A pesquisa e os dilemas éticos do trabalho da Enfermagem
A ética (...) continua problemática, ou seja,
cria problema, o que nos obriga a pensar.
Kostas Axelos
O autor da epígrafe que abre este artigo nos convida ao exercício cotidiano do
pensar, particularmente, importante, quando queremos nos referir aos dilemas
éticos que envolvem o trabalho da enfermagem.
Nesse sentido, abordaremos três dimensões significativas do fazer da
Enfermagem: o ensino, a pesquisa e a assistência, conduzindo-os por uma
reflexão ética. Para nós, a ética manifesta-se de maneira imperativa, como
exigência moral, como um suporte estruturante de nossa própria sobrevivência,
no trabalho e na vida.
Edgar Morin(1) refere em seus estudos sobre ética que esse imperativo origina-
se numa fonte interior ao indivíduo, que o sente no espírito como a injunção de
um dever. E, ao mesmo tempo, provém de uma fonte externa, como a cultura, as
crenças, as normas de uma comunidade. Cada um vive para si e para o outro em
uma relação dialógica ao mesmo tempo, de forma complementar e antagônica.
Portanto, ser sujeito é associar egoísmo e altruísmo. O autor assinala ser
importante reconhecer nessa visão o aspecto vital do egocentrismo e a
potencialidade fundamental do desenvolvimento do altruísmo.
É preciso reconhecer dentro desse contexto que todo olhar sobre a ética deve
levar em consideração que a sua exigência é vivida subjetivamente. O
universalismo ético tem um componente racional e um componente místico
justificado pela herança da ascendência religiosa que marcou o pensamento ético
através dos tempos. A ética não propõe a soberania da razão. Ela é frágil.
Permanece incerta e inacabada; nunca está pronta; deve incessantemente
regenerar-se.
Pensar os dilemas éticos do trabalho da Enfermagem significa enfrentar
situações embaraçosas, qualquer que seja o campo de atuação profissional. A
verdade é que o dilema nos coloca diante da dificuldade de escolher a solução
ideal, diante de um raciocínio que parte de premissas contraditórias e
mutuamente excludentes, em relação a uma determinada situação, ambas ingratas
ou mesmo contrárias ao nosso sentir. Daí a importância de construirmos uma
cultura ética no cotidiano do exercício profissional para não nos perdermos
pelo viés do utilitarismo. Neste, decidem aqueles que têm o poder de decisão,
têm autonomia sobre outros que vivem à margem, terminando por ser penalizados.
Na sociedade em que vivemos, com profunda desigualdade social, cresce e se
fortalece um cenário desumano, do descuido e do abandono. E, assim, a ética do
cuidar assume uma importância cada vez maior diante das fragilidades da vida.
Pensando o ensino da ética / bioética, enfrentamos nosso primeiro dilema. No
nosso entender, esse ensino tem uma transversalidade em toda a formação do
enfermeiro e dos demais profissionais da Enfermagem; ou seja, todos os docentes
transmitem uma ética ,qualquer que seja seu campo de atuação, e, por vezes,
esquecem ou mesmo banalizam esse compromisso. Nos cursos da área da saúde e,
particularmente, na Enfermagem, o ensino de ética / bioética tem sido destacado
como uma prioridade? Faz parte das disciplinas ditas estruturantes do
currículo? Há um compromisso por parte do corpo docente, em seu conjunto,
acerca dos princípios éticos que devem direcionar a prática de seus
profissionais, qualquer que seja o espaço de atuação?
E, ainda, continuamos com outras indagações, igualmente importantes face à
direção ética da formação: O conteúdo dos cursos/disciplinas de ética/bioética
ultrapassa as questões meramente deontológicas da profissão? Da ética
codificada? Do conhecimento técnico e científico? Ou caminha no sentido da
bioética, buscando compreender o equilíbrio dos conflitos atuais e futuros
entre os indivíduos e a natureza, englobando situações persistentes e
emergentes que afligem a humanidade? Discute a melhoria das condições de vida,
relacionando-as ao exercício da cidadania, e dos direitos humanos? Aponta para
uma ética da compreensão, da complexidade, da tolerância, do reconhecimento, da
solidariedade e, ainda, como nos adverte Habermas, da ação comunicativa?
As publicações acerca do tema confirmam que o ensino de ética com essa
abordagem não vem sendo priorizado, ao contrário, ocupa um lugar secundário no
conjunto das disciplinas dos cursos de graduação e pós-graduação, com ênfase,
sobretudo, nos aspectos deontológicos. E assim, para os estudantes, ser ético
significa, quando muito, apenas respeitar o código de sua profissão. Porém,
mesmo pensando nos bons sentimentos contidos nos códigos de ética, os alunos se
deparam com a contradição entre o discurso ético e a intervenção prática dos
profissionais, no cotidiano dos serviços de saúde. É comum identificar-se a
discriminação do cliente/usuário, em função de sua origem social, de forma
banalizada, como sendo algo natural.
No exercício cotidiano dos profissionais de saúde, são inúmeras as
arbitrariedades registradas a cada novo dia, mesmo em se tratando de
instituições que se destinam ao ensino e à pesquisa, campo de aprendizagem,
portanto, de estudantes dos diferentes cursos. Daí a importância da parceria
entre ensino e serviço, dentro de um pacto ético, envolvendo docentes e
profissionais de saúde, com vistas a melhor direcionar e enformar a ação
discente, no processo de aprendizagem. Essa experiência é marcante, podendo
tornar-se edificante quando o fazer técnico e o comportamento ético se misturam
e constituem uma unidade, como ações inseparáveis.
No entanto, essa dicotomia se faz presente quer nas salas de aula, quer nos
serviços de saúde, cujos aspectos técnicos são comumente priorizados, sem que
se estabeleça, na maioria das vezes, qualquer relação com as dimensões humanas,
sociais e, portanto, éticas. É comum a notificação da existência de
despreocupação ou mesmo banalização, por parte dos profissionais, com o
sofrimento, a dor, a condição humana. Quando, ao contrário, a ética preconiza a
resistência à crueldade do mundo e à barbárie. Ela nos remete para a
tolerância, a compaixão, a mansidão e a misericórdia. É pensar a própria
realização da vida humana.
Ainda a propósito da formação como um todo, há uma marcante tendência a
compartimentalização do saber e, em consequência, do ser a quem esse saber se
destina. Em conformidade com Edgar Morin, "a hiperespecialização impede tanto a
percepção do global (que ela fragmenta em parcelas), quanto do essencial (que
ela dissolve")(2). E ainda acrescenta o autor: "o recorte das disciplinas
impossibilita apreender 'o que está tecido junto', ou seja, segundo o sentido
original do termo, o complexo"(2).
Por outro lado, torna-se importante assinalar que, diante do reconhecimento de
uma prática pedagógica pautada em uma metodologia fragmentada, característica
de nossas disciplinas acadêmicas, há um movimento interno que aponta para uma
renovação. Essa tendência em torno da discussão de novos projetos pedagógicos,
dos diferentes cursos, abre o debate entre estudantes e professores, dentro de
uma visão crítica da realidade de saúde e do próprio ensino. Em consequência,
possibilita outro fazer pedagógico em consonância com as demandas sociais e as
políticas governamentais de inclusão social.
Nessa perspectiva, o ensino de ética / bioética, diferentemente de outros
conhecimentos ministrados, não deve acontecer como algo apenas pontual, e sim,
integrar o currículo de forma transversal. Essa reflexão deve ser parte
integrante do cotidiano de docentes, discentes e demais profissionais que
conformam o universo do mundo acadêmico. E ainda: o ensino deve ter um caráter
transdisciplinar para melhor apreender, em toda a sua complexidade, os
diferentes desafios ligados aos avanços das ciências da vida.
Acerca da pesquisa, como parte integrante do trabalho da enfermagem, esta
guarda estreita relação com o ensino, principalmente com o crescimento da pós-
graduação; são novos horizontes que se abrem para o desenvolvimento da
profissão, vislumbrando a melhoria da atenção de enfermagem em todos os níveis
de complexidade. Assim concebendo, muitas são as questões de cunho ético a ser
lembradas: Qual a direção e objetivo de nossas pesquisas? Há uma preocupação
com a realidade a ser pesquisada? Há um retorno para essa realidade? Os
participantes das pesquisas são respeitados em seus direitos? Elas estão
contribuindo para tornar a prática cotidiana mais humana, valorizando a vida?
Nas pesquisas que envolvem seres humanos, seus pesquisadores vêm observando,
devidamente, as normas do Conselho Nacional de Saúde, a esse respeito?
Encontra-se em vigor, atualmente, a Resolução CNS 466/2012, em substituição à
Resolução 196/96 do mesmo Conselho. Há uma discussão acerca dessas resoluções
entre pesquisadores, estudantes e profissionais? Essas são algumas indagações,
entre tantas outras, que poderão e devem ser feitas.
Na mesma direção, ainda no campo da pesquisa, muitos outros problemas éticos
precisam ser considerados, quando a pauta de discussão envolve a formação de
novos profissionais. É preocupante observar como a competição e o produtivismo
no meio acadêmico têm concorrido para a banalização da produção científica,
constituindo um verdadeiro simulacro do saber. São reproduções de textos
publicados via internet, sem qualquer participação do autor, como algo natural
e aceitável. Pesquisadores e estudantes correm o risco de perder o senso e o
compromisso ético em relação à pesquisa, mas igualmente, à prática cotidiana de
cada um e à própria vida. Importa, sobretudo, registrar o quanto e onde
produzem, sem que se estabeleça qualquer criticidade, a respeito do que foi
produzido.
Reportando-nos a terceira área, a da assistência, não significa apenas mais uma
dimensão do trabalho da enfermagem. Ela representa o espaço por excelência da
prática profissional, realizando-se em todos os níveis de complexidade. É o
lugar da expressão do cuidado, em toda sua plenitude. De acordo com Leonardo
Boff(3) "alimentamos uma profunda convicção de que o cuidado, pelo fato de ser
essencial, não pode ser suprimido nem descartado". É importante reconhecer que
esse cuidado envolve não apenas a saúde, mas, igualmente, as outras dimensões
da vida e, na enfermagem, ele se materializa, em todas as suas formas, no
espaço da assistência.
É o mesmo autor que nos convida a pensar e exercer o cuidado, quando nos
adverte, acerca do descuido e descaso pelos milhões de excluídos do processo de
produção, do descuido e descaso pela coisa pública, pela dimensão espiritual do
ser humano, descuido e abandono dos sonhos de generosidade, de sociabilidade,
descuido e descaso pelas crianças, pelo destino dos pobres marginalizados da
humanidade, descaso pelo próprio planeta, entre outras fragilidades no cuidar
da vida(3).
Na Enfermagem, o cuidar representa sua essência, embora outros profissionais,
igualmente, cuidem. No entanto, é importante refletir qual o sentido que
conferimos a nossa atividade laboral. Sabemos que o trabalho não é um fim em si
mesmo, e sim a vida, como nos lembra Comte-Sponville(4). Mas como um meio, como
uma necessidade de realização do ser humano, dá sentido à vida de quem cuida e
do ser cuidado. Portanto, é fundamental a consciência e o envolvimento de quem
o executa, a busca de interação entre o cuidador e aquele que recebe o cuidado.
Em qualquer profissão, o fazer profissional, desprovido de sentido leva quem o
pratica, ao sofrimento e à infelicidade. O sentido das coisas "não está apenas
na realidade objetiva, está na história e na meta perseguida. (...) O sentido
se constrói em nós com o que está antes de nós e depois de nós, com a história
e a imaginação, a origem e a descendência"(5).
Por isso mesmo, ao refletir sobre o lugar que ocupa o cuidado na assistência de
Enfermagem, torna-se oportuno recorrer ao campo da comunicação, assunto que se
faz presente em todas as publicações dos autores que se dedicam ao tema
cuidado. Entre tantas outras fontes, de cunho eminentemente teórico, que vêm
contribuindo para os estudos de enfermagem nessa área, insere-se a ação
comunicativa ou o agir comunicativo de Jürgen Habermas(6).
De acordo com esse autor a ação comunicativa permite uma relação crítica com os
três mundos com os quais nos confrontamos: mundo dos objetos, mundo social e
mundo subjetivo. A linguagem assume, nesta ação, um papel central como meio
regulador do comportamento mútuo(6).
Conforme ainda o mesmo autor,
o agir comunicativo refere-se à interação de pelo menos dois sujeitos
capazes de falar e agir que estabeleçam uma relação interpessoal
(seja com meios verbais ou extraverbais). Os atores buscam um
entendimento sobre a situação da ação para, de maneira concordante,
coordenar seus planos de ação e, com isso, suas ações(6).
Nessa perspectiva, os dilemas éticos deveriam ter soluções em ações
comunicativas que busquem o consenso. O que tiver sido consensualmente acordado
deve ser respeitado. Isto evitaria a automatização e a tecnificação das
práticas cotidianas. E, nesse contexto, importa ainda referir que essa ação
comunicativa é determinada, igualmente, pelos diferentes sistemas (econômico,
social e político) que invadem o mundo da vida e da saúde.
No cotidiano dos serviços de saúde dificilmente podemos falar de ação
comunicativa, propriamente, vez que o cliente/usuário, sujeito da ação,
raramente é convidado a participar da argumentação e da escolha de seu
tratamento; ficando a critério dos profissionais decidirem sobre seu destino.
A comunicação com o cliente/usuário não tem se evidenciado como uma preocupação
de primeira ordem, pela grande maioria de profissionais, dentre os quais se
incluem os de enfermagem. Encanta, sobremaneira, o aparato tecnológico que aos
poucos e de forma mais intensa, na atualidade, vem penetrando no mundo da saúde
e no campo dos diagnósticos e tratamentos, particularmente, quando nos
referimos aos centros de terapia intensiva. É muito comum, e as pesquisas na
área confirmam, a solidão referida pelos clientes que vivenciaram a experiência
de internamento nas terapias intensivas. A atenção dos profissionais parece
concentrar-se, sobretudo, nas máquinas e exames sofisticados. Em tempo, nos
adverte Mia Couto, escritor moçambicano, em uma crítica ao mundo moderno, ao
qual nos estamos referindo - "Só um mundo novo nós queremos: o que tenha tudo
de novo e nada de mundo".
Pensamos ser esse um momento oportuno para o exercício de reflexão, sobre o
trabalho da enfermagem, por acreditarmos na possibilidade de um fazer mais
humano, a partir de uma consciência crítica acerca da própria banalização, que
por vezes ocorre, diante da dor do outro. Como assinala Edgar Morin(1) o mal é
o desastre, o horror da condição humana. Mas, o pior da crueldade e o melhor da
bondade do mundo estão no ser humano. O combate essencial da ética é a dupla
resistência à crueldade do mundo e à crueldade humana.
Portanto, encerramos essa reflexão com a esperança de que, diante das
adversidades que envolvem o campo da saúde e da vida profissional, tenhamos
condição de trilharmos o caminho da ética.