem
como os reais benefícios que podem ser esperados com a participação na
pesquisa.
Esta é uma dúvida que deveria ser suscitada nos pesquisadores antes da entrada
em campo e escolha de seus entrevistados: "por que os sujeitos aceitam
participar dos estudos?". Quando se abordam temas da vida cotidiana e íntima,
como no caso da violência entre os casais, não é incomum que as pessoas tenham
resistências ou receio quanto à sua participação. Por mais que os trabalhos
visem contribuições para o melhor entendimento do fenômeno estudado,
dificilmente estas melhorias serão sentidas especificamente pela população do
estudo. Mais ainda, os benefícios geralmente são de longo prazo, aos sujeitos
participantes interessam que os estudos também pudessem oferecer algum tipo de
suporte imediato aos participantes. O esclarecimento destas possíveis dúvidas
durante a entrega, leitura e assinatura do TCLE pode se apresentar como um
cuidado na manutenção da ética ao longo da investigação destes assuntos mais
íntimos e que podem impactar emocionalmente os entrevistados.
O evento em questão possui amplo arcabouço legal que trata de sua notificação
compulsória e que determina o encaminhamento à rede para o desenvolvimento de
medidas protetivas. O desafio nestes casos seria lidar com a obrigação da
notificação e garantia por parte do pesquisador em manter o sigilo das
informações e da identidade dos sujeitos pesquisados(15). Uma recomendação que
poderia minimizar este dilema seria o desenvolvimento de protocolos de
pesquisas compostos também por estratégias que visem à beneficência imediata
para estes grupos. Orientações sobre a violência e possibilidades de
enfrentamento, bem como a criação de rede de suporte social para atendimento
dos casos positivos, são ações sugeridas para minimizar os impactos dos abusos
recém-identificados.
A organização de ações com os grupos participantes, antes e após a realização
da pesquisa, também parece constituir uma boa prática, por reforçar o princípio
da beneficência. Santos e Emmerich(14) dispõem que a educação e a pesquisa
parecem ser indissociáveis e que esta relação possibilitaria a agregação de
novos conhecimentos tanto para o autor do trabalho como para os sujeitos
participantes. O esperado seria que ambos pudessem se beneficiar com os
resultados do trabalho, cada um a seu tempo e da sua forma. Os voluntários
passariam a ser incluídos em todo o processo da busca por novos conhecimentos.
Seriam participantes mais ativos em todas as etapas, desde aquelas destinadas à
preparação - antes da coleta de dados, até depois de sua conclusão,
beneficiando-se com os novos saberes incorporados pelo estudo.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A PESQUISA SOBRE VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER SOB A ÓTICA DOS
PRINCÍPIOS DE JUSTIÇA E EQUIDADE
Os princípios da justiça e equidade também deveriam fazer parte das
preocupações do investigador durante todas as fases da pesquisa. Eles se
referem ao equilíbrio entre a relevância social do estudo e seus desdobramentos
para os sujeitos participantes, bem como a minimização de danos decorrentes da
pesquisa para estes indivíduos(12,13). A Organização Mundial de Saúde (OMS)(15)
recomenda ainda que os estudos que envolvam mulheres em situação de violência
deveriam ser especialmente elaborados a partir destes princípios e seus
resultados corretamente interpretados a fim que possam orientar a formulação de
políticas de intervenção e redução do problema. Reforça também que a
metodologia utilizada deveria idealmente seguir as experiências atuais com
vistas à produção de dados que possam minimizar a subnotificação do evento.
A garantia de privacidade por meio de ambientes livres de ruídos externos
parece uma estratégia quase imperativa neste tipo de pesquisa. Além de permitir
uma fala mais aberta e honesta pelas participantes, auxilia a proteger o
anonimato e a segurança das mulheres voluntárias e dos entrevistadores.
Portanto, dependendo do ambiente e do tipo de violência sofrida pela mulher, o
pesquisador e as informantes também podem se encontrar em situação de
vulnerabilidade no momento da coleta de dados. Medidas protetivas que atentem
para estas circunstâncias precisam estar claramente descritas no protocolo de
pesquisa(15).
A seleção dos entrevistadores também é uma etapa importante na construção do
projeto, que pode impactar de forma definitiva a qualidade dos dados obtidos.
Em muitos estudos o profissional de saúde - envolvido na elaboração do projeto
- acaba por ser o principal eleito para a coleta de dados. Todavia, as
peculiaridades do objeto e do cenário de estudo precisam ser levadas em
consideração nesta escolha. Alguns destes profissionais estão diretamente
envolvidos com a comunidade ao entorno, principalmente quando se trata de
estudos envolvendo a Atenção Primária à Saúde e a Estratégia de Saúde da
Família.(16) Existem alguns questionamentos quanto à participação de membros da
equipe técnica e de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) na aplicação de
entrevistas relacionadas às questões de vida íntima, principalmente aquelas que
envolvem mulheres em situação de violências. De um lado, a formação de vínculo
entre as equipes e a clientela pode favorecer questionamentos de difícil
abordagem(17), por outro, são personagens que fazem parte do cotidiano das
entrevistadas e possíveis vítimas das violências, elevando os riscos de
conflitos éticos em nível comunitário. Além disso, existe sempre a
possibilidade de exposição por parte destes profissionais, caso os agressores
tomem conhecimento da pesquisa ou da participação de suas companheiras. Para os
Agentes que são membros da própria comunidade e servem como um elo entre as
unidades de saúde e a população adscrita, estas questões podem ser ainda mais
preocupantes - na verdade se constituem como um desafio para algumas
investigações no âmbito da ESF.
Outro aspecto que deve ser levado em consideração seria o sexo dos
entrevistadores, já que as noções tradicionais sobre o papel que mulheres e
homens devem exercer nos espaços sociais estão entre as principais responsáveis
pela ocorrência de violência entre o casal (3,18). Por se tratar de uma
temática cujo cerne da discussão envolve as relações de poder e hierarquia
entre os sexos, ou seja, o debate sobre gênero(19) parece mais adequado que as
entrevistas sejam realizadas preferencialmente por mulheres e para as mulheres
Por estes motivos, não é difícil imaginar que escolha por entrevistadores do
sexo masculino pode trazer algum constrangimento ou até distorções nas
respostas fornecidas pelas voluntárias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para Bourdier(20), a essência da sociedade traduz uma necessidade de ruptura e
separação dos opostos, como o próprio autor exemplifica: o alto e o baixo, o
seco e o úmido, o homem e a mulher. Por outro lado, e por motivos óbvios
relacionados à autoria deste estudo, não se pretende marcar a discussão
exclusiva sob a ótica feminina. Acredita-se que a visão masculina sobre o
assunto também possa contribuir com a outra face do debate, gerando subsídios e
intensificando a compreensão do fenômeno e a formulação de políticas promotoras
da saúde.
O contexto de vínculos complexos envolvidos na ocorrência das violências parece
apontar para uma necessidade de constante reflexão sobre a realização de
pesquisas nesta área. A proteção da autonomia, privacidade e confidencialidade,
bem como o referenciamento seguro dos casos revelados durante a coleta de
dados, são princípios e atitudes que precisam ser destacados durante todas as
fases dos desenhos de estudo. Exercitar os princípios da beneficência, não
maleficência, justiça e equidade parece ser o caminho premente para a adoção de
medidas protetivas para o pesquisador e seus voluntários no momento de
construção e prática dos protocolos de pesquisas que envolvem mulheres em
situação de violência.
Aponta-se como um desdobramento das reflexões sugeridas neste ensaio a
realização de estudos que contemplem a aplicação destes princípios éticos
durante a elaboração e desenvolvimento de estudos sobre violência. Sugere-se,
ainda, a reflexão sobre o quanto estas discussões seriam de interesse, quando
comparadas a estudos envolvendo grandes amostras e ou análises estatísticas
mais robustas. Principalmente quando se reflete sobre a constante demanda por
publicações e as exigências relacionadas a manter um conceito elevado no
ambiente acadêmico e o conseqüente reconhecimento entre os pares. O tempo atual
parece curto, tudo acontece rápido, é urgente. De uma forma geral, os cuidados
éticos não têm sido valorizados na sociedade atual, perdendo espaço para
questões mais imediatistas e que possam trazer visibilidade e sucesso rápidos.
Não dedicar o tempo necessário a estas questões, que podem trazer entraves para
a realização de investigações relacionadas à ocorrência de violência - neste
caso, especialmente aquela direcionada à mulher - pode significar um
retrocesso. Dar valor à ética na pesquisa pode ser um manifesto de vanguarda,
mais uma contribuição inestimável da pesquisa para a sociedade atual e futura.