Práticas complementares de saúde e os desafios de sua aplicabilidade no
hospital: visão de enfermeiros
INTRODUÇÃO
No decorrer da história da ciência ocidental moderna, a Biologia e a Medicina
sempre caminharam juntas em seu desenvolvimento. Na base do pensamento
biológico, por influência de Descartes, está a concepção cartesiana na qual se
reduz os organismos vivos a seus menores constituintes. Assim sendo, é natural
que uma vez que esses conceitos tenham sido firmados nas bases da Biologia, a
Medicina tenha aderido de igual forma a esses princípios. A influência do
modelo cartesiano sobre o pensamento médico deu origem ao chamado modelo
biomédico(1).
O movimento de ruptura com as maneiras de conceber o organismo humano, que
antecedeu a ciência moderna, deu-se com a Anatomia, através da qual se formou
uma nova racionalidade médica cujo mecanismo fisiologista era fundamentado no
modelo clássico. A partir de tal concepção, a vida humana deixou de ser o
objeto central da prática médica e o homem passou a ser visto como máquina
composta por diferentes e minuciosas partes. Os hospitais passaram a ser
organizados como espaço clínico de uma ciência voltada às patologias, onde o
corpo humano era a sede das doenças e estas, as entidades patológicas(2).
A visão do ser humano tornou-se fragmentada. Com a utilização desse modelo, os
médicos passaram a ver o corpo humano como uma máquina que podia ser analisada
em termos de suas peças e assumiram para si o papel de intervir, física ou
quimicamente, para consertar o defeito de um mecanismo(1). Desta forma, o poder
hegemônico passou a ser do profissional médico, uma vez que todas as
intervenções propostas deveriam passar pelo seu crivo para serem aprovadas.
O modelo biomédico vê o corpo humano como uma máquina muito complexa, com
partes que se inter-relacionam obedecendo a leis naturais(2). Tal modelo tem se
caracterizado por uma "explicação unicausal da doença, pelo biologicismo,
fragmentação, mecanicismo, nosocentrismo, recuperação e reabilitação,
tecnicismo e especialização"(3) e é este modelo que tem dominado o contexto
hospitalar. Mesmo quando o profissional intenciona ver o cliente como um todo
unificado, sua intervenção acaba por retornar ao modelo reducionista devido,
principalmente, à sua formação acadêmica e ao domínio biomédico nos diferentes
espaços de atendimento à saúde, em especial, o hospitalar.
O centro da atenção do profissional, segundo este modelo, é o indivíduo doente
e as ações de recuperação e reabilitação da doença são priorizadas em
detrimento das ações de promoção e proteção à saúde. Desta forma, a "troca da
globalidade pela especialização atenuou a compreensão holística do ser humano"
(3). Se, de um lado, não podemos ignorar que os avanços técnico-científicos
produzidos pelo modelo biomédico contribuíram, sobremaneira, na eliminação ou
controle de determinadas doenças, como, por exemplo, as de natureza bacteriana;
nas cirurgias do coração; nos transplantes de órgãos, entre outros; por outro,
aparentemente, esse modelo não vem dando conta da totalidade de saúde do ser
humano, tendo em vista as várias dimensões resultantes da interação que ocorre
entre os diversos componentes físicos, sociais, históricos e culturais da
natureza do homem(4).
No campo da saúde há, hoje, a emergência de novas abordagens no que tange à
questão do adoecimento e às formas de nele intervir, tais como a clínica
ampliada, a humanização do atendimento, as discussões sobre a integralidade em
saúde e a produção do cuidado com vistas à transformação do modelo técnico-
assistencial. Juntamente a tais abordagens, tem-se observado nos últimos anos
uma crescente aceitação das terapias complementares em nossa sociedade.
Essas terapias possuem bases teórico-filosóficas que se contrapõem ao modelo
convencional, o biomédico, cujo alicerce é o pensamento cartesiano. Seu enfoque
visa um olhar holístico do ser humano, integrando os sistemas físico,
psicológico e social. Portanto, refutam a concepção do ser humano constituído
de partes isoladas que podem ser analisadas independentemente, entendendo-
o pela interdependência dessas partes que formam sua integralidade.
Em 2006, o Ministério da Saúde implantou a Política Nacional de Práticas
Integrativas e Complementares (PNPIC), que rege a inserção destas práticas no
Sistema Único de Saúde, dispondo sobre sua implantação no contexto nacional(5).
O campo das PICS contempla sistemas médicos complexos e recursos terapêuticos
conhecidos sob várias denominações, como tradicionais, complementares,
integrativas, alternativas ou não convencionais. Esses sistemas buscam a
estimulação de
mecanismos naturais de prevenção de agravos e recuperação da saúde
através de tecnologias eficazes e seguras. Elas enfatizam a escuta
acolhedora, o desenvolvimento do vínculo terapêutico e a integração
do ser humano com o meio ambiente e a sociedade(5).
O estímulo da Organização Mundial de Saúde fez com que o Brasil passasse a ser
um país de vanguarda na sua utilização no sistema oficial de saúde no âmbito
das Américas, assegurando aos usuários do SUS o acesso à medicina tradicional
chinesa/acupuntura, homeopatia, plantas medicinais e fitoterapia, termalismo
social/crenoterapia(5). No entanto, ao mesmo tempo em que a procura por métodos
complementares de cuidado se torna crescente, sua inserção no meio hospitalar
torna-se um grande desafio pelo fato de ir de encontro aos saberes e práticas
cunhadas ao modelo biomédico próprias deste contexto.
O cuidado de enfermagem sofre influência desse modelo, dominante na saúde,
especialmente, no hospital, espaço de objetividade técnica, onde imperam formas
impositivas de abordagem e intervenção. Desse modo, vemos que há um grande
"esforço da biomedicina em incluir os sintomas físicos sem causas explicáveis
dentro das suas inúmeras categorizações, ou seja, tornar o subjetivo objetivo e
transformar o invisível em visível"(6). Mas a completude do saber biomédico
está diminuindo nos círculos intermediários, porque está reduzindo a máquina
humana em peças cada vez menores(7).
Os saberes e práticas que seguem a orientação biomédica se distanciam dos
princípios que orientam as PICS. Em termos científicos modernos, o processo de
cura através de PICS representa a resposta coordenada do organismo integrado às
influências ambientais causadoras de tensão. Isto porque, "Essa concepção de
cura envolve certo número de conceitos que transcendem a divisão cartesiana e
que não podem ser formuladas de acordo com a estrutura da ciência médica atual"
(1). Caracteriza-se por estar fundada em uma visão do indivíduo de forma
totalizante. No Brasil, muitas PICS estão sendo discutidas e incorporadas nos
serviços oficiais de saúde, especialmente, a partir da Portaria do Ministério
da Saúde mencionada, inclusive aplicadas por enfermeiros no cuidado. No
entanto, há dúvidas a respeito de que tipo de saber sustenta a prática do
enfermeiro no emprego de PICS, e que desafios se apresentam à sua
aplicabilidade no contexto do cuidado hospitalar.
Questiona-se até que ponto o modelo biomédico, dominante no hospital, pode
influenciar na aplicabilidade de PICS tornando-as técnicas fragmentadas e
isoladas, deslocando-as, portanto, de suas racionalidades tradicionais -
filosófica e cultural. Assim sendo, objetivou-se descrever o conjunto de
concepções e saberes que orientam o emprego de práticas integrativas e
complementares de saúde por enfermeiros e analisar os desafios que se
apresentam à aplicabilidade dessas terapias por enfermeiros no contexto
hospitalar.
METODOLOGIA
Pesquisa de campo, do tipo qualitativo, exploratório e descritivo. A pesquisa
qualitativa "traduz, à sua maneira, as articulações entre o singular, o
individual e o coletivo que estão presentes nos processos de saúde-doença"(8).
Dessa forma, possibilita traduzir um pouco da experiência humana vivenciada por
cada sujeito participante.
O cenário da pesquisa constituiu-se de hospitais públicos da cidade do Rio de
Janeiro, de esfera municipal, estadual e federal. Os sujeitos da pesquisa foram
15 enfermeiros que atuavam nestes hospitais e que aplicavam ao menos uma das
seguintes PICS como recurso terapêutico no cuidado: Reiki, shiatsu, acupuntura,
fitoterapia, musicoterapia, florais e cromoterapia.
Em respeito à Resolução nº 466/2012, que regulamenta as pesquisas feitas com
seres humanos, o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Escola
de Enfermagem Anna Nery/ Hospital Escola São Francisco de Assis, através do
protocolo nº 031/11. Todos os sujeitos assinaram o Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido após devidamente informados sobre o caráter voluntário de sua
participação; sobre a garantia de sua identidade não ser revelada; e o direito
de desistir de sua participação em qualquer momento da pesquisa. Do mesmo modo,
foram informados que a pesquisa não previa nenhum custo assim como nenhum tipo
de compensação financeira por sua participação. A identificação dos sujeitos se
deu através de números arábicos sequenciais de acordo com a produção de dados e
da enunciação da terapêutica aplicada por cada um deles.
Para produção de dados foram utilizadas a Técnica de Criatividade e
Sensibilidade (TCS), denominada "Almanaque", juntamente com a entrevista
semiestruturada. A TCS ajuda a apreender o mundo imaginário do sujeito, de modo
que transcende a racionalidade e as diversidades das experiências e vivências
com o emergir das expressões de criatividade e sensibilidade. Dessa forma, a
expressão da subjetividade ganha forma concreta através do diálogo entre o
pesquisador e o sujeito(9).
A TCS Almanaque consiste em refletir sobre questões relacionadas ao tema
central do estudo que neste caso versou sobre as PICS e sua aplicabilidade por
enfermeiros no cuidado de enfermagem. Para a atividade, utilizou-se recorte e
colagem de gravuras, desenhos, palavras ou frases que tenham algum significado
para o sujeito. O pesquisador fornece gravuras e palavras que apresentam
pessoas ou situações em diversos contextos, e o sujeito escolhe quais possuem
maior representatividade para si, a fim de compor seu "Almanaque". São
fornecidos ainda materiais adicionais pelo pesquisador, como cola, tesoura,
folha de papel e canetas coloridas para que o sujeito expresse, ao máximo, sua
criatividade em responder as questões propostas. Após a confecção de seu
Almanaque, o sujeito o apresenta ao pesquisador, explicitando e justificando o
motivo de suas escolhas, abrindo ao diálogo que ocorre concomitantemente à
entrevista semiestruturada. Nesta pesquisa, as questões apresentadas para a
confecção do Almanaque foram: 1) O que vocês pensam sobre a aplicabilidade de
PICS no cuidado hospitalar? 2) Que saberes orientam sua prática nesse contexto?
A entrevista semiestruturada levantou questões complementares às resultantes da
TCS Almanaque, pontuando dificuldades e facilidades do emprego de PICS por
enfermeiros tendo em vista as características próprias do hospital. O processo
dialogal com cada sujeito durante a produção de dados foi gravado e transcrito
na íntegra para posterior utilização na fase de análise dos mesmos.
Por entendermos a pesquisa qualitativa como sendo capaz de juntar tanto a
questão de significado, quanto a de intencionalidade presentes nos atos,
relações e estruturas sociais do indivíduo(10), nos foi possível fazer a
análise temática dos dados oriundos da entrevista e da TCS produzidos pelos
sujeitos. Como resultado, foram geradas duas categorias de análise: 1)
Concepções e saberes implicados no emprego de práticas integrativas e
complementares de saúde por enfemeiros; e 2) Desafios à aplicabilidade de
práticas integrativas e complementares por enfermeiros em hospitais.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Concepções e saberes implicados no emprego de práticas integrativas e
complementares de saúde por enfemeiros
Como vimos, um dos princípios filosóficos que sustentam as PICS é o da
integralidade. Seguindo esta lógica, o usuário dos serviços de saúde deve ser
visto e entendido como um ser total. Ou seja, ao assisti-lo, o profissional não
deve ater-se tão somente à patologia em si, mas a todo o contexto de sua vida e
saúde. Isto é, englobar o biológico, o sociocultural, o psicológico e o
espiritual, haja vista que a causa da doença não necessariamente se vincula, no
todo ou em parte, ao fator biológico ou ao corpo físico, embora muitas vezes se
manifeste sob a forma de sinais e sintomas localmente situados.
A concepção de integralidade marcou o discurso dos enfermeiros ao falar sobre
as práticas complementares e o conjunto de saberes que as constituem:
(...) eu acredito que a medicina natural ela consegue trazer a
essência da pessoa, então ela integra sujeito; ele e a natureza
externa (E2: acupuntura).
Então, a questão da consciência do cuidado de si, você é parte do
mundo e o mundo é parte de você (E13: acupuntura).
A integralidade é um termo polissêmico que significa uma abertura ao diálogo e
se opõe ao reducionismo e a objetivação dos sujeitos(11). Com isso, possibilita
um entendimento melhor da situação real que o cliente esteja atravessando. Esta
forma de conceber o ser humano no cuidado esteve presente na fala dos sujeitos
como norteadora dos saberes que orientam sua prática:
A pessoa não é um órgão doente, quando ela tem algum órgão que está
deficiente, ela está deficiente no todo (...).(E1: Reiki, shiatsu,
acupuntura)
(...) porque a gente, na medicina chinesa, a gente vê o sujeito como
um todo mesmo, né? Aí eu acho que é o holismo que a gente tanto fala
(...) (E2: acupuntura)
(...) na realidade, a avaliação é sempre contextual. É o ser humano e
não a patologia propriamente dita. (E10: Reiki)
E eu acho que esse tipo de conhecimento, essa filosofia holística,
eles são maneiras de ver o homem na dimensão física, social,
emocional e espiritual (...). Eu acho que sustenta muito a minha
prática. (E11: terapia floral e Reiki)
Como parte da integralidade, o equilíbrio da energia vital que harmoniza o ser
humano sustenta o saber que alicerça as PICS:
(...) o saber biológico, ele contribui, mas eu utilizo o saber que me
respalda muito, que é o saber energético. Tem que estar estudando
sobre os princípios de energia, pra estar contribuindo cada vez mais
com o cliente. (E10: Reiki)
A concepção dinâmica entende saúde como um equilíbrio das forças vitais
existentes nas pessoas, enquanto a doença é estabelecida quando há o
desequilíbrio dessa interação(11). Muitos fatores podem proporcionar esse
desencontro do equilíbrio energético, podendo não ser apenas de natureza
física, mas resultante do estresse emocional ou mesmo social. Este se prolonga
de tal forma que afeta o equilíbrio das forças vitais, até chegar ao ponto de
se exteriorizar, muitas vezes, através de uma patologia. Porém, neste caso, a
origem do agravo nada tem a ver com um fator físico propriamente dito, por isso
a importância de entender o ponto chave que culminou com o desequilíbrio, a fim
de devolver ao corpo seu equilíbrio energético inicial.
Nessa direção, as PICS visam promover o autoconhecimento do indivíduo, o que
facilita que a própria pessoa encontre em si mesma seu ponto de equilíbrio.
Assim sendo, é importante que os usuários exerçam sua condição plena de
sujeitos, partícipes do processo de cuidar:
(...) a resposta é sempre do cliente, ele é o meu material essencial,
ele é meu ser essencial (...). (E9: terapia floral)
(...) porque o princípio do processo terapêutico inclui a
participação do cliente nesse processo. (E11: terapia floral e Reiki)
O objetivo do caminho trilhado pelas práticas tradicionais é o de realização do
cliente enquanto ser humano através de um processo de transformação e
realização pessoal como trajetória individual para religar e reharmonizar a
pessoa com o cosmo, o mundo, os outros(12):
Essa energia do "Ying e Yang" tudo o tempo todo em harmonia. E é o
que a gente quer estabilizar, quando a gente trata [com acupuntura],
quando a gente cuida, a gente quer que essa energia vital, ela esteja
harmônica naquele contexto. (E2: acupuntura)
Energia do plano astral caracterizada pelos japoneses como energia
Rei e a energia física como energia Ki. Então essa interação ou
integração energética faz com que o indivíduo se sinta cada vez mais
equilibrado e tenha uma consciência mais plena do seu real processo
de vida. (E10: Reiki)
Ela parte do princípio de que o homem tem um corpo energético. As
doenças e os sofrimentos físicos não começam no corpo, eles começam
num nível mental e emocional. Então é uma visão muito maior, muito
mais ampla que leva em conta o princípio energético do ser humano, os
corpos energéticos. (E11: terapia floral e Reiki)
O discurso dos enfermeiros demonstrou a importância de se atentar para o
equilíbrio e harmonia do indivíduo. Percebemos que o profissional, ao prestar
assistência ao usuário, deve atuar não só no corpo físico, mas também nas
energias mais sutis que o constituem(13).
Aí quando eu penso neste cuidado complementar, é no sentido de
resgatar esse ser integral. (E3: Reiki)
(...) não existe meu corpo e seu corpo, o que existe é energia
condensada, que faz seu corpo e o meu corpo. Então, quando você se
posiciona, quando você influencia, tem a tríade: energia, matéria e
consciência. Então você tem que ter essa visão do todo.... (E4:
floral)
(...) os canais que circulam nosso corpo, que faz circular nossa
energia mesmo. Essa energia pode nos ajudar a reagir não só para a
manutenção da saúde, como também pode nos ajudar para a sua
recuperação. (E12: acupuntura)
As PICS visam permanecer em um campo individual e grupal, com o intuito de
fortalecer, estimular ou resgatar a saúde e a qualidade de vida, resultando em
satisfação ao usuário e assim, tendem a mostrar um alto grau de resolutividade
(11-12). Além da interação entre sujeito-natureza-cosmos, ressalta-se, também,
a importância da interação entre o indivíduo e o meio social, seja com os
profissionais de saúde, seja em suas relações interpessoais cotidianas. Tendo
em vista que os problemas dos sujeitos são resultados de complexas interações
entre mente, corpo e meio social(11), faz-se necessário que tais interações
ocorram de maneira bem ajustada. Por tal razão, as PICS visam estabilizar e
melhorar essas interações:
(...) eu vejo a medicina chinesa como uma coisa integralizadora, ou
seja, que acontece através da interação também de dois seres. A
interação de quem cuida e de quem é cuidado. (E2: acupuntura)
(...) a chave de tudo pra mim, quando eu consigo abrir [estabelecer
diálogo], é através da relação. (...) Por isso que eu acho que a base
do cuidar é o relacionamento. (E3: Reiki)
É oportuno destacar que a interação é um dos elementos que sustentam a relação
do cuidado ético e de qualidade, independente do modelo de cuidar adotado pelo
profissional. No entanto, face às características próprias da biomedicina e de
suas formas intervencionistas que apelam para a objetividade, estas tendem a
dificultar o processo interativo e de participação entre ambos os sujeitos
envolvidos no cuidado - o profissional e o usuário do serviço de saúde. Em
contrapartida, o profissional de saúde quando opta por aplicar uma PICS no
cuidado, deve ter a interação como uma de suas bases fundantes.
Desafios à aplicabilidade de práticas integrativas e complementares por
enfermeiros no hospital
Um dos aspectos que estão na base de sustentação das PICS é sua concepção
sistêmica, segundo a qual todos os fenômenos ou eventos se interligam e se
inter-relacionam de forma global e interdependente. Sua aplicação torna-se,
portanto, um desafio para o cuidado no âmbito hospitalar, cenário em que
geralmente a saúde está sob o domínio biomédico, sendo vista como ausência de
doença e sustentada hegemonicamente em saberes e práticas que tendem à
fragmentação e à redução do ser humano em suas partes na condução diagnóstica e
na terapêutica implementada.
Caracterizam-se pelo uso de meios, por vezes, menos onerosos, com base em uma
visão de saúde integral e, principalmente, por métodos não invasivos e não
tóxicos. Fundamentadas em um paradigma holístico, essas práticas superam a
divisão cartesiana entre corpo e mente através de uma perspectiva que integra
esses dois elementos, em uma dimensão em que a mente assume importância vital
(11). Portanto, as PICS constituem um grupo de terapias e produtos que não
fazem parte da medicina alopática(14). São ditas complementares quando usadas
junto com práticas da biomedicina; quando no lugar de uma prática biomédica,
alternativas; e, conjuntamente, baseadas em avaliações científicas de segurança
e eficácia de boa qualidade, são denominadas integrativas(16).
A capacidade de resolução dos problemas de saúde-doença por estes sistemas de
cura se deve de forma fundamental, à diferenciação da interpretação sobre a
relação saúde-doença, cujos aspectos psíquicos e físicos não são dicotomizados
na busca do restabelecimento do equilíbrio, conforme destaque anterior(7). Tais
características os distinguem da abordagem ao ser humano, bem como, dos
sistemas de tratamento e cura próprios do modelo biomédico que estão no âmago
da formação e atuação dos profissionais de saúde.
Com efeito, os resultados deste estudo indicam que a formação acadêmico-
profissional do enfermeiro ainda é fator limitante ao emprego de outras
terapêuticas não orientadas pelo modelo biomédico, conforme destacado por 11
dos 15 enfermeiros participantes. Nesse sentido, as características inerentes
ao contexto hospitalar dificultam, a princípio, a aplicabilidade de PICS:
Porque na nossa formação por mais que seja integrativa, humanista que
é a Enfermagem, a nossa formação é como um carro que a gente tem que
ter reposição. Querendo ou não a Enfermagem é influenciada por essa
visão cartesiana da saúde, né? (E4: floral)
Então, o que eu acho é que... O que dificulta passa um pouco pela
nossa formação, que é calcada no modelo biomédico. E essas terapias,
na maioria das vezes, elas tem outro direcionamento, outra
sustentação, que é o paradigma vitalício. (E10: Reiki)
À medida que a prática convencional não contempla a complexidade do ser humano
em todas as suas manifestações do corpo físico e emocional, emergem as
possibilidades da prática convencional ser compartilhada com outras de natureza
integrativa. Assim, os discursos dos 15 enfermeiros participantes da pesquisa
convergem para o entendimento de que devamos revisitar nossas práticas,
refletindo sobre em quê condições se pode pensar no cuidado em uma perspectiva
de complementaridade, integrando diferentes métodos e tecnologias de cuidar,
tanto os de natureza convencional, próprios da biomedicina, quanto os oriundos
das PICS:
A gente finalmente está se dando conta de que o modelo biomédico não
dá conta de tudo, a gente precisa de outros conhecimentos. (E11:
terapia floral e Reiki)
(...) você vê aí, a medicina chinesa vem sendo extremamente
trabalhada, pois é uma medicina voltada totalmente para a natureza, e
o mais lindo disso, que podemos viver isso dentro de uma tecnologia,
né? Então, nós podemos associar tudo o que nós temos, toda a
tecnologia que nós temos hoje, mas não abandonando a sua essência, e
essas práticas integrativas, de uma maneira geral, faz com que a
gente volte a nossa sensibilidade para isso. (E9: floral)
As PICS inovam na reposição do sujeito doente como centro do paradigma da
saúde; na re-situação da relação curador-paciente como elemento fundamental da
terapêutica; na busca de meios simples, menos dependentes de tecnologia
científica dura, porém com igual ou maior eficácia nas situações mais gerais e
comuns do adoecimento; na construção de um modelo de saúde que vise acentuar a
autonomia do paciente e na afirmação de um saber/prática que tenha como
categoria central a saúde e não a doença(15).
Se, por um lado, é inegável a afirmativa de que os avanços biomédicos muito
contribuíram com a evolução e melhoria de procedimentos hospitalares, por
outro, é fato, também, que a consequência mais visível da fragmentação do ser
humano foi o afastamento médico-paciente(2). Situação semelhante ocorre com a
assistência de enfermagem e a relação do cuidado em si à pessoa, quando o
aparato técnico e tecnológico toma lugar de destaque no cuidar, se distanciando
do cuidado expressivo, tão importante quando se objetiva a atenção integral ao
ser humano. Tais aspectos resultam em insatisfação difusa e crescente com a
abordagem biomédica em virtude de esta ser progressivamente mais impessoal,
dedicando pouco tempo à pessoa cuidada, na sua inteireza.
É importante considerar que os motivos da expansão contínua da opção dos
usuários por terapias complementares não podem ser limitados apenas às questões
de insatisfação ou insucessos das práticas convencionais de saúde. Tal opção
fundamenta-se, também, em escolhas culturais e terapêuticas que convergem para
transformações nas representações da saúde, doença, tratamento e cura presentes
no processo de transformação da cultura(16).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em atenção aos princípios filosóficos que norteiam as PICS, os enfermeiros que
participaram da pesquisa concebem sua prática de cuidar pautada no entendimento
do usuário dos serviços de saúde como seres capazes de interagir e integrar-se
socialmente e com a natureza.
Na ótica desses enfermeiros, o cuidado deve se sustentar para além do
biológico, integrando elementos como autoconhecimento, energia e harmonia no
plano físico, social e do cosmos no interesse de se alcançar o equilíbrio das
forças vitais humanas. O ser humano é um ser complexo, que não se traduz e não
preenche sua vida somente com subsídios materiais, precisa ser contemplado em
todas as esferas de sua existência, ser nutrido com o alimento, com os
relacionamentos, com os projetos realizados, com a qualidade de vida que
expresse sua saúde. No entanto, ao longo do tempo, com o avanço técnico-
científico e, por conseguinte, a lógica centrada em produção e consumo, o homem
vem buscando soluções objetivas para seus problemas, o que acarreta mudança de
lógica, de protagonista de sua história à posição de coadjuvante, aplicável,
também, ao processo saúde-doença.
Nessa perspectiva, os resultados desta pesquisa reiteram alguns desafios que se
apresentam à aplicação de PICS no cuidado, em especial, no hospital, centrados
nas características do modelo biomédico que sustentam a formação acadêmico-
profissional. Com o desvio do foco de interesse sobre a saúde humana, antes,
pautado em forças sobrenaturais, e, posteriormente, em raízes vinculadas ao
Renascimento e as mudanças derivadas da revolução técnico-científica o homem
passou a ser o centro do universo e a harmonia de sua interação com o todo,
deixada de lado.
Entretanto, se este modelo trouxe considerados avanços para a saúde, há de se
destacar suas limitações face à complexidade humana e seus componentes de
subjetividade que lhe são inerentes, levando à busca de estratégias
terapêuticas que possam intervir sob os problemas derivados ou articulados a
esses componentes, causadores de doenças. Emergem desses limites as PICS como
possibilidades terapêuticas. Embora com propriedades que favorecem o
entendimento da totalidade humana e a atuação profissional nessa linha
diretiva, há de se refletir que tal evento não garante êxito da aplicabilidade
dessas práticas em espaços cujo valor simbólico e repercussões práticas são
legitimamente biomédicas, como o hospitalar.
Outra reflexão que se anuncia e se articula a que ora se apresenta são os
possíveis deslocamentos dos princípios teórico-filosóficos que regem as PICS em
função das influências do modelo dominante, a qual deve ser discutida na
academia e nas instituições de saúde.
É oportuno destacar que não se trata de enaltecer uma proposta terapêutica em
detrimento de outras, mesmo porque, o pensamento sistêmico que embasa as PICS
pressupõe abertura ao diálogo entre diferentes concepções, práticas e saberes.
Mas, o que nos parece incoerente e merece atenção de modo a não reproduzir tal
postura, é quando um profissional se compromete com uma intervenção integrativa
e respalda sua prática seguindo um modelo reducionista. Afinal, o que devemos
proporcionar ao usuário como um imperativo ético é a qualidade que imprimimos
ao cuidado que desenvolvemos. Se, pautado em um modelo integrativo ou
cartesiano, sejamos coerentes e consistentes em nossas escolhas e opções, em
atenção, também, àquelas manifestas pelos sujeitos aos quais dedicamos nosso
cuidado.