Do padrão nightingaleano de enfermagem ao sistema social luhmanniano: estudo
teórico
INTRODUÇÃO
O advento da Enfermagem, no Brasil, representou um importante marco na
mobilização e trasformação das questões de saúde. A mesma surgiu, em um momento
em que o Estado brasileiro instituíra políticas de saúde voltadas para o
controle das endemias e das epidemias, as quais colocavam o Brasil numa posição
ameaçadora ao desenvolvimento do comércio internacional(1).
Ao tomar conhecimento do padrão nightingaleano das enfermeiras norte-
americanas, o então diretor da Cruz Vermelha acreditou ser este o profissional
necessário para a estratégia sanitarista do governo brasileiro e solicitou a
criação de serviço semelhante, no Brasil. Criada, no ano de 1922, com base no
"padrão Nightingaleano", a Escola de Enfermagem do Departamento Nacional de
Saúde Pública do Rio de Janeiro orientou-se no modelo de saúde vigente, o qual
estava centrado em abordagens biomédico-curativistas e, consequentemente, com
foco na doença(2-3).
Com tal enfoque, o profissional de enfermagem, como também os demais
profissionais de saúde, pautaram o seu saber técnico-científico em práticas
biologicistas e assistencialistas, nas quais predominavam o enfoque da doença,
da cura e da manutenção do status quo(4).
Nesse processo histórico, a construção do conhecimento na área de Enfermagem
vem se dando em fases evolutivas, as quais não se sucedem de forma linear ou
pontual, mas processual e complementar(5). No período de Florence Nightingale,
primeira fase, o foco do saber de Enfermagem centrou-se em "o que fazer?" Na
segunda, tentando conquistar o domínio técnico, a Enfermagem procurou definir
"como fazer?" Na terceira, focou-se em princípios científicos e investigou "por
que fazer?" Atualmente, busca discutir "qual o saber próprio da enfermagem?".
O último questionamento se justifica, no cenário brasileiro, pela necessidade
de repensar o modelo de atenção à saúde e desenvolver saberes que contribuam
para a consolidação do Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS). Com foco na
prevenção, promoção e proteção à saúde, o SUS transcende o modelo biomédico-
curativista com foco na doença e visa alcançar uma concepção sistêmica em
saúde, no sentido de potencializar o viver saudável de indivíduos, famílias e
comunidades.
Com base no exposto, este estudo, de caráter teórico, objetivou analisar e
discutir um possível código binário para o sistema de Enfermagem, no sentido de
identificar o seu próprio saber, na perspectiva dos pressupostos teóricos de
Niklas Luhmann.
SISTEMAS FUNCIONALMENTE DIFERENCIADOS
Na perspectiva luhmanniana, um sistema se diferencia não pela posição
estrutural ou hierárquica que ocupa, mas pela função social que desempenha a
partir de um código de diferenciação funcional. O sistema se caracteriza pela
garantia da auto-referência, isto é, pela capacidade de identificar e assegurar
o seu próprio saber, nesse caso, o saber da Enfermagem(6-8).
Para que um sistema se diferencie funcionalmente ele necessita, na concepção
luhmanniana, garantir o seu próprio saber mediante um código binário, isto é,
mediante um código de distinção de duas possibilidades comunicativas(9-13). No
sistema de saúde, por exemplo, a comunicação de sentido se estabelece por meio
do código de diferenciação saúde-doença. Nessa relação, a doença é considerada,
frequentemente, o ponto positivo e a saúde o ponto negativo do processo de
diferenciação funcional. Logo, o saber da medicina como o saber dos demais
profissionais de saúde é orientado pelo modelo biomédico-curativista, cuja
ênfase reside na "doença do indivíduo" e a comunicação socialmente relevante é
reduzida à doença(12-13).
Para ser considerado um sistema funcionalmente diferenciado e assegurar o seu
próprio saber, a Enfermagem precisa desenvolver, a exemplo de outros sistemas
sociais, a sua própria comunicação de sentido, mediante um código binário
específico(11). Esse código de diferenciação funcional deve ser garantido, no
entanto, a partir de uma circularidade interativa com os demais subsistemas de
saúde, visto que na concepção sistêmica não existem relações hierárquicas, mas
interações circulares e dialógicas.
Nessa direção, questiona-se: é possível desenvolver um código binário
específico para o sistema de enfermagem, capaz de transcender o tradicional
código saúde-doença predominante no sistema de saúde, cuja comunicação
socialmente relevante é a doença? Quais novos saberes é preciso analisar e
discutir para que a Enfermagem se constitua em um sistema funcionalmente
diferenciado?
SISTEMA DE ENFERMAGEM NA PERSPECTIVA DE PESQUISADORES ALEMÃES
Já existem razões para se pensar em um código binário específico para o sistema
de Enfermagem. Pesquisadores alemães, a partir de estudos fundamentados na
teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann, discutem possíveis códigos que
podem ser considerados pela Enfermagem(9,11,13). Um deles diz respeito ao
"cuidado-descuidado", o outro se refere à "necessidade de cuidado-não
necessidade de cuidado" e um terceiro, considera a "competência para o cuidado-
não competência para o cuidado". Sem chegar a definições conclusivas, as
discussões convergem para o código "competência para o cuidado-não competência
para o cuidado", visto que tal diferenciação funcional possibilita ao sistema
assegurar o seu próprio saber, sem excluir as demais possibilidades interativas
e associativas.
Para Luhmann, é somente mediante um código específico que se pode pensar em
sistemas auto-referenciados e autônomos. Os sistemas autônomos, na compreensão
luhmanniana, não se apóiam em regras morais, religiosas, civis ou políticas,
mas se identificam e diferenciam pela função social que desempenham(9). Sob
esse enfoque, o sistema de Enfermagem precisa, crescentemente, ampliar e
definir melhor o objeto de sua práxis social, isto é, a comunicação socialmente
relevante, a fim de promover e assegurar a sua autonomia.
Para os sociólogos alemães, a Enfermagem é uma prática social por excelência.
Uma prática, todavia, que se desenvolveu com base no tradicional e hegemônico
código saúde-doença e, consequentemente, a partir de relações hierárquicas, nas
quais prevalece o saber médico. Desenvolveu-se, portanto, com base em práticas
assistencialistas e num contexto em que a "doença" predominou como comunicação
socialmente relevante(13).
Para assegurar o saber autônomo ou funcionalmente diferenciado, o sistema de
enfermagem precisa, nessa relação, transcender os reducionismos provocados pelo
código saúde-doença, cuja comunicação socialmente relevante é a doença. Para
estar em consonância com a atual política brasileira de saúde - SUS, o sistema
de Enfermagem necessita ampliar o seu campo de visão, pela compreensão do
cuidado em saúde como fenômeno complexo, sistematizado por meio das múltiplas
relações, interações e associações sistêmicas, com vistas a promover a saúde do
ser humano de forma integral e articulada com tudo que o cerca.
CÓDIGO DE DIFERENCIAÇÃO FUNCIONAL PARA O SISTEMA DE ENFERMAGEM
A concepção que fundamenta o SUS e a Estratégia Saúde da Família conferiu à
Enfermagem Brasileira, pela compreensão ampliada do processo saúde-doença, um
importante espaço de inserção social e uma identidade funcionalmente
diferenciada. Essa identidade funcional necessita, no entanto, de níveis
teóricos mais avançados, no sentido de alcançar um pensamento complexo -
sistêmico acerca do saber próprio da Enfermagem.
Uma importante discussão teórica está associada ao cuidado pontual X cuidado
ampliado e/ou ao cuidado da parte X cuidado do todo, cujo binômio vem sendo
evidenciado como um possível código de diferenciação funcional para o sistema
de Enfermagem, do Brasil. Uma visão contextualizada e sistêmica permite
argumentar que, enquanto os profissionais de saúde, de modo geral, buscam
atender uma parte específica do ser humano, isto é, a parte biológica, a parte
nutricional, a parte ocupacional, a parte mental, o fígado doente e outros, o
profissional de Enfermagem tem a possibilidade de alcançar o todo do ser
humano, pela integralidade do cuidado. A Enfermagem tem a oportunidade de
promover o cuidado ampliado, a partir da compreensão do ser humano como unidade
complexa e do cuidado de enfermagem como fenômeno complexo-sistêmico.
Pela compreensão circular e interativa do cuidado, a Enfermagem tem a
possibilidade de promover a interconexão das partes com o todo, das partes
entre as partes e do todo com as partes, no sentido de apreender o ser humano
como um ser singular e multidimensional. Nesse processo, não raramente, a
Enfermagem se identifica como a mola propulsora e integradora das partes ao
todo e do todo às partes, a fim de atingir a unidade complexa - ser humano como
ser singular e multidimensional.
O entendimento de complexidade, onde não apenas a parte está no todo, como o
todo está inscrito na parte, traduz a conexão entre a unidade e a
multiplicidade, "do que foi tecido junto"(14), isto é, quando elementos
"diferentes são inseparáveis, constitutivos do todo e há um tecido (cuidado)
interdependente, interativo e circular entre o objeto do conhecimento e o seu
contexto, as partes e o todo, o todo e as partes e as partes entre si. Nessa
relação, o todo (cuidado) é uma unidade complexa que não se reduz à soma dos
elementos que constituem as partes. Considera-se, portanto, que a soma das
partes é maior e menor que o todo, considerando que cada parte apresenta as
suas especificidades e, na interação umas com as outras, modificam-se as partes
e também o todo para apreender o ser humano como singular e multidimensional
(14).
Ao mesmo tempo em que se evidencia como possível código de diferenciação
funcional da Enfermagem o "cuidado da parte-cuidado do todo", se observa, na
mesma dimensão, a fragmentação, a dissociação e a descontinuidade do cuidado em
saúde. Evidencia-se, que o ser humano, frequentemente, é apreendido como
resultado da soma matemática das partes ou como um todo divisível, isto é,
dividido em partes, no qual cada parte se constitui em fragmento para
determinada especialidade. Sob esse direcionamento, questiona-se: A quem
(profissional) cabe a função de interconectar as partes para formar a unidade
complexa?
Reconhece-se, que o campo profissional mais preparado e habilitado para
interconectar as partes ou os diferentes "fios interativos" do cuidado em saúde
é a Enfermagem. Em sua formação profissional, o Enfermeiro desenvolve uma
"visão global e sistêmica, pautada em saberes técnico-científicos e humanos
para atuar de forma crítico-reflexiva e proativa nos diferentes cenários de
atenção à saúde"(15).
Tais saberes globais e sistêmicos conferem à Enfermagem a liderança pelo
processo de cuidado como um todo. Da mesma forma, possibilitam a função de
organizar o ambiente de cuidado para os demais profissionais de saúde, promover
a interlocução entre o paciente, a família, a equipe de saúde e a comunidade. A
Enfermagem constitui-se, portanto, em mola propulsora e dinamizadora do cuidado
sistêmico, no qual e para o qual as diferentes partes são inevitáveis para a
compreensão do todo - unidade complexa. Nessa circularidade interativa, a
Enfermagem organiza, sistematiza, dinamiza e lidera o cuidado complexo, como
processo de múltiplas relações, interações e associações.
![](/img/revistas/reben/v66n4/a20fig01.jpg)
O cuidado sistêmico, entendido a partir "do que foi tecido junto" para formar a
unidade complexa, não tem a pretensão de excluir as partes ou reduzir o cuidado
a uma ação pontual de Enfermagem. Essa forma de pensar, não passaria de uma
nova concepção reducionista, considerando que o sistema de Enfermagem
desenvolve a sua auto-referência e autonomia funcional a partir de uma relação
de interdependência com demais sistemas funcionalmente diferenciados(6).
Nessa direção, a relevância do sistema de Enfermagem não está na posição
estrutural ou hierárquica que ocupa, mas na capacidade de estabelecer relações
e associações de interdependência com os demais subsistemas de saúde. Assim, o
sistema de Enfermagem será identificado e concebido não apenas pelo cuidado
linear e pontual, mas pela capacidade de desenvolver novas e sempre mais
complexas comunicações intersistêmicas. Para tanto, requer cada vez mais, o
desenvolvimento de saberes interativos e associativos, no sentido de fomentar e
liderar o cuidado como unidade complexa e sistêmica.
Entende-se, que o pensamento complexo-sistêmico aspira ao conhecimento singular
e multidimensional. Logo, comporta um princípio de incompletude,
interdependência e complementaridade(16). Aderir a esse pensamento significa
considerar os múltiplos "fios" que interagem e se complementam para formar o
cuidado complexo-sistêmico em saúde, com vistas a compreensão do ser humano
como unidade complexa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
São inegáveis os avanços da Enfermagem brasileira na busca de sua identidade e
autonomia profissional. Permanecem, no entanto, como desafios, na luta pelo
reconhecimento da profissão de Enfermagem como sistema funcionalmente
diferenciado: a necessidade de fundamentar o saber técnico-científico com base
em referenciais que ampliem o conhecimento próprio de Enfermagem como fenômeno
complexo e a adoção de estratégias que permitam legitimar e incorporar o
conhecimento científico produzido ao campo de Enfermagem.
Para o sistema de Enfermagem transcender o tradicional código saúde-doença,
cuja comunicação funcionalmente diferenciada e socialmente relevante é a
doença, o mesmo necessita apostar em uma comunicação funcionalmente
diferenciada e socialmente relevante. Implica, ainda, em investir proativamente
na promoção e proteção do viver saudável de indivíduos, famílias e comunidades,
para que a saúde se torne o ponto central das discussões e intervenções em
saúde. Nessa direção, o empreendedorismo e as redes interativas e associativas
se constituem em importantes mecanismos mobilizadores em vista da conquista de
novos espaços e de novas possibilidades de intervenção social.
A análise e as discussões acerca de um possível código binário para o sistema
de Enfermagem suscitam novas questões e reflexões, entre as quais: Que saberes
são necessários no processo de formação profissional e atuação do Enfermeiro,
para que seja capaz de fomentar processos interativos, associativos e de
interdependência com os demais campos profissionais? Que novos saberes
necessitam ser construídos, a fim de conceber o cuidado de Enfermagem como
unidade complexa?